outubro 22, 2025

Garatujas de boteco

GARATUJAS DE BOTECO 
Hayton Rocha


O coronel Charles Bronson Cunha era daqueles clientes que faziam gerente de banco suar frio em pleno meio-dia, sol a pino, colarinho sufocante e sapatos apertando os joanetes. Em véspera de renovar RDB, o gerente se sentia feito cafetina com contas a pagar: sorriso ensaiado, adulando e oferecendo vantagem além da conta — interessado mesmo era no volume do dinheiro que ficaria no cofre, não na fidelidade do freguês.

Cebecê tinha quase todo o cardápio da agência: aplicações de renda fixa e variável, cartões, cheque especial, financiamentos, seguros, títulos de capitalização e até produtos que nem o gerente entendia, mas que engrossavam o caldo do resultado mensal. Tratado, portanto, como príncipe de cofre cheio, com tapete vermelho estendido e cafezinho servido como se fosse champanhe.

Só que, de quinta a domingo, cultivava um hábito mais valioso que qualquer aplicação: a farra. Religiosamente, estacionava a camioneta na porta do mesmo boteco, já tombado pelo peso das histórias. Ali reinava: entornava cerveja como petróleo recém-descoberto, multiplicava amigos como cupim em guarda-roupa velho e, no auge da bebedeira, virava filantropo de balcão. Ninguém pagava a conta. Só ele — fosse capanga, colega, desafeto arrependido ou parasita de ocasião.



O roteiro era sempre o mesmo. Perto da saideira, embalado pela voz cavernosa de um cover de Nelson Gonçalves em “Matriz ou Filial”, já sem distinguir banheiro masculino de feminino, pedia a conta. Sacava o talão, rabiscava o valor em língua indecifrável e arrematava com uma garatuja imensa, terminada em três pontos. Segundo ele, sinal de uma irmandade famosa “nos quatro cantos do mundo”.

Na segunda-feira, o dono do bar depositava o cheque. Na terça, o banco devolvia: “assinatura divergente”. Não era saldo — Cebecê tinha mais dinheiro que o ofertório da paróquia em safra boa. O problema era outro: a cada porre, nascia uma assinatura nova, sempre diferente da anterior.

Cheio de dedos, o dono do bar batia à porta para trocar o cheque. O coronel, ainda de ressaca, pedia desculpas, tomava um Engov, oferecia café e emitia outro, mais parecido com os arquivos do banco. E a vida seguia… até quinta-feira, quando começava novo capítulo da novela etílica.

Cansado da comédia, Cebecê resolveu pôr fim à humilhação. Invadiu o aquário envidraçado do gerente e disparou:
– Venha cá, tô devendo alguma prestação?
– De jeito nenhum, coronel!
– Tem saldo na minha conta?
– Um dos maiores...
– Então sou ou não sou bom cliente?
– O melhor de todos! – respondeu o gerente, quase em continência.

O coronel ajeitou o bigodão:
– Quando abri a conta, não me fizeram assinar umas quatro vezes naquele cartãozinho?
– Sim, senhor, normas do Banco Central.
– Pois essa norma tá me tratando como caloteiro!
– Não é isso, coronel. Seus cheques só voltam quando a assinatura não confere.
– Então me arrume outro cartão.

O gerente obedeceu.
– E agora?
– Agora o senhor vem comigo até o boteco. Depois da terceira cerveja, assino uma vez. Na quinta, assino de novo. Na sétima, com uma dose de rum, assino outra. Assim, qualquer cheque meu vai bater com o arquivo de vocês, seja segunda, sexta ou domingo de madrugada.

O gerente ainda hesitou, mas a ameaça final encerrou a discussão:
– Se devolver mais um cheque meu, mudo de banco!

E assim nasceu o sistema de conferência mais criativo da região: três assinaturas calibradas por bebida e homologadas pelo fígado. O Banco Central pode até não reconhecer a prática. Mas os botecos — principais interessados —, sim.

O problema desapareceu. O coronel seguiu brindando com sua corte, o dono do bar sossegou e o gerente descobriu que fé em assinaturas vale tanto quanto fé em santos de gesso — tudo depende da quantidade de álcool nas veias.

Entre garatujas e goles, Cebecê provava que a vida, tal qual sua assinatura, nunca confere de primeira: precisa de improviso, repetição e um pouco de incerteza para parecer verdadeira. Afinal, como dizia Humphrey Bogart em “Casablanca”, todo homem está pelo menos três “bramas” abaixo do normal.


                    É na proxima semana...




16 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA22 de outubro de 2025 às 04:44

    No mundo dos negócios, nos bares e na grasfocopia a espontaneidade, desde a gênese, altera a dinâmica. Cada um tenha criatividade, não precisa ser do tamanho da criatividade do cronista, essa é sem métrica.

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    1. 46 anos após a realização do curso de Caixa-Executivo no Rio-RJ, DINÂMICA, ESPONTANEIDADE E GÊNESE ainda me soam familiares para a conferência de uma assinatura.

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  2. Pois um desses coronéis do sertão protagonizou um caso hilário. Foi nos anos 70, em um dos primeiros concursos que o Banco do Brasil admitiu mulheres. Tomou posse em Porteirinha MG uma garota na flor dos seus 19 anos. Linda, alta, morena, cabelos negros, olhos verdes. A CIC não previa norma para o vestuário das mulheres e a garota lá chegou com sua mini saia mostrando um par de pernas de parar banda de música.
    O BB não tinha muita experiência com mulheres em seus quadros. O gerente, cheio de preconceito, colocou a moça na recepção, como se duvidasse da capacidade da recém empossada. Pois entra esse coronel e ao avistar a garota, veio logo com “mas que potranca!”,,,, a garota se debulhou em lágrimas… vou ter com o gerente dizendo que o coronel a havia destratado… ao ouvir a garota o gerente respondeu: “que isso moça! Esse é o maior elogio que um coronel poderia lhe fazer. Potranca é uma égua de classe, de estirpe, premiada…”
    Desfeito o caso, tudo se ajeitou. O Coronel se servindo de cafezinho e a mocinha ainda ruborizada sorria sem graça, tímida.

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  3. Prezado Hayton,
    A leitura de "Garatujas de Boteco" foi uma excelente maneira de começar esta quarta-feira. Uma vez mais você conseguiu capturar uma fatia da nossa cultura de um jeito muito inteligente e divertido.
    O que mais me impressionou foi o contraste que você construiu: o Coronel Charles Bronson Cunha, essa figura de poder financeiro que aterroriza os gerentes de banco, mas que tem seu lado mais autêntico e incontrolável revelado na mesa do bar. A forma como você o descreve como um "filantropo de balcão" e comparando a cerveja a "petróleo recém-descoberto" mostra um domínio das imagens que é realmente notável.
    Essa sacada do cheque que volta por "assinatura divergente", e não por falta de fundos, é o coração da crônica. Ela expõe de maneira cômica como a rigidez do sistema bancário é ridícula quando confrontada com a vida real, que é feita de porres, risadas e, claro, caligrafias variáveis. É a burocracia perdendo para a farra.
    A solução final do Coronel é ótima. Levar o gerente para o boteco para "calibrar" as assinaturas conforme o nível de álcool no sangue é por demais divertida. É a lei da rua, a lei do boteco impondo-se à lei do Banco Central.
    Somente você poderia contar essa história como contou: com a precisão de quem conhece o drama tanto do gerente engravatado quanto do Coronel embalado na voz de Nelson Gonçalves.
    Parabéns pelo trabalho. Sua crônica prova que, às vezes, para resolver um problema sério, só um toque de loucura etílica (e criatividade) resolve.
    Um grande abraço.
    Izaias

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  4. Supimpa. Primoroso causo.
    Essa crônica, tal qual um tapete voador das Arábias, me transportou no tempo.
    O sobrenome Cunha me trouxe recordações saudosas do meu avô, dono de engenhos, o principal na Fazenda na Marinheiro, Quintino Carvalho da Cunha.
    O ponto principal, porém, foi a revelação geográfica que desconhecia, Riachão das Neves na Bahia e Casablanca no Marrocos, são irmãs siamesas na linguagem de boteco.
    Efusivos PARABÉNS 👏👏👏

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  5. "Sua excelência, o cliente" máxima que norteia os negócios mundo afora. De certa forma o Coronel Cebecê inaugurara uma nova cláusula no normativo bancário, ainda que na aba da informalidade. Na minha Natuba dos Kiriris(Nova Soure, Bahia) onde o nosso comum amigo Sebastião Cunha montara praça inaugural de sua gerência de Banco do Brasil, convivemos com um gerente de banco particular (Banco Econômico), nome teuto de descendência, Müller, premiado na sociedade com a pronúncia popular "seu Mila", que tinha por hábito propor a inauguração de algum bem adquirido pelo seu correntista.
    -- Seu Mila, quero um impressionante, prumódi eu comprá um ventilador, qui o calor lá in casa tá dimais e Miquilina, minha muié, tá me incheno a paciência.
    -- Tá aqui, seu Zé de Oláia, assine aqui esta promissória e vâ lá no caixa sacar o valor que o senhor precisa pra comprar o ventilador.
    Zé de Oláia saiu direto do banco para a loja de eletrônicos e comprou o ventilador melhor que tinha no estoque, pagou a vista, sem o pechinchar. Sua fazenda ficava a 10km da sede municipal e já dispunha de energia elétrica, obviamente de geladeira na casa do proprietário.
    No sábado seguinte ao atendimento bancário ao seu cliente, Müller toma do seu veículo um Del Rey da Ford, completa a lotação com três amigos, também conhecidos do cliente bancário, providência uma dúzia ou mais de cervejas geladas, e por volta das dez horas do dia, se dirige à fazenda de Zé de Oláia.
    Adentra a fazenda, para o carro no terreiro da casa e é recebido pir D. Miquilina, assombrada com aquele carro cheio de gente na sua porta.
    -- Bom dia, meu amo, em que posso seuvi o sinhô na porta de minha casa?
    -- Bom dia, minha senhora, sou o gerente do banco, queria falar com seu Zé de Oláia. Ele não me convidou, vim fazer uma visita de surpresa.
    -- apois bem, seu moço, ele tá lá no brejo, rancando uns aimpim pra eu fazer um bolo que amanhã ele faz aniversário, vou mandar um menino desses ir lá chamar. Se achegue prá xá vamicêis todos, venha se assentar no alpendre
    Chegado em casa, Zé de Oláia se espanta com a presença do gerente e seus amigos.
    -- Bom dia seu Mila e todos sinhores. Qui nuvidade é essa o sinhô na minha casa, já veio cobrá-lo o impresto do ventilador?
    -- Que é isso seu Zé, cliente como o senhor não dá lugar a banco nenhum se atrever lhe cobrar não. Sei que o senhor é homem de bem e cumpridor de suas obrigações.....
    -- intonse a qui devo essa visita sem aviso ninhum?
    -- Seu Zé, então o senhor acha que eu ia deixar passar?!, a gente veio aqui para fazer a inauguração do ventilador. Mas não se preocupe, eu trouxe a cerveja, o tira-gosto é pir sua conta.....
    Zé de Oláia mandou logo providenciar abater umas três galinhas e preparar para os comensais inesperados.....
    -- cheqa Miquilina, adescobri lá o ventilador qui seu Mila veio inaugurá....
    E a festa de inauguração transcorrera até quando tinha galinha pra comer e cerveja e pinga ora beber, afinal o anfitrião forçado também dispunha de uma boa quantidade de uma boa brejeiro no seu estoque etílico.

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  6. Os comentários são uma mea-crônica, maravilhosos. Lembrei de um BIP que tazia a história do Maurício de Souza, que foi sacar um cheque na "boca do caixa", de uma agência que não tinha cartão de autográfo. Aí, para contornar o "não pode" do Caiex, ele assinou no verso do Cheque, tal qual fazia nos qadrinhos. E o Caiex entendeu que era ele mesmo. Assumiu o risco. E pagou. Obrigado querido amigo, cronista dos bons, por nos brindar com uma bela história, nesta manhã. E, parabéns pelo lançamento de mais um livro, O Silêncio das Tartarugas.

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  7. ROBERTO SANTOS FERNANDES22 de outubro de 2025 às 06:54

    Parabéns por nós presentear por mais uma história de bom gosto que nos trazem recordações de nossos tempos de trabalho no interior.
    Kkk

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  8. Boa lembrança essa do RDB. Kkkkkkk

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  9. Esses coronéis de botequim são figuras folclóricas em cidades do interior. Mandam em prefeitos e fazem gerente de banco ajoelhar. O dinheiro pode tudo principalmente para quem paga a conta de babões e babacas de plantão. Excelente crônica. Parabéns, Hayton.

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  10. Hayton, parabéns pra você por mais uma crônica sensacional! E, também, para o Izaias, que capturou a essencia do texto e o traduziu com a maestria de um crítico literário! Vale registrar, ainda, os comentários do Tonho do Paiaiá e da Isa Musa, outras duas bem humoradas crônicas. Suspeito que, à exceção de mim, seus leitores se compõem de talentosos escritores! E escribas assim como você, um mestre na arte de encantar o leitor, enriquessem, ainda mais, o seu já consagrado e aplaudido Blog do Hayton. Meus mais sinceros e calorosos aplausos! Forte e fraternal abraço. Lacerda Jr.

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  11. Excelente amigo. Já vi gerente que conferia assinatura in loco, no meio da farra !!!

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  12. Haydee Jurema da Rocha22 de outubro de 2025 às 07:32

    Eita agora eu ri! " Coroné" já escrevia ruim, estando " bom", imagine " biritado"!! Kkkkk

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  13. Mais uma ótima e hilária criação para nos amenizar a metade da semana. E, coincidentemente, o nome do coronel nos remete, de imediato, ao famoso ator americano de filmes de ação e faroeste, cujo nome real era Charles Dennis Buchinsky, ou seja, o CDB.

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  14. Sua crônica “Garatujas de Boteco” despertou lembranças de um tempo vivido nas pequenas agências do Banco do Brasil, espalhadas pelos interiores do país. Recordei aquelas figuras típicas — o cliente que ameaçava sacar suas economias se o rendimento de suas aplicações não fosse maior, o dono do cartório que se sentia quase sócio do banco e queria escolher o horário de atendimento, e os momentos de tensão ao ligar para avisar sobre um cheque devolvido, quando era preciso mais tato do que coragem e um pouco de criatividade também.
    Como sempre, Hayton, suas crônicas têm esse dom raro de nos fazer viajar no tempo e reviver histórias guardadas na memória. Parabéns!

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Garatujas de boteco

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