JOÃO VIVE. VIVA!
Hayton Rocha
Em Copacabana, onde a maresia corrói metais, mas conserva memórias, vive João Cândido de Lima Neto. Desde fevereiro de 1949, quando trocou o expediente no Banco do Brasil pelos passeios matinais entre o Forte e o Leme, João caminha pelas calçadas como quem relê capítulos de um livro cujo final só ele sabe. Já são 100 anos de prosa e verso — e o enredo, veja só, ainda se escreve com graça e espanto.
Figura carimbada do bairro, virou personagem de uma edição especial de O Globo sobre centenários cariocas. Ganhou manchete não apenas por atravessar um século em pé, mas por ser raiz invisível da cidade — dessas que não aparecem nas fotos, mas sustentam o que nelas floresce. Um alicerce discreto, carregando a alma do lugar sem alarde nem holofote.
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Reprodução/O Globo - Fotografia: Guito Moreto |
Na entrevista, falou da Copacabana quase rural, das noites apagadas pela guerra e do fiscal de praia que só liberava banho entre 14h e 16h. Imagine só: pedir licença para mergulhar no Atlântico! A paranoia era tanta que até o pôr do sol parecia precisar de crachá. João conta isso com um riso discreto, ajeitando o chapéu de feltro marrom, como quem carrega no bolso as chaves do tempo — e ainda sabe onde cada uma se encaixa.
Ele também coleciona apegos particulares — além de moedas raras e carrinhos em miniatura que já lhe renderam menções em revistas britânicas. Guarda gargalhadas de netos, buzinas de bonde, cafés na Colombo, memórias de Sinatra no Maracanã e sorrisos que ficaram presos nas entrelinhas do passado. Caminhou sozinho até os 95. Hoje, ladeado por cuidadora, desfila sua elegância centenária entre jornaleiros, chaveiros, porteiros e pipoqueiros. Lembra um samba de Cartola ou Noel Rosa: a gente reconhece a letra mesmo sem escutar a melodia.
Tem três filhos, quatro netos, três bisnetos e uma curiosidade sem freio. Diz a filha, Renata, que o segredo está nos livros. Ou nos passos. Ou, quem sabe, no dom de continuar achando graça onde já não há tanta novidade. Um talento singular: manter-se jovem sem precisar parecer — talvez o mais subversivo dos gestos num mundo viciado em juventudes performáticas.
Penso nisso tudo e me pego imaginando o que diriam cientistas ao ver João atravessar os últimos 100 anos com essa leveza.
Justamente na página ao lado da reportagem, um geneticista de Harvard, David Sinclair, crava: “A primeira pessoa que viverá 150 anos já nasceu.” Segundo ele, até 2035 haverá uma pílula capaz de reiniciar nossas células — como quem clica em atualizar sistema na tela da vida. Rugas a menos, mitocôndrias a mais. Versão 2.0 da existência.
Mas de que adianta viver 150 anos se não der pra restaurar as configurações originais de fábrica? Não falo de articulações novas ou do viço da pele. Falo da capacidade de se encantar com a caneca trincada que não vaza, de rir do cachorro desafinado que late pro motoqueiro apressado, de bater à porta do vizinho só pra desejar bom dia, de “beijar o português da padaria”, como diria Zeca Baleiro. E é aí que João, com seu passo miúdo e olhar curioso, parece já ter descoberto o segredo que nenhuma cápsula trará: viver mais é menos urgente que viver melhor.
Se é pra sonhar com longevidade, que seja com espaço interno pra carregar reservas de encantamento — também de indignação, claro. O mesmo João que, certamente, se indigna, à sua maneira, com um país que tolhe a dignidade. Onde a miséria não seja confundida com estatística, a desigualdade não seja banalizada e criança tenha infância, não trincheira. Onde ninguém precise pedir licença pra existir ou prova de endereço pra ser tratado como gente.
Um país que abrace mais e castigue menos. Onde segurança não seja privilégio nem sentença. Onde o futuro não dependa de cápsulas milagrosas, mas de escolhas conscientes. Onde democracia não seja aplicativo com bug, mas organismo vivo, corrigido quando necessário por gente capaz — sem Messias de ocasião nem vilões convenientes.
E se, por capricho da biotecnologia, você que me lê for a primeira pessoa a soprar 150 velinhas, que seja com a força de quem entendeu que a vida vale mais pelas coisas que não custam: a lembrança da mãe oferecendo chá de eucalipto e manta de chenille no arrepio da febre; do pai pelejando com o chiado do rádio antigo justamente na hora do gol.
Ou, faça como João: aguarde o apito final do Grande Árbitro fechando o jogo — quem sabe, um pouco antes dos 120 — com gratidão no bolso, lucidez no olhar e as alpercatas de sempre, leves o bastante para mais um passeio sereno pelas calçadas do acaso.