O GRÃO QUE ENGOLE A FLORESTA
Hayton Rocha
Navios já não precisam do mar. Ancoram em terminais que surgem no meio do nada, onde antes só havia floresta ou o mugido de boi faminto. Ali, o vazio virou mar de verde oleaginoso. A soja — grão anônimo, sem a nobreza dourada do trigo que vira pão nem a poesia da uva que se entrega em vinho — ergueu-se como soberana invisível da economia brasileira. Uma rainha discreta, mas implacável, capaz de mover exércitos, redesenhar mapas e trocar árvores por cifras.
Dela se faz óleo, leite, tofu, carne vegetal, ração para bois e peixes, cosméticos e até biodiesel para movimentar os caminhões que a transportam. Um grão que, triturado, vira tudo, menos mata virgem. É a semente que dá lucro, mas arranca raízes sem piedade.
O mundo inteiro mastiga soja sem notar. O frango no prato chinês, a ração do suíno europeu, o hambúrguer vegano embalado em discurso de salvação planetária — todos temperados com a febre que se espalha do Cerrado à Amazônia. Onde antes havia floresta, agora há campos verdes que se multiplicam feito metástase. Cada safra é anunciada como recorde — e a próxima, ninguém duvida, também será.
A fronteira agrícola se comporta como exército em marcha lenta: começou pelo Sul, ocupou o Centro-Oeste, parte do Nordeste, e agora se insinua pelo coração úmido da Amazônia. Cada ponte inaugurada, cada estrada pavimentada, cada porto em projeto é uma trombeta anunciando a chegada da tropa. A BR-319, que corta o Amazonas como faca esquecida na manteiga, é o próximo alvo. Agricultores a veem como promessa de frete barato. Ambientalistas, como convite ao apocalipse.
A soja já dança no salão principal da economia, estrela maior do agronegócio — este, sim, responsável por um quarto do PIB —, dama imponente do banquete brasileiro. Como toda dama de vestido longo, ela exige espaço, luxo e palmas. O pacto que deveria conter seus excessos — a moratória da soja — tropeça entre suspeitas de cartel e promessas vazias. A União Europeia tenta fechar a porta, os estados escancaram janelas, e a Justiça assiste, feito árbitro de futebol acuado em pelada na favela.
Há quem diga que é simples: basta cumprir a lei, que já exige preservar 80% da vegetação nativa na Amazônia. Mas grileiro nunca trabalha com simplicidade. Derruba árvores na esperança de que, amanhã ou depois, a regra mude, a fiscalização cochile, a floresta seja esquecida. O crime, aqui, é investimento seguro: cheque pós-datado. Desmata-se hoje para colher fartura de amanhãs.
E a terra, inflacionada, dobra de valor em poucos anos. O mesmo mecanismo que nos anos 1970 inflou preços urbanos e empurrou os mais pobres para a periferia agora aplica cartão amarelo à floresta. A especulação é a mesma, só mudaram os cenários: ontem, arranha-céus de concreto; hoje, silos metálicos.
Cientistas, com seus gráficos e satélites, alertam: se metade da Amazônia tombar, a temperatura do planeta sobe até 2,5 graus, as chuvas desaparecem e os rios minguam. O Brasil, dono de 80% de energia hídrica, pode ficar a seco. O planeta, sedento. E tudo isso com base em cálculos otimistas. A verdade, repetida em seminários, é que a Amazônia não é apenas nossa: é o refrigério da alma da Terra.
Mas vai convencer quem vê soja virar dólar mais depressa que árvore vira chuva!
Enquanto isso, Belém lustra os salões para a COP-30. Virá gente do mundo inteiro, mês que vem, brindar com coquetéis e discursos sobre salvar a floresta. Ironia tropical: a mesma cidade que servirá de púlpito verde já ensaia os bastidores para novos portos de grãos. Belém, entre o altar e o balcão, entre o sermão e a soja.
E eu aqui, lembrando de minha santa mãe, que na próxima semana completa 87 outubros. Ela, que sempre tinha uma sentença terrível na ponta da língua quando a vida insistia em me ensinar pela dor: “Eu não disse?”. Imagino-a, meio século à frente, balançando a cabeça diante de um planeta quente, rios secos e tataranetos migrando em busca de água potável. Com um sorriso irônico, dirá de novo: “Eu não disse?”.
Melhor acreditar que nada disso faz sentido, que derrubar árvores é só o preço do progresso. Afinal, daqui a cinquenta anos eu não estarei aqui. Você, que me lê, talvez esteja.
Se estiver, não se surpreenda: o “eu não disse?!” da mãe-natureza vai ecoar mais alto que qualquer trator — inclusive movido a biodiesel.