agosto 13, 2025

João vive. Viva!

JOÃO VIVE. VIVA!
Hayton Rocha


Em Copacabana, onde a maresia corrói metais, mas conserva memórias, vive João Cândido de Lima Neto. Desde fevereiro de 1949, quando trocou o expediente no Banco do Brasil pelos passeios matinais entre o Forte e o Leme, João caminha pelas calçadas como quem relê capítulos de um livro cujo final só ele sabe. Já são 100 anos de prosa e verso — e o enredo, veja só, ainda se escreve com graça e espanto.

Figura carimbada do bairro, virou personagem de uma edição especial de O Globo sobre centenários cariocas. Ganhou manchete não apenas por atravessar um século em pé, mas por ser raiz invisível da cidade — dessas que não aparecem nas fotos, mas sustentam o que nelas floresce. Um alicerce discreto, carregando a alma do lugar sem alarde nem holofote.


Reprodução/O Globo - Fotografia: Guito Moreto

Na entrevista, falou da Copacabana quase rural, das noites apagadas pela guerra e do fiscal de praia que só liberava banho entre 14h e 16h. Imagine só: pedir licença para mergulhar no Atlântico! A paranoia era tanta que até o pôr do sol parecia precisar de crachá. João conta isso com um riso discreto, ajeitando o chapéu de feltro marrom, como quem carrega no bolso as chaves do tempo — e ainda sabe onde cada uma se encaixa.

Ele também coleciona apegos particulares — além de moedas raras e carrinhos em miniatura que já lhe renderam menções em revistas britânicas. Guarda gargalhadas de netos, buzinas de bonde, cafés na Colombo, memórias de Sinatra no Maracanã e sorrisos que ficaram presos nas entrelinhas do passado. Caminhou sozinho até os 95. Hoje, ladeado por cuidadora, desfila sua elegância centenária entre jornaleiros, chaveiros, porteiros e pipoqueiros. Lembra um samba de Cartola ou Noel Rosa: a gente reconhece a letra mesmo sem escutar a melodia.

Tem três filhos, quatro netos, três bisnetos e uma curiosidade sem freio. Diz a filha, Renata, que o segredo está nos livros. Ou nos passos. Ou, quem sabe, no dom de continuar achando graça onde já não há tanta novidade. Um talento singular: manter-se jovem sem precisar parecer — talvez o mais subversivo dos gestos num mundo viciado em juventudes performáticas.

Penso nisso tudo e me pego imaginando o que diriam cientistas ao ver João atravessar os últimos 100 anos com essa leveza. 

Justamente na página ao lado da reportagem, um geneticista de Harvard, David Sinclair, crava: “A primeira pessoa que viverá 150 anos já nasceu.” Segundo ele, até 2035 haverá uma pílula capaz de reiniciar nossas células — como quem clica em atualizar sistema na tela da vida. Rugas a menos, mitocôndrias a mais. Versão 2.0 da existência.

Mas de que adianta viver 150 anos se não der pra restaurar as configurações originais de fábrica? Não falo de articulações novas ou do viço da pele. Falo da capacidade de se encantar com a caneca trincada que não vaza, de rir do cachorro desafinado que late pro motoqueiro apressado, de bater à porta do vizinho só pra desejar bom dia, de “beijar o português da padaria”, como diria Zeca Baleiro. E é aí que João, com seu passo miúdo e olhar curioso, parece já ter descoberto o segredo que nenhuma cápsula trará: viver mais é menos urgente que viver melhor.

Se é pra sonhar com longevidade, que seja com espaço interno pra carregar reservas de encantamento — também de indignação, claro. O mesmo João que, certamente, se indigna, à sua maneira, com um país que tolhe a dignidade. Onde a miséria não seja confundida com estatística, a desigualdade não seja banalizada e criança tenha infância, não trincheira. Onde ninguém precise pedir licença pra existir ou prova de endereço pra ser tratado como gente.

Um país que abrace mais e castigue menos. Onde segurança não seja privilégio nem sentença. Onde o futuro não dependa de cápsulas milagrosas, mas de escolhas conscientes. Onde democracia não seja aplicativo com bug, mas organismo vivo, corrigido quando necessário por gente capaz — sem Messias de ocasião nem vilões convenientes.

E se, por capricho da biotecnologia, você que me lê for a primeira pessoa a soprar 150 velinhas, que seja com a força de quem entendeu que a vida vale mais pelas coisas que não custam: a lembrança da mãe oferecendo chá de eucalipto e manta de chenille no arrepio da febre; do pai pelejando com o chiado do rádio antigo justamente na hora do gol.

Ou, faça como João: aguarde o apito final do Grande Árbitro fechando o jogo — quem sabe, um pouco antes dos 120 — com gratidão no bolso, lucidez no olhar e as alpercatas de sempre, leves o bastante para mais um passeio sereno pelas calçadas do acaso.

agosto 06, 2025

Em nome do mau cheiro, amém

EM NOME DO MAU CHEIRO, AMÉM
Hayton Rocha


Só me faltava essa! Christine Connell, influenciadora digital norte-americana, viralizou nas redes sociais, no mês passado, ao garantir que passou sete anos sofrendo com uma infecção crônica nos seios nasais causada por um pum próximo ao rosto. Isso mesmo: flatulência facial. Uma bufa com mira certeira.


Reprodução/Redes Sociais


Segundo a moça, tudo começou quando, recuperando-se de uma cirurgia no tornozelo, cochilava num quarto de hotel ao lado do então namorado. O rapaz, tomado por uma emergência intestinal incontrolável, soltou aquilo que os antigos chamavam de "vento ruim". E bem perto do rosto da amada.


Daí em diante, dores faciais, congestão nasal permanente e infecções recorrentes. Nem o velho e confiável Vick Vaporub, disponível nas melhores prateleiras do mercado farmacêutico, aliviava o desconforto. Foi assim que começou a via-sacra por consultórios médicos e exames dignos de enredos de ficção científica.


Até que, numa dessas jornadas diagnósticas, um laboratório revelou o mistério: Escherichia coli — a popular E. coli — instalada nos confins das vias respiratórias da jovem. Uma bactéria nativa das vísceras agora promovendo intercâmbio cultural nas cavidades paranasais. A equação foi montada em segundos: do cólon dele ao nariz dela, voo direto, sem escalas, sem visto alfandegário nem pedido de desculpas.

Quem sou eu para me meter com essas trocas gasosas conjugais? Sei apenas que, durante longas convalescenças, muitos casais dormem como cartas de baralho: valete, dama ou rei, cada cabeça para um lado. E, nessas posições alternativas, o inesperado costuma bater ponto com razoável frequência, muitas vezes servindo até de despertador em plena madrugada. 

Não sou totalmente leigo no assunto, claro. Posso afirmar que já vi casamentos terminarem por muito menos — e com bastante barulho no tribunal. Quando não há filhos em disputa, bens a dividir ou pensão para reivindicar, abre-se espaço para o que chamo de litigância olfativa. Inventa-se uma tragédia bacteriológica com apelo emocional e potencial indenizatório digno de um seriado de TV explorando o universo jurídico.

Ouvi de um patologista clínico amigo meu, dos mais confiáveis e discretos — daqueles que jamais postariam um parecer no Instagram — que gases intestinais não transmitem bactérias. A E. coli, segundo ele, provavelmente veio de ambiente hospitalar ou de alguma intercorrência pós-cirúrgica. Mas a moça sustenta sua versão original com fervor evangélico. E, convenhamos, isso rende bem mais curtidas que qualquer boletim técnico da Organização Mundial da Saúde.

Desde então, virou sacerdotisa da higiene nasal. Espalha tutoriais sobre lavagem com soro fisiológico, prega vaporizadores e compartilha sua via-crúcis respiratória como quem revela a terceira parte dos segredos de Fátima. Seus seguidores se dividem entre o ceticismo clínico e a fome por escândalos — que, diga-se, rende mais que barris de petróleo em tempos de guerra no Oriente Médio.


Não vou negar, ando apreensivo com o precedente. Vai que a moda pega e os tribunais passem a julgar flatulências litigiosas? Já vislumbro cláusulas contratuais em futuros casamentos: “As partes concordam que odores involuntários emitidos no convívio não constituem ofensa nem justificam pedido de indenização, salvo se...”


E olha que tem odores pra todos os desgostos. Um bafo matinal já basta pra azedar o café da manhã — às vezes, nem “bom dia” salva. Dentista resolve? Talvez. Fio dental, um chiclete e muita fé. O chulé, então, muda o microclima do lar e, em casos graves, exige intervenção médica — ou exorcismo. Já o temido combo dos horrores — bafo, bufa, chulé, precedidos de um arroto — constitui uma amostra grátis dos confins dos infernos.


Mas se cada micróbio da vida a dois for parar no tribunal, com laudos técnicos, perícias olfativas e vídeos explicativos, nosso Judiciário — que já tropeça com ações de guarda, alimentos e xingamentos via redes sociais — vai implodir. Estaria vindo aí o Direito dos Sentidos, com varas específicas para flatulências, hálitos, secreções e outras intimidades litigiosas.

Para os casos mais cabeludos, talvez se convoque uma junta formada por dentistas, otorrinos, podólogos e psicanalistas. E, quando tudo mais falhar, que se chame um padre — porque tem situações em que só reza brava dá conta dessa biodiversidade.

Melhor rir antes que algum juiz aceite denúncia de flatulência dolosa com agravante de mira certeira — a mais antiga modalidade de assédio conjugal desde os tempos de Adão e Eva. Crime sem pena, mas com cheiro de sentença inapelável.

julho 30, 2025

As escolhas que nos escolhem

Domingo passado, mandei uma mensagem para uma amiga, parabenizando pelo aniversário. Desejei a ela, com toda a sinceridade, que nesta nova temporada da série Vida continue desfrutando dos verdadeiros luxos neste plano: boas companhias, mente serena, saúde sob controle e, principalmente, a impagável liberdade de escolher o que fazer — ou não fazer — com o próprio tempo.


Ela agradeceu, claro, com a delicadeza de sempre. Mas retribuiu o afago com uma daquelas alfinetadas envoltas em veludo que só as bisavós sabem espetar. Disse que essa tal liberdade de escolha era mais uma das minhas ironias poéticas disfarçadas. Segundo ela, quem tem ditado os rumos de seus dias, ultimamente, é um de seus bisnetos. Contou inclusive que, no dia anterior, sábado, viu-se “obrigada” a fechar as páginas de As Intermitências da Morte, de Saramago, para aceitar o gentil (mas imperativo) convite da criança para um passeio ao shopping.




Entre a leitura da obra de um Nobel de Literatura e um picolé de açaí na praça de alimentação barulhenta, adivinha quem levou a melhor? Falou mais alto o afeto entre eles.


Fiquei aqui, a 600 quilômetros de distância, ruminando esse dilema intergeracional. Há algo de profundamente bonito e inquietante nesse jogo de forças entre o tempo vivido e o tempo que começa a viver. De um lado, a mulher que lê sobre a Morte em férias, apaixonada por um violoncelista. Do outro, o menino que ainda ignora o peso das ausências e a leveza das partidas.


Saramago, com sua prosa tortuosa e sua ironia de padre herege, nos lembra que é a morte que dá sentido à vida — e que o amor, muitas vezes, consegue interromper até o expediente corriqueiro dela. 


Minha amiga, ao ceder à vontade do bisneto, talvez tenha feito o mesmo: suspendeu momentaneamente a contemplação do crepúsculo para mergulhar, com açúcar e com afeto, no amanhecer da vida.


Mas aquele episódio também me acendeu um alerta que pisca por dentro da gente, cobrando dois dedos de reflexão até a madrugada de segunda-feira: será que ainda enxergamos as pessoas pelo que são — ou só pelo que nos entregam?


Tempos estranhos, os nossos. Em vez de vínculos, colecionamos utilidades. Tornamos o afeto moeda de troca, e os encontros, pequenas reuniões de interesse. Sorrisos viraram cartões de visita; abraços, protocolos de ocasião. E assim, quase sem notar, vamos transformando relações em transações: quem serve, permanece; quem apenas é, caminha para o descarte.


No trabalho, o crachá virou passaporte para a relevância. Com ele, vêm os convites, os salamaleques, os cafés com promessas. Sem ele, boa parte da audiência desaparece sem deixar bilhete de despedida. E nas famílias, muda o cenário, mas a lógica se repete: muitos pais, avós — e agora bisavós — só recebem uma ligação quando alguém precisa de carona, conselho ou cobertura para as faltas que a vida impõe.


É aí que o perigo se instala de mala, escova e sandálias: quando deixamos de ser pessoas e viramos prestadores de serviço emocional. Quando confundimos amor com funcionalidade. Quando a presença só vale se trouxer alguma utilidade.


Se isso faz sentido, resta a pergunta: estamos, de fato, escolhendo com quem queremos estar — ou apenas aceitando quem nos escolhe quando precisa?


Minha amiga, com sua sabedoria, não se queixou. Mas havia, em sua resposta, um receio sutil: o de perder o controle da própria história. Porque, quando já não se escolhe o que comer, com quem sair, o que ler, onde morar ou a que horas dormir... aos poucos, vamos sendo deslocados do volante da vida para o banco de carona da vontade alheia.


Passar dos sessenta ou dos setenta, portanto, não dói pelas velinhas no bolo, mas pelo vazio que cresce quando os convites minguam. E não falo de eventos sociais, mas dos convites da alma: ser escutado, ser necessário, ser lembrado — não por conveniência, mas por consideração genuína.


Talvez a maior ousadia da velhice seja continuar escolhendo. Dizer não ao shopping, às vezes. Voltar à companhia de Saramago. Porque liberdade não é fazer tudo o que se quer, mas poder escolher o que importa.


E que privilégio conhecer alguém que nos ensina, com coragem e doçura, que mesmo quando a Morte tira férias — ou se apaixona por um violoncelista, como na obra de Saramago —, a Vida continua exigindo escolhas. Que amar também é permitir ao outro o direito de escolher. Ainda que, numa tarde qualquer de sábado, a escolha seja um picolé de açaí, e não um livro.

julho 23, 2025

Os olhos da cara

Outro dia, ouvi alguém se queixando de que seus óculos “custaram os olhos da cara”. Ri, claro — não da dor alheia, longe de mim rir do sofrimento ocular de ninguém —, ao lembrar da lenda do conquistador espanhol Diego de Almagro, que teria perdido um olho tentando invadir uma fortaleza inca nas Américas.  

 

Dizem que, ao reencontrar o imperador Carlos I, desabafou com orgulho — ou, quem sabe, buscando uma recompensa em ouro e prata: “Defender os interesses da Coroa espanhola me custou um olho da cara.” 

 

E você aí achando que conta de tratamento dentário é salgada.

 

Já a expressão “Casa da Mãe Joana”, veja só, virou sinônimo de desordem sem freio. Mas tem pedigree: Joana I de Nápoles, acusada de conspirar contra o marido e expulsa pelo cunhado, foi parar em Avignon. Lá, resolveu regularizar os bordeis e, sem querer, emprestou seu nome à zorra toda. Lá era Paço. Aqui virou casa. E o Brasil, com seu talento para tropicalizar tudo, fez do nome próprio uma metáfora coletiva para lugares onde manda quem pode, entra quem quer e ninguém responde por nada.

 

Se expressões populares tivessem cabeça, tronco e membros, dava pra dizer que estamos perdendo velhos amigos sem sequer ir ao enterro.

 

“A cobra vai fumar”, por exemplo, que já foi ameaça de guerra, hoje dá cadeia por maus-tratos a animais silvestres. “Ficar a ver navios”? Com rastreadores, GPS e câmeras nos portos, ninguém mais espera à toa na beira do cais. E “fazer das tripas coração”? Numa era em que se pede todo tipo de comida por aplicativo, uma tripinha ainda me remete ao petisco favorito da minha saudosa sogra.

 

Expressões e palavras que já foram moeda corrente no linguajar do povão agora soam como peças de museu ou figurino de novela de época. Algumas ainda se agarram às beiradas da memória, outras já foram pro brejo com chifres e cascos.

 

“Balela” virou fake news nos telejornais. “Quiproquó” — do latim quid pro quo — anda escondida em tirinhas da Mafalda. “Sacripanta”, que já foi insulto respeitável pra trambiqueiro com pedigree, hoje parece nome de vilão da Disney. E o que dizer de “lambisgoia”, “sirigaita” e “traulitada”? Palavras com tempero e textura que, hoje, provocam mais espanto.

 

“Braguilha” e “esparrela”, coitadas, também caíram no esquecimento sem pedir socorro ao Google antes de sumirem. “Estapafúrdio”, que já nomeou todo tipo de disparate, agora cede espaço a “bizarro” ou “exótico”. E “tabefe”, que para minha querida mãe soava bem mais encorpado do que um simples tapa na cara, anda sumido nos cantos da língua.



Ilustração: Uilson Morais (Umor)


 

Não é que os jovens sejam analfabetos desalmados. É que os contextos mudam. A gambiarra que sustentava “fazer um gato” está sendo criminalizada e digitalizada. Daqui a pouco, nem vai haver fio de cobre pra puxar energia de graça. E aí? A expressão morre de fome e sede.

 

A linguagem está virando um mosaico apressado — mistura de emoji, figurinha e gíria desidratada. “Cringe” aponta o dedo, “gatilho” dispara sem aviso, “flopar” afunda antes de zarpar, e “cancelar” transforma tropeços em apedrejamentos virtuais. E quem, como eu, já acumula mais ontens do que amanhãs, tenta decifrar o “sextou” numa semana em que todo dia parece quinta-feira ou sábado.

 

Tudo bem, é o curso natural da língua. Ela muda como o tempo e, feito o prato do dia, sempre volta com alguma releitura. Ainda assim, bate uma tristeza nesse adeus sem cerimônia. Uma saudade de quando “nem que a vaca tussa” significava teimosia inegociável. De quando “quem tem boca vai a Roma” era incentivo e não metáfora ao GPS.

 

Talvez no futuro existam museus de expressões. Salas interativas, com hologramas explicando o que era “pulga atrás da orelha”, “fazer vista grossa” ou “matar dois coelhos com uma cajadada só”. E um cantinho reservado a termos que, pela bela sonoridade, não mereciam jamais o esquecimento: “bagatela”, “chapuletada”, “faniquito” e “rebuliço”.

 

Até lá, paciência. Entre um “pense numa coisa arretada de boa!” e um “que esculhambação é essa!”, vamos tentando manter vivas expressões que, se já não cabem no dia a dia, ainda encontram abrigo na memória de seminovos como eu.

 

Porque toda expressão ou palavra que morre por falta de uso é mais um velório sem flores nem velas. Um enterro linguístico sem lágrimas nem preces.

 

E a língua vai perdendo não só os olhos da cara, mas a alma também, quando a gente esquece de pegar lápis, papel e, volta e meia, brincar com ela.  

julho 16, 2025

O silêncio das tartarugas

O medo da insignificância social tem um papel decisivo na vida do ser humano. Na metade dos anos 1980, eu já acumulava mais de uma década de trabalho e nutria um sonho nada modesto, desses que preenchem o espaço entre a sexta-feira e o domingo: acertar na loteria esportiva. E apostava semanalmente, até perceber que estava apenas encurtando o caminho dos outros para a sorte grande. Entendi que o verdadeiro azar era insistir.

Hoje, quatro décadas depois, volta e meia me pego repassando antigos devaneios, como aquele em que, sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, sou preso, por engano, durante uma viagem em férias a Buenos Aires. Confundido com um perigoso subversivo, acabo nas garras da ditadura argentina — aquela bruxa de saias engomadas e cassetete em punho que tomou o poder de março de 1976 a dezembro de 1983, de início sob a batuta e o bigode do general Jorge Rafael Videla.


E se — imagino eu —, após sessões de tortura que me deixassem cego, mudo e surdo, jamais tivesse conseguido provar minha inocência? E se, por um capricho do destino ou uma assinatura equivocada de um juiz, fosse solto agora? O que encontraria ao sair? Que Brasil me aguardaria, depois de quatro décadas de silêncio? Quem dos meus teria me esperado?


Foi assim que soube da história de outro Jorge, semana passada, num site de notícias. Não o Videla, mas uma tartaruga macho da espécie Caretta caretta, nascida no litoral brasileiro, que, em março de 1984, teve a infeliz ideia de atravessar o caminho de uma rede de pesca em Bahía Blanca, na costa argentina.



Reprodução: Redes Sociais


Capturado por acidente, acabou transferido — num misto de trapalhada logística e descaso científico — para um aquário em Mendoza, no coração da Cordilheira dos Andes. Sim, a mais de mil quilômetros do mar!


Ali, Jorge sobreviveu. Quase quarenta anos nadando em círculos, em água doce, alimentado com ovos de galinha e carne de vaca. Virou atração turística, como quem cumpre pena de prisão perpétua em cela com visitação monitorada — uma penitência disfarçada de zoologia.


Mas um dia alguém se comoveu — talvez descendente de Borges, Quino ou Mercedes Sosa. E outro alguém também, mais outro... Até que 60 mil pessoas assinaram uma petição pedindo que o animal, coitado, tivesse direito a algo melhor do que um tanque com bifes, claras, cloro e selfies. 


A Justiça argentina, sensível ao clamor, autorizou a soltura. Em 2021, Jorge embarcou num voo rumo a um centro de reabilitação em Mar del Plata.


Ali, Jorge reaprendeu o que nunca deveria ter esquecido: a caçar, a perseguir cardumes, a viver sem grades como todo quelônio que habita os mares.


Ensinaram-lhe que tartaruga que é tartaruga não pede delivery nem come na mão de ninguém. Três anos depois, os biólogos decidiram: ele estava pronto.


No dia 11 de abril deste ano, Jorge foi levado num navio militar, a 20 quilômetros da costa. E devolvido ao mar. Saiu nadando sem olhar para trás, rumo ao norte, ao Brasil. “Ele sabe pra onde vai”, disse uma pesquisadora, com um suspiro que misturava alívio e saudade antecipada.


Desde então, já passou pelo Uruguai, deu uma olhada em Floripa e agora ronda Angra dos Reis. Dizem que busca a Praia do Forte, no litoral baiano, onde provavelmente nasceu. Ou talvez só queira reencontrar um pedaço esquecido de si.


Carrega um transmissor no casco. Toda vez que emerge para respirar, emite um sinal. Como quem diz: “Ainda tô aqui.” Mas o chip tem data de validade. Vai se calar em breve. E, se tudo der certo, nunca mais saberemos de Jorge. O que, convenhamos, será uma bênção.


Não é todo dia que uma criatura sobrevive ao confinamento forçado, à dieta de gosto discutível, ao esquecimento institucional e à vitrine do entretenimento. Jorge é exceção. A maioria não volta. Nem tartaruga. Nem gente.


O próprio site de notícias pontua que, nos anos 1980, um golfinho confinado em São Vicente, no litoral paulista, foi solto precocemente. Morreu pouco depois. Nadar exige preparo, sorte. E tempo.


Fico me perguntando: e se fosse eu, agora, libertado depois de quarenta anos sem voz, sem família, sem amigos? Teria que reaprender tudo: a falar por sinais, a caminhar sem escolta, a confiar em humanos, em manhãs e amanhãs. A respirar fora do aquário.


Talvez só me restasse um chip imaginário, colado no peito, avisando de tempos em tempos: “Ainda tô aqui.” Até que o sinal se calasse. 


E eu, como Jorge, talvez sumisse sem fazer alarde — não por revolta, mas por ter entendido, enfim, que o mundo continua redondo e gira, mesmo sem a nossa presença.

julho 09, 2025

O contrabando da liberdade

A gente se distrai e, quando vê, já viveu mais de sessenta anos e continua descobrindo obviedades. Como a de que a liberdade plena só se alcança quando se pode comer e beber à vontade, sem sermão de cardiologista, endocrinologista, nem culpa católica. 

 

Reprodução/Redes Sociais: "Bodega do Sertão"- Maceió/AL



Liberdade, essa velha senhora disputada a tapas por filósofos desde os tempos de Aristóteles, ganha outro sabor quando borbulha numa panela. Para o grego, ser livre era escolher segundo a própria vontade. Ora, que escolha é mais autêntica do que preferir um acarajé ou um caruru em vez de um insosso prato de folhas verdes regado a azeite e repressão?

 

Aristóteles ainda diria que a escolha deve ser orientada pelo conhecimento. Nada mais justo. Mas eu, que já acumulo bem mais certezas do que cabelos e dentes, asseguro: há coisas que só o paladar alcança. Como explicar a felicidade transcendental de uma feijoada no almoço de sábado, precedida de uma caipirosca de lima da Pérsia com rapadura triturada? Há coisas que nem Kant explicaria — muito menos especialistas de jaleco e balança.

 

A filosofia medieval, por sua vez, resolveu meter Deus na história e fez do livre-arbítrio um passaporte para a virtude. Comer virou um torturante teste de fé. E a gula, essa irmã siamesa da luxúria, passou a ser pecado capital. Ninguém mais podia se deliciar com um doce de leite talhado sem ouvir uma ladainha sobre os perigos dos prazeres da mesa. Como se fraturar um dente com um pedaço de quebra-queixo fosse uma forma de rebelião contra o Criador.

 

Dizem que Adão perdeu o paraíso por causa de uma maçã. Mas desconfio de que o verdadeiro estopim foi ouvir no Éden o primeiro “não posso, meu amor, tô de dieta”. Desde então, Eva nunca mais teve sossego — nem o marido teve algo realmente suculento pra comer.

 

Não me leve a mal. Reconheço que o prazer desordenado também pode nos escravizar. Mas que liberdade é essa que só se exerce com alface no prato e água sem gás no copo? Se mastigar cebola crua for o preço da salvação, prefiro desistir — desde que me sirvam abacatada, canjica e cuscuz no café da manhã do Purgatório.

 

Ao longo dos anos, já fui forçado a renunciar a um verdadeiro cardápio afetivo de sabores. Não falo de pratos exibidos como esculturas finas em louças minimalistas. Falo do que me leva de volta a lugares onde fui feliz e sabia disso: cocada, pamonha, sorda preta, suspiro de claras, umbuzada. Cada um deles representa um pedaço da minha meninice em estado pastoso na boca. Hoje, restam lembranças — e, com sorte, uma rabada com pirão servida longe dos olhos da vigilância sanitária do bom senso.

 

É curioso como ninguém nunca me pediu moderação no consumo de rúcula. Nunca vi campanha com os dizeres: “Chega de coentro e couve! Respeite seu corpo!” A militância anti-gula se contenta em demonizar a tapioca com manteiga, mas silencia diante do trauma de infância que é ser forçado a comer chuchu cozido sem sal, com sermão de sobremesa.

 

Os moralistas do prato fundo dirão que me rendo fácil aos prazeres da carne. Eu juro que convivi em paz com eles até bem pouco tempo. Mas, se a vida é uma travessia — como garantem os místicos —, que seja feita com um copo de caldo de cana com pastel de carne moída e azeitonas nas mãos. Não serei eu a atravessar o deserto da existência mastigando palitos de cenoura ou rodelas de pepino.

 

E cá entre nós: se existe pecado em saborear um costelão na brasa com farofa de ovos e vinagrete, então a virtude perdeu o rumo. Porque não há vício em amar o que é bom — lambendo os beiços, com os olhos entreabertos de prazer.

 

Aos que vivem em penitência alimentar, desejo sorte. Aos que me pedem parcimônia, pergunto-lhes se já provaram buchada de carneiro ou sarapatel com molho de pimenta. E aos que tentarem me convencer a trocar duas colheres de pudim de leite por uma barrinha de cereal, aviso logo: não contem comigo para esse tipo de permuta ilícita.

 

Porque a verdadeira liberdade talvez seja isso: poder escolher o próprio pecado — de preferência, com um chope, uma taça de vinho à mão.

 

Ou porque, no fundo, ninguém se liberta de verdade contando calorias. Liberdade de verdade é poder morder a vida com todos os dentes (com os que restaram, pelo menos), sem pedir desculpas pelo pleno desfrute do gozo.

 

Se o dia do Juízo Final vier em forma de balança, que me pesem com justiça, mas deixem meus bolsos em paz — podem esconder apenas umas pedras de rapadura, contrabando da liberdade.

 

E quando de fato chegar a hora da prestação de contas, que seja de alma leve e barriga cheia, ouvindo a sentença enquanto bebo meu cafezinho. Com pão de queijo do lado, pelo amor de Deus!

 

julho 02, 2025

O teatro da bajulação

Num zoológico de egos inflados, metas inalcançáveis e reuniões inúteis disfarçadas de brainstorm, despontam os verdadeiros mestres da fauna corporativa: os puxa-sacos. Mas sejamos honestos: quem nunca afagou um ego alheio, nem que fosse com dois dedinhos de falsidade?


 

O termo, segundo os arquivos empoeirados da caserna, nasceu nos tempos em que soldados de baixa patente carregavam os sacos — de mantimentos, tralhas e até mágoas — dos superiores. A prática foi ganhando contornos mais sutis, menos físicos e mais psicológicos, até se transformar nesse balé de elogios sob medida, sorrisos forçados e silêncios convenientes.

  

Dias atrás, li uma notícia daquelas que, de tão absurdas, só podem ser verdadeiras: a gaúcha Luciana Azevedo, uma profissional de RH, cansada de ver gente competente sendo engolida por tagarelas de gravata ou tailleurs, criou um curso online para ensinar a bajular com método e sem culpa. Nome da joia rara? Puxa-Saco Sem Frescura. Didático e direto, como tapinhas nas costas que mira a promoção.

 

Acertou no alvo: quase duas mil almas já compraram o pacote. E, segundo a autora, a aprovação beira os 100%. Tem até módulo chamado “Seja bobão” — aula magna na arte de pedir permissão para existir sem parecer insolente. Outra pérola? “Inspire seu chefe, mesmo que ele nunca tenha inspirado nem a si mesmo”.

 

A mentora do método jura de pés juntos que não ensina falsidade, mas inteligência emocional. “Fingir é maturidade. Fingir respeito, fingir que engoliu o sapo, fingir que o chefe é um farol de sabedoria. As empresas não contratam pessoas, contratam personagens”, sentencia, como quem já decorou o roteiro da peça do momento.

 

Ela distingue, com a precisão de uma cirurgiã social, dois espécimes da fauna bajulatória: o pavão e o estrategista. O primeiro é espalhafatoso, ri alto da piada sem graça do chefe, organiza vaquinhas para comprar cafeteiras de cápsula em aniversários e ainda sugere uma plaquinha de "Líder do Mês". Já o segundo — o tal puxa-saco inteligente — é discreto, sutil, quase invisível. Uma espécie de ninja corporativo que sabe quando submergir e quando aplaudir de pé.

 

E para quem ainda torce o nariz, Luciana tenta acertar o coração: “Não é sobre ser falso. É sobre sobreviver sem se engasgar com o próprio orgulho”. Afinal, o que dizer de um teatro onde engolir sapo virou competência comportamental e abrir a boca na hora errada pode custar sua vaga no camarim? 

 

Ela ainda oferece sete mandamentos para o puxa-saco contemporâneo:

1. Finja que é bobão – deixe que o chefe brilhe. Afinal, holofote demais revela espinhas e rugas.

2. Diga que ele é sua inspiração – mesmo que ele só tenha contribuído com um “é isso aí, vamos lá!”.

3. Sugira, sem contrariar – nunca diga que algo está errado; no máximo, que é melhorável. Com ternura.

4. Mostre defeitos humanos – seja gente como a gente: esqueça um prazo, derrube café, erre o nome do colega.

5. Finja paz, mesmo em guerra – o mundo não precisa saber que você odeia apresentações de PowerPoint com todas as suas células.

6. Aprenda a linguagem do seu chefe – tem deles que gosta de bajulação explícita. Outros preferem sutileza. Estude antes de puxar.

7. Evite ser pavão – nada de gargalhadas exageradas, presentes ostentatórios ou tapinhas constrangedoras na lombar alheia.

 

No limite, o que move o puxa-saquismo não é vaidade, mas sobrevivência. Quem já viu alguém medíocre escalar o organograma feito cabrito em escada de rodoviária sabe do que estou falando. O competente, muitas vezes, só assiste resignado — de braços cruzados e ego latejando.

 

Não vou negar, confesso que já pisei nesse palco. Talvez continue pisando, com figurino mais discreto. Até porque, sejamos francos, em algum momento da vida, puxamos o saco de alguém — um chefe, um amigo, um filho, um neto. Há quem diga que isso é afeto. Outros chamam de conveniência. Tudo não passa de um jogo semântico.

 

A rigor, puxar saco é só mais um ato cênico: comédia para uns, tragédia para outros — mas sempre em cartaz, com plateia lotada e fila de espera para fazer parte do elenco.

E você? Vai seguir de espectador indignado, fingindo que não tem nada a ver com isso? Ou já decorou a fala, os trejeitos e está de figurino pronto, só aguardando a deixa para entrar em cena?

João vive. Viva!

JOÃO VIVE. VIVA! Hayton Rocha Em Copacabana, onde a maresia corrói metais, mas conserva memórias, vive João Cândido de Lima Neto. Desde feve...