UMA CALCINHA PRETA NA NOVELA
Hayton Rocha
Semana passada, fui provocado por um sábio amigo, desses que citam o Código Penal de cabeça e ainda arrumam tempo para escrever textos fabulosos ou dedilhar o violão sentimental aos sábados. Pedia que eu comentasse o mais novo mexerico jurídico-amoroso do Fórum de Cachoeiro de Itapemirim, cidade onde as dores humanas chegam com firma reconhecida desde que suas águas batizaram Rubem Braga e Roberto Carlos.
É que, na virada do mês, a Justiça capixaba amanheceu diante de um enigma capaz de eclipsar habeas corpus, operações sigilosas e delações premiadas. Acredite: uma calcinha preta usada, abandonada no chão do Núcleo de Audiências de Custódia, área de acesso restrito e aura solene, onde normalmente só transitam algemas, angústias e autos cuidadosamente numerados.
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| Ilustração: Uilson Morais (Umor) |
O burburinho correu mais rápido que intimação de magistrado com enxaqueca por conta de noite mal dormida. Virou meme de bacharel desempregado, piada em grupo de WhatsApp e pauta para ouvinte de rádio na madrugada. Teve até juiz que classificou o episódio como “grave”.
Eu, na minha ignorância jurídica, discordo. Grave, para mim, é gente preta continuar morrendo antes de viver com decência. Grave é criança negra estudar em escola sem muro, sem livros e sem futuro. Grave é o Brasil fingir que racismo é só questão de opinião. Grave é a desigualdade seguir escancarada, recebendo férias, décimo terceiro e estabilidade por conta da nossa indiferença.
Calcinha preta no Fórum é só uma extravagância burocrática. Uma nota de rodapé na monotonia dos despachos. Talvez até lembrete involuntário de que, apesar de toda liturgia, o corpo humano insiste em dar as caras onde menos se espera — assim como o amor, as canções e as palavras, como cantava Ângela Ro Ro.
Mas meu amigo insistiu. Contou até que o Tribunal determinou revisão minuciosa das câmeras de segurança. Imaginem a cena: servidores bebendo café requentado, olhos vermelhos, procuram não um criminoso, não um flagrante, não um fugitivo. Procuram uma alma que ousou amar na contramão do expediente.
E o povo, em sua ansiedade de costume, já quer pular capítulos da novela da vez. A pergunta deixou de ser “como foi parar ali?” e virou: “de quem será?”.
Meu amigo, romântico incurável, pinta o cenário com tintas fortes: final do expediente, corredor vazio, duas pessoas que passam o dia julgando culpas alheias resolvem aliviar as próprias. Uma advogada insinuante, talvez. Quem sabe um estagiário de olhar carente, “moreno alto, bonito e sensual”, como sugeria antigamente a banda Herva Doce. Cochichos e risos. Toques que viram endosso. O desejo que arde sem pedir autorização judicial.
Quando o impulso lateja, ninguém protocola requerimento.
Mas paixão é bicho arisco. Basta um ranger de porta, um passo no corredor, e o coração dispara feito réu ao ouvir sentença. As roupas voltam ao corpo como podem, às pressas, um tanto desalinhadas. Cada um foge para um lado, salvando o pouco de pudor que resta. Só a calcinha preta fica — testemunha muda, porém eloquente, estendida no chão como poema inacabado.
Agora falam em perícia. Luvas, microscópio, pinças. Como se estivéssemos diante de um capítulo inédito de Dostoiévski, Jorge Amado ou Nelson Rodrigues. Como se da investigação dependesse o destino moral e cívico do Espírito Santo. Do Brasil de todos os santos.
Circularam memorandos, organizaram diligências, reuniram servidores para revisar horas de gravação. Tudo muito certinho, tudo muito sério, para que ninguém diga que faltou rigor na apuração dos fatos.
E enquanto o aparato se mobiliza, o calendário nos lembra: é novembro. Mês em que morreu Zumbi dos Palmares. Mês dedicado à Consciência Negra. E o país, fiel à sua vocação para o desvio de foco, prefere debater o mistério de uma peça íntima preta.
Lá fora, na calçada do Fórum, seguem as mesmas filas de corpos cansados, vidas que aguardam sentença desde o berço.
Gente que nasce ré, cresce ré e morre antes do alvará de soltura.
A peça esquecida no chão virou assunto. A outra peça — a que falta desde sempre — continua invisível: o reconhecimento de que não é a calcinha que importa, é a textura da pele de quem espera do lado de fora, segurando documentos, crianças e esperanças frágeis.
Agora falam em laudo técnico de DNA. Como se buscassem as tais “marcas do amor nos nossos lençóis”, como canta Chico Buarque.
A calcinha preta vai ser embalada, catalogada, arquivada. A novela de quem chega algemado, ou limpa o banheiro, ou serve o café, ou varre o corredor, não. Essa ninguém coleta.
Por isso, continua no ar — em reprise diária, no Brasil inteiro.












