terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Bolacha de Leite de Mãe de Jacaré



Nos anos 60, pelo menos uma vez por ano, papai, eu e meus irmãos esperávamos na plataforma da estação ferroviária de Patos (PB) o facho de luz e o apito do trem que traria nossa avó materna – mãe, para diferenciar de mamãe e porque nunca gostou de ser chamada de vovó – para ficar conosco algumas semanas no Sertão, longe do Sítio Jacaré, onde morava às margens do Rio Paraíba, na zona rural de Pilar (PB).


Vinha como de costume, com o coração dividido entre matar as saudades da filha e dos netos e deixar em casa seu primo e marido, nosso avô, que não arredava o pé do chão onde nascera por nada nesse mundo. Sofria também por ter que largar por alguns dias o tititi com que distribuía milho para galinhas e pintos em seu quintal.
Como não podia nos oferecer presentes caros, trazia sempre uma sacola com algumas broas escuras e cheirosas, embrulhadas em papel grosso, a que dava nome de “bolacha de leite”. Ela nunca concordou com os nomes pelos quais aquela iguaria que levava para seus netos era chamada na região: sorda, soda preta, bolacha preta, engasgador ou mata-fome.
Muito tempo depois, morando em Brasília (DF), já no final dos anos 80, presenciei meus filhos, entre beijos e abraços com minha sogra, receberem alguns brinquedos eletrônicos caros, e concluí que a felicidade deles em nada diferia da minha quando diante das tais bolachas de leite. Na semana seguinte, contudo, recebi a notícia de que Mãe de Jacaré havia falecido de repente e que já fora até sepultada. Lembro como hoje do travo em minha garganta e de algumas lágrimas que molharam os papéis com que trabalhava.
Ano passado, perambulando na Feira de Ceilândia, no Distrito Federal – espaço criado, em 1971, para reduzir a ocupação de áreas próximas ao Plano Piloto descobri que a bolacha que tomou muito mais doce minha infância ainda hoje é fabricada artesanalmente no Nordeste e não leva uma gota de leite sequer. E feita de farinha de trigo, mel de rapadura, manteiga, cravo, canela e gengibre.
Já na primeira mordida, a mesma sensação prazerosa de meio século atrás, mas com um ingrediente adicional: a lembrança do carinho com que Mãe de Jacaré, com sua marrafa nos cabelos longos, o olhar cintilante sob duas sobrancelhas espessas e o sorriso iluminado que me fazia esquecer todos os aperreios de criança, me abraçava apertado até doer às costelas.
Sabe-se que a angústia é uma sensação de vazio no peito, uma dor difusa que alcança a alma, aperta o coração, embrulha o estômago, às vezes mexe até com os intestinos, mas nunca se sabe de onde vem. Chega quando menos se espera, acompanhada de outros maus sentimentos tais como o medo, a ansiedade, o desassossego e a insegurança. Mas posso garantir que até hoje a indústria farmacêutica não criou remédio para essa agonia tão poderoso quanto a bolacha de leite de Mãe de Jacaré.

14 comentários:

  1. Ótimo texto!
    Sua forma leve de nos remeter à infância, faz-nos crêr que a felicidade mora, de fato, nas coisas simples e nas pessoas que somos capazes de amar. Muito bom!

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  2. Muito bom, tio! Adorei que você criou o blog para juntar todos os seus textos e memórias. Muito bom também saber sobre esse tempo que não vivi (e até "conhecer" pessoas que não conheci) pelos seus olhos.

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  3. Legal, Hayton! Lembranças da vida que embalam o presente e futuro!

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  4. Maravilha ! Vc descreveu minuciosamente a sua infância e me fez lembrar a minha , afinal eu tb ganhava de presente de ‘mãe de jacaré’ as bolachas pretas

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  5. Lembranças que Nos faz senti crianças.
    Excelente Texto. Viver, também é lembrar do passado.

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  6. Lembrar do passado é viver em dose dupla, presente e passado e leva a sonhar num futuro! Lindo texto, parabéns!

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  7. Adorei o texto e a lembrança que afaga o coração. Ah, perfeita sua descrição de "angustia"!

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  8. Eita! Já reli essa crônica " trocentas" vezes e me emociono quando lembro o lenço de seda estampada, amarrado embaixo do queixo e as cascas de " laranja cravo" que ela vinha cheirando na viagem para evitar a famosa " enxaqueca" da qual fui herdeira. Ela me chamava de " Dêda" ( e ninguém mais me chamou assim!!!)

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  9. Eita! Já reli essa crônica " trocentas" vezes e me emociono quando lembro o lenço de seda estampada, amarrado embaixo do queixo e as cascas de " laranja cravo" que ela vinha cheirando na viagem para evitar a famosa " enxaqueca" da qual fui herdeira. Ela me chamava de " Dêda" ( e ninguém mais me chamou assim!!!)

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  10. Eita! Já reli essa crônica " trocentas" vezes e me emociono quando lembro o lenço de seda estampada, amarrado embaixo do queixo e as cascas de " laranja cravo" que ela vinha cheirando na viagem para evitar a famosa " enxaqueca" da qual fui herdeira. Ela me chamava de " Dêda" ( e ninguém mais me chamou assim!!!)

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  11. Na minha infância, eram os biscoitos de mantecau que minha avó Vesitacion Molina Marques, espanhola de Málaga, fazia. Hoje me contento com os sequilhos que lembram, ainda que de longe, aquela jóia que eu saboreava como se fosse a última coisa que iria comer, no mundo.

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  12. Reminiscências que revigoram a alma. Belo relicário existencial. Parabéns!

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