sábado, 10 de agosto de 2019

Doidice de menino


Toda vez que perguntei a uma criança o que ela gostaria de ser quando crescesse, quase sempre ouvi respostas parecidas: advogado, médica, engenheiro, professora, policial. Natural que fosse assim. Afinal, são atividades ainda com certo glamour por envolver doses de heroísmo, vida e morte, justiça e liberdade, ensino e aprendizagem. Mereceram até grandes filmes como “A Sociedade dos Poetas Mortos”, “Patch Adams - O Amor é Contagioso”, ”A Ponte do Rio Kwai”, “Tempo de Despertar”, “12 Homens e uma Sentença”, “Cabo do Medo”...

Quando alguém dizia que gostaria de ser bancário, eu desconfiava: a bem da verdade, queria ser como o pai, o tio ou o primo. Virou profissão tão sem graça que está em processo de extinção e até hoje nem novela de TV foi feita tendo bancário como protagonista. Claro, não estou falando do mercado financeiro em si, que inspirou os ótimos “Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme” e “O Lobo de Wall Street”.



Afora meus primeiros anos de vida, quando disse a minha mãe que seria vaqueiro - até hoje, não posso negar, gosto de cheiro de curral, de capim molhado, de ouvir aboio e mugido de bezerro -, coloquei na cabeça desde cedo que iria trabalhar no Banco do Brasil. Não porque nasci para ser bancário, mas porque queria fazer o que fazia meu pai: receber gente que precisava guardar dinheiro no banco ou tomar empréstimos, escrever cartas com máquina de datilografia, carimbar e assinar papéis com caneta tinteiro Parker 51, tudo isso numa sala simples com mesa de trabalho, cadeira, arquivo com gavetas, ventilador e lixeira.


Mais tarde, quando a fome apertasse, iria para casa encontrar minha família  e almoçar bife “marinheiro” com arroz, feijão e farofa. Depois, cochilaria uns 20 minutos antes do segundo turno. Na boca da noite, ao retornar de vez, acharia graça vendo meus filhos disputarem o “direito” de trazer minhas sandálias, antes de lhes contar histórias de “O Mundo da Criança”. Todos dormiriam felizes, de banho tomado e barriga cheia, protegidos das almas penadas por mosquiteiros, lençóis cheirosos e pelos poderes do Sagrado Coração de Jesus da parede da sala de jantar.


Sei que mais parece doidice de menino   - bem que meus avós diziam “esse menino é cheio de marmota!” -, mas lembro do tempo em que resolvi ser bancário toda vez que releio o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade.


“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.”

19 comentários:

  1. Esqueceu da enceradeira no mosaico da casa, aos sábados,enquanto ouvia na radiola de portas de correr, "Palo Bonito"

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  2. Virou escritor 👏🏼
    Fico esperando toda semana suas crônicas 😀
    Meus pensamentos voam ao passado !!!

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  3. 😊 Muito bom. Não vivi essa época mais suas crônicas relatam tanta riqueza nos detalhes que sou capaz de projetar os momentos como se lá estivesse.
    Perfeito!!!

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  4. Perfeito... moldávamos nossos sonhos pelo que víamos de real...

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  5. Verdade,nossa tendência mesmo é imitar os pais e é muito bom quando temos bons exemplos
    Fico sempre na expectativa de belos comentários como este que nos leva a reviver o passado.Só sendo mesmo sobrinho e afilhado do Enoch Rocha. Ele deixou muitos trabalhos nesse estilo. Maravilhoso! Cristina

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  6. Excelente! Muito saborosa e terna a crônica. Gostei!

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  7. Muito bom. Infância... parece coisa que não existe mais.

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  8. muito bom. Relatas o vivido com palavras que "desenham" a cena. Raro dom.

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  9. Maravilhoso. Assim como vc, tive experiência e sonhos. Alguns realizados, outroa ainda aos meus 54 anos a realizar-se. Mas a nossa criatividade e memória vai da infância a velhice, intáctas. Vida q segue.

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  10. Minha brincadeira preferida na infância, ser bancária igual ao meu pai e tios. 😄 ... Segure o cheque para descontar no dia 20...😂

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  11. Rapaz, quando aprendi e comecei a escrever, a professora passou um dever de casa com algumas questões... escreva o nome do seu pai, da mãe, da cidade em que nasceu..... e o que você quer ser quando crescer?
    Não tive dúvidas! Respondi “bancário”! Pra mim, aos 7 anos, não teria profissão mais interessante. Meu cunhado trabalhava no BB. Era estimulante vê-lo todos os dias se dirigindo ao Banco do Brasil, certamente o lugar mais nobre da cidade, em Bom Jesus-PI.

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  12. Faltou "jogador de futebol" e "super-herói" na relação, que era o que eu queria ser quando criança. Felizmente, só não deu certo o primeiro...

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    1. Uma vez pulei da janela do segundo andar com um guarda-chuva aberto, certo de que flutuaria feito Mary Poppins. Por sorte, não quebrei nada, mas nesse dia decidi que seria um super-herói que não voava.

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  13. O que você diz na sua crônica vem ao encontro do que eu sempre falei: nunca vi um menino querer ser bancário. Quer ser médico, engenheiro, advogado, jogador de futebol, artista… menos bancário. Ser bancário acontece ou acontecia como um acidente de percurso, se estava em outra atividade e de repente surgia a oportunidade de entrar no Banco do Brasil. Aprovado, largava-se tudo em troca de uma estabilidade. Hoje, não mais.

    Eu estava jogando futebol profissional quando surgiu a oportunidade de entrar no BB. Entre o prazer de vestir a camisa 9, a alegria de um gol, o abraço dos companheiros e a certeza do salário na conta todo dia 20, não tive dúvidas: assinei contrato com o banco e fui fazer os meus gols pela Aabb. Com 19 dias de Banco lá fui eu pra Fortaleza jogar o Norte e Nordeste de futebol de salão. Pedi dinheiro emprestado pra viajar. Não tinha recebido, ainda, o primeiro salário.

    Em 1980, eu e você, formamos o ataque da Aabb-Maceió no futebol de salão. Fizemos uma ótima jornada estadual perdendo apenas o último jogo por pura infelicidade.
    Nosso time foi campeão invicto do torneio início e do campeonato de futebol de salão do sindicato. Mas você não participou do campeonato, sendo substituído pelo Jalbas, porque botou o pé no mundo e a gente sabe no que deu: alcançou os mais altos cargos do BB.

    É isso aí! Mais uma ótima e deliciosa crônica.
    Gosto muito desse poema Infância, de Drummond. Meu poeta preferido junto com Bandeira e Pessoa.

    Grande abraço.

    Marival.

    OBS. Se tiver foto daquele time, me envie.



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  14. Realmente, antigamente ser bancário era uma prestígio imensurável, e lá em casa, papai sempre foi inspiração, autodidata, todos tentamos ser bancários , alguns foram até o dim, outros, desviaram o caminho, como eu. A crônica retrata perfeitamente nossos anseios na época , detalhes , sensações...Parabéns Hayton, pela bela narração de sua infância, compartilhada com todos os irmãos!

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  15. Grande Hayton,
    Um de texto, narrativa que tocar no coração .
    Parabéns

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  16. Um texto digno de escritor, narrativa que toca o coração.

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