sábado, 10 de agosto de 2019

Mitos também vacilam

Em maio de 1997, naquele cipoal de problemas em que se debatia a agroindústria canavieira em Pernambuco, no final dos anos 90, foi feito um acordo inédito na Zona da Mata Sul, envolvendo Banco do Brasil, Ministério de Política Fundiária, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Usina Central Barreiros S.A. e Cia. Açucareira Santo André do Rio Una. O desfecho, porém, poderia ter sido bem melhor.

As duas usinas do Grupo Othon Bezerra de Melo eram responsáveis por dívidas atrasadas no montante de R$ 16 milhões e, depois de longa conversa, toparam pagar a conta cedendo sete mil hectares de terras, a maior parte com canaviais desde 1885, ano da fundação da Central Barreiros, ou, quem sabe, desde a época da Carta de Doação da capitania de Pernambuco, assinada em 1534 por D. João III, em favor do capitão donatário Duarte Coelho, que se destacara nas campanhas lusitanas na Índia.

Cinco mil hectares seriam repassados para o Ministério de Política Fundiária – que compensaria o banco com Títulos da Dívida Agrária, TDA – para assentamento, de forma pacífica, de 145 famílias sem-terra. Essas famílias, sob orientação técnica do Incra, passariam a explorar lavouras alternativas à monocultura da cana-de-açúcar. E os dois mil hectares restantes, localizados em áreas urbanas, seriam loteados para venda em condições normais de mercado.

Para fechar o acordo, o grupo Othon ainda exigiu novo crédito à “Santo André do Rio Una” porque, sendo mais moderna e melhor localizada, teria maiores chances de recuperação do que a antiga “Central Barreiros”. Buscaria, assim, reduzir de tamanho, ganhar eficiência operacional, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E não foi difícil convencer a diretoria do BB de que o negócio era vantajoso para todas as partes. O financiamento foi então aprovado, mas limitado a 10% do montante que seria recebido, em títulos, do Governo Federal.

Embora o setor açucareiro estivesse cada vez mais decadente e os usineiros não fossem mais a expressão da elite empresarial dos tempos de “Casa Grande & Senzala”, sabíamos que mexer naquela estrutura fundiária teria seus riscos. Cogitava-se, pela primeira vez, conjugar reforma agrária em larga escala com efetiva assistência técnica e diversificação de lavouras na Zona da Mata, para que o estado superasse sua mais grave crise financeira na história. Por isso, assim como os dirigentes do grupo Othon e do BB, o então ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, considerou o acordo  “um marco histórico”

Quem discordou e nem foi à solenidade de assinatura do acordo foi o governador Miguel Arraes, alegando, no dia do evento, que "o fato principal não é a reforma agrária, mas o saneamento das usinas". Disse ainda ser contra a posição do BB, porque o acordo seria "meramente financeiro e parcial, por não envolver as dívidas com o Estado de Pernambuco". 


Todo ser humano um dia acorda indisposto, chateado, e acaba tomando decisões que normalmente não tomaria. O mal humor matinal, reflexo de noites mal dormidas, passa. Mas algumas decisões impactam para sempre a vida de muita gente.

Penso que o governador naquela manhã não percebeu - ou não foi bem assessorado nesse sentido - que a única chance do estado receber seus créditos seria manter “viva” uma usina daquele grupo econômico, para quem o acordo era caso típico de “vão-se os anéis, mas que fiquem os dedos”. Ou talvez não visse com bons olhos o protagonismo no assunto de Raul Jungmann, político pernambucano de origem socialista que ocupava com relativo destaque, nos anos FHC, ministério-chave para o sucesso do negócio.

O processo evoluiu no que foi possível entre o banco, o ministério, o Incra e as usinas, mas, sem o apoio do governo estadual na largada, não teve a velocidade nem a convergência de interesses que aceleram transformações sociais num piscar de olhos. E as duas usinas acabaram indo à falência, anos depois, engolidas pela crise que fechou as portas de várias delas.

Depois de mais 20 anos, vejo esta notícia que me fez relembrar o caso:

"Incra em Pernambuco entrega primeiros títulos definitivos de 2018 a assentados

A Superintendência Regional do Incra em Pernambuco (Incra/PE), sediada em Recife, entregou... os primeiros títulos definitivos deste ano a beneficiários da reforma agrária. No total, 60 documentos foram concedidos a moradores dos assentamentos Baeté, no município de Barreiros, e Campinas, em São José da Coroa Grande, ambos localizados na Zona da Mata Sul do estado.
Com os chamados títulos de domínio em mãos, as famílias passam a ser proprietárias das terras e podem acessar linhas de crédito mais robustas que permitam incrementar a produção (...)
(...) Saulo José da Silva foi um dos contemplados com o título de domínio. ‘É uma alegria muito grande poder dizer agora que sou dono de parte das terras onde eu nasci e me criei’, disse o assentado, que reside no Engenho Campinas, antiga Usina Central Barreiros.”

Quem leu meu último post (O mito Miguel Arraes) pode ter ficado com a impressão de que figuras lendárias são infalíveis e acertam sempre. Todos nós, seres humanos de carne e osso, acertamos e erramos todos os dias. "Só os médicos são profissionais de sorte. Seus acertos brilham ao sol. Seus erros, a terra cobre" (Molière)


9 comentários:

  1. Bom Demais! Além de ótimos texto, história/retratos da Vida.
    Parabéns

    ResponderExcluir
  2. Belo relato histórico, Hayton! E muito bem escrito! Acho que você dormiu bancário aposentado e acordou escritor!! Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Todos erram... pq ele não ?
    #ele sim #eletambem...
    Nasser.

    ResponderExcluir
  4. Você está escrevendo cada dia melhor

    ResponderExcluir
  5. Grande relato. Infalível só Deus. Mesmo assim, nem todos os humanos acreditam no que ele faz.

    ResponderExcluir
  6. Adorei os detalhes históricos. Parabens .

    ResponderExcluir
  7. Parabéns pelo relato.
    A leitura leve e agradável.

    ResponderExcluir