quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Papo reto


Era o próprio coronel Amaral, ex-secretário de Segurança Pública de Alagoas, que, no final do século passado, já se dizia adepto do discutível lema “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos só para humanos direitos”. Ai de quem duvidasse disso!

Conheci-o em meados de 1995. Acompanhava numa audiência, que me solicitara no dia anterior, seu velho amigo oficial da reserva do Exército, coronel Humberto Bezerra, sócio-proprietário e então presidente do BicBanco, credor de várias operações vencidas em nome de prefeituras alagoanas.

Embora o Banco do Brasil fosse responsável pelo pagamento  do Fundo de Participação dos Municípios – por ordem do Tesouro Nacional –, esclareci que não seria possível retirar das contas das prefeituras os valores em atraso sem expressa autorização. Mas me dispus a orientar nossos gerentes para que tentassem convencer os prefeitos a renegociarem as dívidas atrasadas.

Satisfeito com o desfecho da audiência, o coronel Amaral fez questão de registrar na saída: “Soube que você chegou criança aqui em Alagoas e vejo que é gente boa. Se precisar de mim, é só ligar. Nada como uma conversa franca pra conhecer uma pessoa...”. Devia falar daquilo que hoje em dia a molecada chama de um papo reto.

No dia seguinte, chegou à recepção da superintendência um pacote em meu nome, contendo algo incomum: um revólver calibre 38, prateado, seis balas, com documento de porte, segundo o remetente para “minha defesa pessoal”. Do seu jeito, quis o coronel apenas ser gentil, retribuindo a atenção dispensada a seu antigo colega de farda.

Com três filhos menores e sem nunca haver disparado um tiro sequer – a não ser de espingarda de ar comprido em "tiro ao alvo" de festas no Interior –, pensei em me desfazer do “mimo” mas logo percebi que não seria tão simples. Estava registrado em meu nome e poderia me complicar em eventual exame de balística, caso fosse utilizado de forma criminosa por terceiros.

Devolver poderia ser interpretado como desfeita de minha parte. Resolvi então separar os projéteis da arma de fogo e escondê-los até o dia em que deixasse Alagoas. O sossego só reapareceu lá em casa bem mais tarde, quando da campanha nacional de desarmamento da população.

Menos de três meses depois recebi o gerente de uma de nossas agências, bastante assustado com uma ameaça de morte que teria sofrido naquela manhã. Ele vinha conduzindo inquérito administrativo para apuração de irregularidades que poderia resultar na demissão de uma pessoa.

Contou-me que alguém ligou perguntando se ficara satisfeito com a peixada que comeu no almoço do dia anterior (um domingo), ao lado da mulher e dos filhos pequenos, num restaurante próximo de sua casa. Em seguida, perguntou se não temia o que pudesse acontecer, caso insistisse em prejudicar a vida dos outros.

Ouvi o relato e questionei se por acaso fazia ideia de quem estaria por trás daquela ameaça. Disse que desconfiava que poderia ser algum parente da pessoa que estava respondendo ao inquérito administrativo. Mas como não havia provas, não queria, óbvio, fazer ilações, levantar falso testemunho. 

Não era a primeira nem seria a última vez que me procuravam em pânico, sob ameaça, mas algo me dizia que se tratava de coisa mais séria. Era nessas horas que me perguntava diante do espelho: isso aqui é mesmo atividade bancária? Quem disse que "cão que late não morde"?

Lembrei do coronel Amaral, peguei o telefone e pedi sua opinião sobre o caso. Contei os fatos rigorosamente como me foram relatados. No mesmo dia, foram intimados a comparecer à Secretaria de Segurança Pública:  o gerente que se sentia ameaçado, a pessoa que poderia ser demitida e alguns de seus familiares, escolhidos, claro, nem tanto aleatoriamente.

Conhecido por seu temperamento imprevisível, o coronel começou a reunião em tom amistoso, falando sobre a enorme admiração que nutria pelo BB, do respeito pelo superintendente que conhecera havia pouco tempo, até chegar à ligação que recebera, reproduzindo-a passo-a-passo, esmiuçando cada detalhe de forma mansa e didática.

De repente, seu rosto transfigurou, ficou encarnado. Voltou-se então para os familiares – que ouviam a tudo com ar de “onde ele quer chegar com essa conversa mole?” –, deu um tapa na mesa e esbravejou: “se não for nenhum de vocês, procurem e achem quem anda fazendo isso com o gerente do BB, se não todos irão prestar contas comigo, fui claro?!” 

De fato, nada como um papo reto. Não sei se foi apenas coincidência, mas o gerente pôde concluir em paz o trabalho que vinha fazendo. E nunca mais me procurou para falar de ameaças. Só de atividades bancárias.

40 comentários:

  1. Este tipo de abordagem é questionado, contudo, gera resultados. O difícil é identificar a hora e o caso certo para aplicar.

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  2. Concordo plenamente com o Ademar, por isso apenas os mais experientes, e bem mais, são capazes de identificar o momento certo para aplicar.

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  3. Que Papo reto! Os Coronéis do Nordeste eram famosos pelos rigores das decisões. Boa resenha. Mais uma vez parabéns
    Abraços

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  4. Lembro bem da época em que o Coronel Amaral comandou a segurança pública em Alagoas, Hayton. Simplesmente não havia espaço para bandidos!

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  5. Aventuras policiais de um bancário com o coronel!!!!!

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  6. Nada como um papo reto. Tem gente que só entende assim. Confesso que ficaria tentado a ficar com o revolver.

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    1. Duvido, Marcão! Até sem balas ou “de brinquedo” o bicho é perigoso. Tanto mais se o sujeito tiver a cabeça grande, nos dias de hoje, com tantos “snipers” por aí... Rsrs

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  7. O Coronel Amaral marcou uma época na segurança pública do Estado de Alagoas. Há muitas histórias sobre suas ações, a exemplo da crônica, bem como muito folclore e exageros creditado ao Coronel.

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  8. impressionante está história e mais ainda a sinuca de bico com o presente.

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  9. Que texto foda! Eu, lendo, tomei o susto que os familiares devem ter tomado.

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  10. Concordo com o filósofo Cel. Amaral, e acrescento ao meu dia a dia, novo jargão filosofico:”direitos humanos, são para humanos direitos”...muito bom mesmo.

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  11. Posso até imaginar sua cabeça ao receber esse gerente, pensou logo na família dele. Mas, com sua sapiência, tomou a atitute certa, na hora certa, com a pessoa certa. 👏👏👏

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  12. As histórias do Coronel Amaral são famosas. Excelente narrativa. Conte mais. Grande abraco.

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  13. Na nossa atividade passamos por poucas e boas. Valeu, Hayton.

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  14. Como dizem, Alagoas não é para amadores.
    E o Brasil todo sintetizado numa pequena área geográfica.
    ACCampos.

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    1. Como se dizia na época, Antônio Carlos, o mais tolo no pedaço dava beliscão em tijolo! Sobrevivemos para contar.

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  15. Esse eu conheço de perto. Sou amigo de seus filhos Belinha e Zé Emílio há quase 40 anos. Frequentei muito sua casa em Maceió e sua fazenda em batalha. Ano passado ficou viúvo, hoje vive com a filha Belinha em seu apto em Ponta Verde, raramente sai de casa. Mas posso afirmar, braba mesmo era Dona Sônia, perto dela ele mal abria a boca, morria de medo. Kkkkk

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    1. Fantástico, Mário. Seu comentário atenua um pouco a lenda em torno das artes do coronel.É sempre assim: por trás de uma fera há sempre uma bela bem mais brava. Ainda bem!

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  16. 10! Mais um texto saboroso. Adorei!

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  17. Cel.Amaral... Eu dormia de janela aberta. Bons tempos. Havia muitas mortes, mas coisas de política e brigas de famílias. Cabo Henrique, de tão triste lembrança.

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  18. É, quem disse que o cangaço acabou após a morte de Lampião?
    Quando Superintendente no RN tive alguns papos parecidos, inclusive sobre gente que assaltava o Banco e fazia churrasco no final de semana, para comemorar.
    Todo mundo sabia, menos as autoridades de segurança...

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  19. Não é O Coronel e o Lobisomem, mas bem que poderia ser O Coronel e o Superintendente... Valeu, Hayton. Seu portfólio só aumentando e mantendo a qualidade.

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  20. Isso comprova que a cada 10 situações que vivenciamos, 9 são passíveis de negociação...rsrsrss

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  21. Interessante! Gostei da crônica, também dos comentários.Excelente para uma boa reflexão. É verdade que Alagoas era terra de coronéis?

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  22. kkkk muito bom, papo reto, objetivo e com quem tem poder! Esses textos maravilhosos que você publica deveriam virar um excelente livro - que tal? Dou força!

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  23. Se fosse hoje teria que doar o três oitão pra FBB por custar mais que R$ 100,00,rs

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  24. Aí já teríamos mote para uma nova crônica. Como a querida FBB reverteria para a sociedade a doação que lhe seria feita? À queima-roupa? Rsrs

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  25. Caramba, meu amigo... mudou só o tamanho da arma e da munição... aí a gente vê que tem cachorro que ladra mas também tem medo... ainda bem que tudo terminou bem... antes assim.

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  26. Vejam só a entrevista em 2009, com 82 anos, o Coronel relembrando como funcionavam as coisas em Alagoas...

    http://gazetaweb.globo.com/portal/noticia-old.php?c=190057&e=

    Notem a pedagogia (rs) no sistema prisional e como os criminosos de outros estados "desviavam" de Alagoas.

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  27. Caro Hayton, como gosto muito desse gênero textual, o qual você faz muito bem, e da mesma forma como gosto de Histórias, de entrevistas, copiei o link aí para saber mais desse afamado Coronel. Aqui no Maranhão, nunca havia ouvido falar dele, mas vendo aqui a entrevista dele, percebe-se que sua linha de fato é dura, ou o bandido entra na linha, ou a linha entra no dito cujo...kkk..mas como tenho lhe falado, mais uma vez meus parabéns pelas crônicas maravilhosas que você as faz muito bem. E o que é bom, fica aquele desejo de saborear mais, aquela velha história do quero mais. E desde já, fico na expectativa das próximas. Moacir Scliar, médico gaúcho, um dos cronistas mais interessantes do Brasil, tanto quanto Érico Veríssimo, e agora na contemporaneidade, o prezadíssimo Hayton Rocha. Como lhe falei, vamos avante, com a publicação de suas crônicas, como uma coletânea de crônicas; será maravilhoso perpetuar suas produções. Meu forte abraço

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  28. A literatura mais atual dá-nos conta de que devemos buscar solucionar conflitos com mecanismos de CNV, mediação, conversa restaurativa etc. Os conflitos que excedem esse nome e se transformam em ameaças deveriam ser caso de polícia. Quase um quarto de século depois, as coisas pioraram muito. Se o coronelismo arrefeceu, outros modos não menos radicais encontraram espaço e estampam as faces da violência. Desse passado, não guardo nostalgia; por outro lado, o presente me aterroriza e o futuro me amedronta.

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  29. Além de excelente cronista, você é exímio contador de história. Suas narrativas fazem-nos viver o episódio contado. De minha parte, foi como se estivesse presente no papo com o coronel, de resto uma figura quase folclórica, parece, abstraído o julgamento de sua competência profissional. Vá em frente e comece a pensar no livro. Como meus comentários aqui nunca me identificam - certamente alguma barbeiragem que cometo impede a identificação - aqui é Volney, da Bahia de Todos os Santos e quase todos os pecados.

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  30. Você foi bancário por acaso! Zé Vale nunca me disse desse Seu talento!

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  31. Você foi bancário por acaso! Zé Vale nunca me disse desse Seu talento!

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  32. Amigo Hayton,
    Otima passagem, o retrato de alguns que se consideram intocáveis. Vemos que o Bom relacionamento, clareza, Firmeza e Caráter, geram um Bom final.

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  33. Uau Tio Hayton, amei essa história. Nunca tinha sequer ouvido falar de tal situação. Esse seu blog é realmente uma linda caixinha de surpresas...

    Obs:. não apenas pela precisão utilizada nos textos quantos aos termos técnico-jurídicos que utilizamos como operadores do Direito, mas pelo efetivo conhecimento que tem acerca da matéria, posso afirmar: és um advogado, porém ainda sem o devido registro na OAB. Vamos, então, providenciar logo esse curso de direito que ainda falta no seu tão vasto currículo??

    Bjs da sua sobrinha e admiradora numero 1....

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