quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Parece que foi ontem, Robertão

Ao retornar à Bahia, em maio de 1999, na largada quis provocar os colegas ao recorrer à canção de Caetano Veloso quando me dirigi pela primeira vez a centenas de administradores do Banco do Brasil: "Existirmos... a que será que se destina?" Parece que foi ontem que assumi a superintendência estadual.

Jaime, executivo que viera da sede da empresa, em Brasília, prestigiar a cerimônia de posse, no final entregou-me uma folha de papel com breve comentário: “Excelente discurso. Emoção e razão”. Guardei no bolso sem perceber que havia algo a mais escrito no verso. Na hora em que eu falava, ele usara o mesmo papel para comentar com Robertão, seu parceiro de trabalho, o que lhe chamara à atenção na primeira fila do auditório: “Belas pernas!”

Robertão era terrível. Do alto de seus quase dois metros de altura, sempre bem vestido, cabelos aparados, qualquer mulher que passasse diante dele era vítima do seu olhar de lascívia e sedução. E ai de quem desse algum sinal de retorno, por menor que fosse. Jaime, sabendo disso, ainda atiçava o instinto predador da fera. 

Não demorou uma semana e minha mulher, Magdala, ao arrumar nosso guarda-roupas, encontrou no bolso do paletó que usei na posse a tal folha de papel. Cuidadosa e desconfiada a vida toda, quis na hora saber a quem pertenciam as “belas pernas”. Dias depois, ao encontrar conosco num evento, Robertão morria de rir ao confirmar a versão do fato que contei.  

De humor contagiante, inteligente, onde estivesse só se ouvia a voz dele a declamar poemas, cantar suas canções prediletas ou a narrar as mais insólitas aventuras em que se metera. Mas nunca deixou de reconhecer em Ana, mãe de seus filhos Rafael e Robertinho, uma espécie de santa, retrato da resiliência ao fazer-se de cega, surda e muda, para poder viver em paz. Era como Nara Leão a cantar Chico:

“Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa (...)


Parece que foi ontem. Em 1996, trabalhávamos no Nordeste, ele no Ceará e eu, em Pernambuco, e por duas ou três vezes viajamos juntos para a Capital Federal, para participar de reuniões com a diretoria da empresa. Se algo me dava a tal inveja do bem era ver de perto a recepção calorosa de Seu Pelópidas e de Dona Carmelita ao filho amado, aos beijos e abraços na área de desembarque do Aeroporto JK.

Dez anos depois, na última sexta-feira de setembro de 2006, Robertão já morava em Brasília quando o destino lhe cravou no peito uma flecha que mutilou seu coração. Aconteceu um choque entre duas aeronaves, uma delas da Gol, que fazia o voo 1907. Saíra de Manaus e deveria ter chegado em Brasília às seis da tarde. Não chegou. A Força Aérea Brasileira já deslocara helicópteros para buscas na região da Serra do Cachimbo, no sul do Pará, na Floresta Amazônica. 

Havia 154 pessoas a bordo, inclusive Rafael, 28 anos, graduado em Ciências da Computação, primogênito de Robertão. E a área de desembarque do Aeroporto JK, em Brasília, palco de tantas cenas explícitas de amor e carinho, nunca mais seria a mesma.

Naqueles dias de chumbo e profunda dor, por mais que amasse a vida  música e poesia no meio —, Robertão não conseguia ouvir Zizi Possi cantar Chico:

“(...) Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi (...)”  

Parece que foi ontem, Robertão, meu velho parceiro de tantas jornadas.

40 comentários:

  1. Bom Dia!
    A trajetória da vida, com bônus e ônus, vale a pena ser lembrada, revivida, escrita. Principalmente, acompanhada de amizade, carinho e zelo.

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  2. Bem, Robertão sempre ímpar... grande amigo, pessoa espetacular, e que ainda tenho o prazer de encontrá-lo de vez em quando... Deus deu a ele tamanho pra servir de suporte pro alto falante... sofremos juntos pela perda do Rafa, mas a vida segue, embora a dor nunca termine.

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    1. Ao ler hoje cedo esta crônica, Robertão mandou-me uma das mais belas mensagens que recebi nos últimos tempos:

      “Amigo Hayton, você usou uma das muitas histórias pitorescas de nossa vida no BB, e a das ‘belas pernas’ é uma dessas que sempre conto em rodas de amigos, para render esta linda homenagem a um velho companheiro de guerra.
      Com sua memória privilegiada, lembrou daqueles que foram um esteio em minha vida, meus queridos pais, que já estão no oriente eterno, minha mãe há quatro anos e meu pai desde março de 2018.
      Lembrou dessa ‘peça’ que a vida me pregou de ter que enterrar um filho ao invés de ter meus olhos vendados por ele.
      Sobrevivi a isso, sem revolta, porque logo percebi que ao invés de ter me levado um filho aos 28 anos de vida, Deus havia me concedido o privilegio de ter desfrutado de um filho abençoado, por 28 anos, e dessa relação só ter coisas boas para lembrar, sem remorsos, culpas ou quaisquer outros sentimentos ruins.
      Obrigado por sua amizade. Que Ele possa lhe conceder muitas outras crônicas mais, ate a lembrar de dores que não saem nos jornais, mas que brotam dos corações generosos como o seu, a homenagear os que se foram um dia, mas que estão para sempre na memoria dos que continuam nessa batalha chamada vida.”
      ‘Com que tristeza miramos un amor que se nos va, es um pedazo de alma que se arranca sin piedad’

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    2. Robertão deve ser um ser muito evoluído. Emocionada com as palavras dele.

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  3. Amigo Hayton,
    Mais uma bela cronica vivida, um mix de amizade, humor e destino. Você sempre cultivou amizades duradouras e esteve sempre presente em momentos fortes na vida dos amigos, e com Robertão não foi diferente, viveu alegrias e momentos em que a roda da vida chega e leva o destino da gente pra lá. Mas Deus nos deu amigos pra compartilhar cada momento.

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  4. Parabéns, Hayton, pela bela crônica! Robertão, uma camarada diferenciado!
    Tive a honra e o prazer de trabalhar sob a batuta dos dois.

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  5. Assim é vida, Hayton. Nos reserva algumas surpresas, boas ou ruins, e precisamos estar preparados para, ao menos, aceitá-las!

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  6. Que graça teria a vida não fossem os amigos - além da família e do trabalho ?
    Esse me parece um tripé interessante pra que nos sintamos vivos. E os amigos, smj, não raro, nos dão o suporte necessário para levar adiante a vida, nos momentos de desventura. Também nas alegrias, mas naquelas a necessidade de apoio, solidariedade e, as vezes, um simples abraço, mesmo sem palavras, já é suficiente.
    Excelentes lembranças e homenagem. Parabéns.

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  7. Parabéns, Haylton, pela bela iniciativa.

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  8. Alguns contos são cruéis demais para serem lidos devagar. Às vezes, a vida também. Dedé Dwight

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  9. Cada fragmento narrado em crônica se transforma na colcha retalho que é a vida do cronista. Valeu.

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  10. lembro deste dia, perdi um guri que era como filho p mim naquele avião. Por coincidência, eu estava na aabb no dia chuvoso que Robertão chegou p pegar a lancha e levar as cinzas do filho p barragem. Foi de cortar o coração.

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  11. História interessante e triste ao mesmo tempo. Lembro. Em deste desastre aéreo . Mas, a pergunta que não quer calar : De quem era as belas pernas???

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    1. Acho que Jaime e Robertão não conseguiram memorizar o rosto. Só perguntando a eles.

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  12. Tive a sorte é a honra de trabalhar com ele tb.

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  13. Caraca Hayton, Recentemente, num evento em São Paulo. Eu, Robertão e Jaime recordávamos esta passagem das “Belas pernas”. Nos divertimos muito. Em 2006, uma triste tragédia. Na época, choramos muito. Abraços.

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  14. Como dizia Milton: "O trem que chega, é o mesmo trem da partida". Nós nos acostumamos maís facilmente com o da chegada.

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  15. Linda homenagem Hayton!
    Robertão que saudade!!!
    Minha admiração e respeito a você por seu profissionalismo, simpatia e humor permanentes! E, claro sua força interior !
    Forte abraço!

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  16. Crônica emocionante. Robertão agradeceu favorecendo a todos com surpreendente lição de vida e amor.

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  17. Emocionante!
    Pela amizade, pela dor pela resiliência ...

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  18. Outro texto com gosto de quero mais! Mas faço minha a pergunta da Dayse: de quem eram as belas pernas??!!

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    1. Pois é, Diniz, como disse a Dayse, só consultando Jaime e Robertão. Mas acho que não memorizaram o rosto.

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  19. Lembro me bem desse dia. Estava eu lá na Super Governo quando ouvimos a terrível notícia. Foi muito triste e mais triste ainda foi descobrir que a vida, para o Robertão, nunca mais foi a mesma. Os dentes arreganhados da morte lhe sorriram para calar, pra sempre, seu riso e alegria que pareciam ser eternos. De lá pra cá ouvi dizer que o semblante do Robertão caiu-lhe da face e agora enfrentava a tristeza e vazio a morte do filho lhe deixaram . A crônica acima, sei, tentou , mas é impossível exprimir o sentimento dele que ficou no depois.

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  20. Naquela fatídica tarde de 29/09/2006, eu estava em um voo, também da GOL... Eu viajava de Brasília a Curitiba, para votar na eleição presidencial que ocorreria no domingo, dia primeiro de outubro. Quando desembarquei e liguei o celular, inúmeras chamadas de familiares e amigos. Todos querendo ter certeza de que eu nao estava no voo 1907, cuja queda me foi informada no primeiro contato que fiz pelo celular. Muitos caminhos que se cruzam pela vida, na terra e nos céus. Do Robertão, lembro dos agradáveis dias de convivência, durante o Curso APG, na Amana-Key, em 1998. Mais uma bela crônica que reúne momentos de comédia e drama, de alegrias e sofrimentos, faces da moeda chamada VIDA.

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    1. Que coisa, hein?! Viver é perigoso demais, meu amigo. Que coincidência!

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  21. Que sábias palavras de Robertão, saber enfrentar a dor , não é facil, são momentos que a Família e os amigos ajudam a suportar e superar.

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  22. Hayton, em meio a pitadas de bom humor do grande cronista, há a fatídica dose de tristeza que invade o coração e a alma de um pai, quando perde um filho. Mas em meio a isso, fiquei curiosa, "de quem era as belas pernas"? Um abraço

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  23. Belo e pungente relato, Hayton. Estou aqui, a 35 mil pés de altura, tentando imaginar a profunda dor de quem passa por algo indizível. Acho que só os poetas, tal qual o Chico em "Pedaço de mim", salvo engano, de 1975, conseguem, metaforicamente, aproximar a visão de um sentimento tão intenso daquilo que se vive em momentos de tanta dor. Algo que vale também para as alegrias e para o "sentido da vida", cantado em "Cajuína". E assim forjam-se os caminhos da difícil arte de viver.

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  24. Beleza de texto, Hayton! Leitura nos leva a risos e lágrimas. Chico tem músicas prá qlq situacäo e vc as usa como um maestro da escrita.tiberio

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  25. Conquanto tocante, emocionante, comovente - haja adjetivos -, você consegue narrar de forma leve e suave, quase lúdica, um episódio devastador para um pai- aínda bem que há sempre um consolo a que nos apegar.
    Agora, voltando ao terra-a-terra, que sacanagem você não "denunciar " a "proprietária " das belas pernas - isto não se faz. Você poderia inventar um nome...
    Se um dia eu lhe encontrar, no "escurinho do cinema ", vou assediar até você sucumbir.
    Finalmente, que competência da doutora Magdala pra arrumar guarda-roupa, hein???
    Foi encontrar exatamente o papel denunciante!!!!! Você merece...

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    1. Jaime e Robertão garantem que não lembram do rosto da vítima do olhar lascivo. Se eles, que viram, não lembram, como eu, tido como de uma fidelidade constrangedora por Robertão, iria lembrar?
      Havia no ar outra questão crítica com que nos preocupar, proposta por Caetano Veloso. Rsrs

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  26. Meu querido Hayton, tuas crônicas deveriam ser decretadas de utilidade pública. Sugiro que depois edite esta crônica, colocando lá embaixo a, resposta do Robertão. Creio que o que escreveu e a resposta dele, são parte de um todo maior, complexo e singular, que nos faz continuar nossa peleja, de peregrinos da esperança, mesmo muitas das vezes carregando no peito cântaros de lágrimas já choradas. Existimos, a que será que se destina? Também será, com certeza, para te ler e abrir portinholas de afeto, refletir contigo sobre as coisas que de fato importam. Nunca saberemos quando um forro de gesso irá romper com nosso peso. Só sabemos que não podemos ser peso para o outro, e sempre deixá-los com palavras de ternura, de poesia, de paz e amor, tal qual o Robertão fez por 28 anos com o filhote. Obrigado mais uma vez por tocar nas cordas da cítara de nossa alma. E fazê-la um pouco melhor após tua melodia de luz.

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  27. Bela crônica e uma triste história, vivida pelo querido amigo Betão e todos nós!
    Abs, Mano.

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  28. Hayton, pura emoção! Falar do Banco, da família, dos amigos, das perdas... tudo o que muitos de nós tivemos e temos ainda, porque estamos aqui.
    A Palavra é pura sabedoria: "há tempo para tudo debaixo do céu".

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  29. Sempre admirei e gostei de Robertão como amigo e, por cerca de três anos tive a sorte de trabalhar com ele. A admiração e o carinho só cresceram: um cabra da peste como meu pai.

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  30. Robertão, colega querido por todos! Impossível não perceber sua presença: pelo tamanho, pela firmeza, alegria e simpatia contagiantes. Me lembro perfeitamente desse dia triste. Impossível ter noção da real dimensão da dor de um pai e uma mãe nessa situação!

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