quarta-feira, 13 de maio de 2020

Conversa ensaboada

Vi quando Regina, faxineira no prédio onde moro, aproximou-se da portaria onde o síndico fazia algumas anotações e perguntou: 
— Por que será que ainda não existe remédio para acabar com um vírus que some até com água e sabão, mas que já provocou a morte de meio mundo de gente?

Regina é gente fina, disposta, curiosa e irreverente como ninguém. Teve seus dias de glória quando morava no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, e participou como figurante de uma ponta de novela. Queria ser famosa, virar atriz ou bailarina de programas de tevê, mas não deu certo. Acabou voltando para Alagoas.

Nazareno, ex-professor de Educação Moral e Cívica — matéria que se tornou obrigatória no currículo escolar brasileiro no final dos anos 60, em substituição às disciplinas de Filosofia e Sociologia —, hoje conhecido como Seu Naza, viu no cargo de síndico do condomínio o bico ideal para complementar a renda familiar. Viúvo, ainda mantém dois filhos que se recusam a abrir mão da adolescência. O mais novo, inclusive, “rato de praia" que se vangloria de que "já pegou muitas" na área. Não se sabe exatamente a que ele se refere.

Achei que Seu Naza, autoritário e intolerante com os empregados mais humildes e subserviente com os moradores dos andares mais altos, fosse abreviar a conversa com algo assim: “E daí? Quer que eu faça o quê? Sou Nazareno mas não faço milagres, tá legal?!” Mas não. Surpreendeu inclusive ao porteiro. Prova de que existe pau que nasce e cresce torto mas se apruma antes de morrer. Ou finge para ser politicamente correto.

Próximo dali, enquanto aguardava encomenda feita à farmácia, prestei atenção quando ele começou a responder dizendo que o novo coronavírus é covarde, burro e injusto. Se não, o bicho não seria invisível nem agiria em bando, atacando os mais vulneráveis pelas costas sem lhes dar a mínima chance de defesa.

Para Seu Naza, em suas escolhas sobre quem infectar, o vírus deveria dar prioridade aos oportunistas que tentaram obter vantagens político-eleitorais com a pandemia da covid-19, influenciando seguidores fanáticos ao garantir que tudo não passava de uma virose ordinária, ou decretando a paralisação ampla, geral e irrestrita das cidades, de olho, claro, em verbas federais isentas de licitação pública.

Disse também que seria muito oportuno um olhar contagiante sobre quem agride jornalistas no trabalho ou quem tenta aplicar golpes nos autônomos e desempregados que se espremem em filas desumanas porque precisam do auxílio emergencial de 600 reais. Assim como sobre quem hostiliza enfermeiros na rua ou no ônibus, quem confisca carregamento de máscaras ou quem especula com o preço de equipamentos médicos escassos.

O vírus, para o síndico, ainda deveria reservar um abraço contaminador para quem pode ficar em casa e ser generoso e solidário com os mais frágeis, mas não é. Não se compadece com o sofrimento alheio. Ao contrário, gasta horas e horas a propagar mentira, ódio e pânico nas redes sociais, quando não está às voltas com as frivolidades de um consumismo desenfreado.

Ao perceber que eu continuava atento à conversa, Seu Naza empolgou-se e passou a filosofar, a dizer que se a natureza fosse sábia deveria expurgar inclusive aqueles que pregam “viva hoje; o passado passou e o futuro é incerto” ou “não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”. Para ele, ninguém deveria ser egoísta e se contentar apenas com ”aqui e agora”, sem desejar resmas de amanhãs como folhas em branco onde as novas gerações possam redesenhar o mundo.

Confesso que fiquei perplexo ao ouvir esses argumentos saírem da boca de alguém que ora louva a Deus, ora venera torturadores cruéis como fontes de inspiração. Se bem que um amigo meu diz que “esse tipo de gente mente e desmente constantemente, impunemente”.


E seguiu em frente, a garantir que o novo coronavírus é miserável porque pega a todos no contrapé, sem distinção de gênero, idade, cor, classe social, crença política ou religiosa, e cozinha numa panela de pressão porções cavalares de ansiedade, medo e tédio.

Pior, ainda condena todo mundo à pena diária de assistir a milhares de mortes à míngua pelo mundo afora, sem o consolo do velório e sem a chance de um adeus nem mesmo dos parentes, reclusos na solidão de seus lares, carentes de abraços e vendo seus mortos empilhados e convertidos em reles números no meio de uma lista ou de um gráfico de barras qualquer.

De repente, o síndico se deu conta de que a faxineira poderia não ter assimilado o seu amplo discurso e resolve conferir:
— E aí, Regina, deu pra entender?
— Mais ou menos... 
— O que cê não entendeu, minha filha?
— Essa máscara aí pendurada no seu pescoço, Seu Naza. Se não cobrir nariz e boca, o bicho pega. É como usar camisinha no saco. Só machuca e não resolve o problema.
— Cê tá ficando doida?! 
— Tá vendo? Não posso nem abrir a boca! É pau pra comer sabão e pau pra saber que sabão não se come...

Segurei o riso e fui-me embora para o meu casulo sem ouvir uma resposta objetiva para a instigante pergunta de Regina: por que ainda não surgiu uma droga capaz de neutralizar um parasita que se torna inerte até com água e sabão? 

Pelo sim, pelo não, ensaboei as mãos assim que cheguei. 

42 comentários:

  1. Morre com o uso da água e sabão e mata assustadoramente a milhões de pessoas sem nossos cientistas consigam indicar a tão esperada vacina.

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  2. Este assunto é tão escorregadio como aquele sabonete Gessi que insistia em fugir das nossas mãos nos banhos de poços nos rios do sertão.

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    1. Pois é, Dema, com a molecada por perto, quem deixasse o sabonete escorregar na beira do rio e tentasse apanhá-lo corria sérios riscos.

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  3. ANTONIO CARLOS CAMPOS13 de maio de 2020 às 07:31

    Maria Branyas, idosa mas longeva da Espanha (Girona), de 113 anos, venceu o COVID-19. De acordo com a teoria do Seu Nazareno, deve ser uma boa pessoa.
    Tô lascado.

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  4. Gostei de Seu Naza e de Dona Regina também

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  5. Naza...Bozo... Alguma semelhança não será mera coincidência. Gostei mesmo foi do "olhar contagiante ". Muito bom de ler

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  6. Me senti íntimo de Regina como se fosse uma namoradinha da gente. Tanta intimidade me permite dizer-lhe: viva Gina!

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    1. Você é mais perigoso do que revólver carregado na mão de macaco, Silas!

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  7. Seu Naza não é fácil não... quem fica muito quieto às vezes surpreende... incoerências, bem, comentar pra quê? Pelo menos ao tentar ensinar ele teve de aprender algo também: quem ensina tem que viver...

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  8. Muito boa a história do Nazareno que não faz milagres, e cujo filho tem um pouco de modéstia (pegou muitas), que faltou a outro filho, que pegou todas no condomínio onde mora.

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  9. Agostinho Torres da Rocha Filho13 de maio de 2020 às 09:41

    Uma visåo bem-humorada e contagiante sobre o atual cenário social - e político - brasileiro. Muita criatividade! Parabéns!!!

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  10. Momento de muita perplexidade, dúvidas, medo, o pior informações direcionadas e falsas. Ou melhor produzidas pelos interesses individuais, ainda permite a construção da vida, ter uma visão humorada. Vamos que Vamos!

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  11. D.Regina mandou ver. Falou pouco mas com muita sabedoria.

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  12. Você escapou de ser redator publicitário não sei porque. Talento ímpar. Sabe jogar mensagem subliminar com uma pitada de humor.

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    1. Como ainda sou uma criança, quem sabe o dia de amanhã, hein?! Rsrs

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  13. Excelente! Saborosíssimo! Pena afiada! Adorei!

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  14. O apelido Naza, deve vir de nazista, facista e genocida. Qualquer semelhança não será mera coincidência. Enfim ......

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  15. Que vírus terrível e cruel, mas com certeza deixará várias lições a humanidade e reordenará algumas questões insanas.

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  16. Li o texto imaginando-o como parte de um episódio de "Sai de baixo", em função da veia cômica com o qual ele estava condimentado e também, ainda refém da imaginação, pensando em qual seria o "elenco" para representar cada papel. Muito bom. Estaria sendo lapidada uma peça teatral? Meras especulações (rsrsrs)

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    1. Não havia pensado nisso, Fernando. Costurando o que já escrevi durante a pandemia dentro de um mesmo eixo temático, quem sabe não dá caldo, não é mesmo? Rsrs

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  17. Muito saborosa a crónica. Me diverti bastante ao ler. Interessante como a situação narrada expõe alguns perfis sociais nesse momento dificil. Parabéns, Hayton

    Sergio Freire

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  18. Exaltar seu texto é redundante.
    Agora, o perfil de ficcionista que você revela aí, certamente despertará o interesse dos que exploram tão bem o tema produzindo as séries que entretém o distinto público - todos nós.
    O "Seu Naza", é quase do nível de Odorico Paraguaçu, filho de Eleutério e neto de Firmino Paraguaçu, criação imortal de Dias Gomes e imortalizado aínda mais pela inefável e indelével - perdoe o pernosticismo - interpretação de Paulo Gracindo.
    Quem sabe num próximo você não inventa um parecendo o Zeca Diabo...

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    1. Esses “bichos” andam todos soltos por aí, meu caro Volney. Nesses pandêmicos tempos, nem o cemitério de Sucupira – o “viúvo” virgem – seria bastante para tanto horror e iniquidade.

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  19. Essa Regina quase foi DAARTE...
    E esse Nazareno me lembrou um tal Messias, que morou em Jacaré...
    Agradável resenha da semana que vivemos (ou terá acontecido em outra galáxia)?

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  20. A figura do “seu Naza”, com a máscara no pescoço, me fez lembrar pessoas, que ainda ontem vi, fazendo caminhada na calçada oposta à orla, como se ali fosse permitido. Pior, que reconhecendo o casal, sei tratar-se de pessoas com bom nível de estudo e cultura, mas parece que de pouca consciência comunitária.
    Parabéns pelo texto. Gostei do comentário comparativo com o “Sai de Baixo.”

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  21. Ainda vamos aprender muito com o corona vírus, os ladrões e os filósofos...

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  22. Ainda vamos aprender muitos com o corona vírus, os ladrões e os filósofos...

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  23. Hideraldo Dwight Leitão14 de maio de 2020 às 08:09

    Seu Naza vai se repetir em todas as tragédias da Humanidade, porque ele não sonha em ser Jesus que se sacrificou para salvar o Mundo, mas sonha em ser Noé, o ungido que recebeu relatórios de inteligência que beneficiaram sua família e alguns animais que a circundavam.

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  24. Muito bom.
    "Qualquer semelhança é pura coincidência"!

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  25. Excelente Hayton!! Uma vez mais!
    Ao ler e viajar nos seus textos sempre tento enquadrá-lo num gênero literário específico. Seria crônica, romance, ficção, poesia, um conto? Tudo junto e misturado? Tem todos os ingredientes: comedia, drama, monólogo, realismo explícito.
    Que importa?
    Importa mesmo é a duração da viagem...

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  26. Tinha passado a vista, mas achei que merecia um momento bem tranquilo e relaxado!
    Gostei da mistura do “dia-a-dia” com a subliminar política! Fica mais apimentado pra quem gosta da sátira humorística PASQUIMANÍACA!
    Digno da novela das 9, intelectualizada. Tipo um nanico marom que esclareceu os momentos de obscurantismo de uma certa época!
    Valeu! Coloque sempre pimenta política, sexual ou humor satírico!

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  27. Meu Amigo Hauton. Você se superou. Excelente. Muito sábios Você e Seu Naza. E Regina também.

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  28. Esse Naza não tem jeito não. Só Jesus na causa. Gostei da indignação da Regina. Como ainda não se sabe matar esse tal de corona que morre com água e sabão. Kkkk

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  29. Muito talentoso nosso amigo Hayton! Parabéns pela bela crônica.

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  30. Crônica atual - crítica e criativa -, recheada de ironias nada sutis com relação ao nosso verdadeiro picadeiro político diante da atual tragédia humanitária. Essa 'conversa ensaboada' poderia muito bem se chamar 'conversa afiada'. Experimente mandar para O Globo ou algo do tipo. Não duvido que a publiquem. Congratz meu amigo!

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  31. Enquanto não soubermos escolher os síndicos, continuaremos alimentando o abismo entre os andares de cima e os de baixo. Não é por acaso que Brasil e EUA são fortes favoritos ao título de campeões em mortes pelo Convid. Triste condomínio em que o egoísmo escancara o quão bruto ainda é o ser humano. Nesse contexto, fico com a filosofia, a sociologia e a inspiração reconfortante dos artistas. Parabéns, meu amigo, por mais essa pérola criativa.

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  32. “Marrom” com 2 “r” . Correção!

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  33. Falar em andar de cima e de baixo, vale assistir “O poço”!

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  34. De minha parte, Hayton, minha profunda descrença no ser dito humano, só aumentou durante esta pandemia. Nada me faz acreditar que será diferente depois dela, se vivo eu estiver. O "Seu Naza" encarna o típico disfarce de quem não diz o que pensa, que fala de acordo com o contexto que examina ser mais profícuo para seus intentos. Tenho sido repetitivo quanto a afirmar que não consigo compreender comportamentos que vejo nos quatros cantos, baseados num dogmatismo mortal, pior do que o vírus que, insidiosa e aleatoriamente, vai carregando quase meio milhão de almas, mundo afora. Esse vírus do dogmatismo, à esquerda, à direita ou ao centro (se é que existe um dogmatismo de centro!), sufoca, de modo claro e proposital, as liberdades, os sonhos, os desejos, o "free will" tão arduamente conquistado em lutas, revoluções, sangue, suor e lágrimas. Vai carcomendo, inicialmente devagar, engalfinhando sorrateiramente o que ainda resta de bastião das liberdades, mais preciosa das conquistas, só perdendo - quiçá - para saúde, paz e dignidade. Nestas últimas semanas, tenho-me indagado se terá valido a pena ter estudado tanto, lido tanto, aprendido tanto, angariando tanta informação e conhecimento quando, à vista da ignorância (em seus dois sentidos, brutalidade e desconhecimento), embarcada no vírus do dogmatismo, meus argumentos viram pó. Se o conhecimento não é, mais, a arma contra o obscurantismo, qual será? Hei de dar-me por vencido e desistir do mundo, como fez Rámon SamPedro, só que por motivos diferentes? Não afirmo tais coisas por estar numa gangorra de sentimentos, em face de um confinamento que já dura sessenta dias. Você conhece-me o suficiente para saber que meu desalento precede as ocorrências atuais. Apenas aponto meu olhar para o passado e, num esgar, vejo o futuro-passado, tal qual o aprendizado de máquina faz para predizer comportamentos analíticos. Não à toa, nos filmes, quando as máquinas decidem aniquilar a humanidade, elas o fazem precisamente por analisarem o passado e projetarem esse futuro assombroso (parte dele em franca realização!). Assim precisou o agente Smith, em Matrix, Ultron, em Vingadores, Skynet em Exterminador do Futuro e tantos outros que a sétima arte me deixou vivo na memória. Não nego a solidariedade de muitos. Mas, ela é insuficiente para lidar com os monstros que deixamos sair do Tártaro e que agora ameaçam nos devorar. Pessoas, mesmo, de meu convívio mais próximo, com amplo acesso a conhecimento, alimentam e propagam uma cegueira, para mim, desconcertante e me fazem manter distância social imensamente maior que a recomendada para se tentar evitar a covid-19. Dizem que quando a humanidade é posta à prova, seu instinto de sobrevivência faz aflorar a solidariedade e o sentimento de coletividade. Divirjo. Neste primeiro grande "teste" pós-1918, o egoísmo, o solipsismo e a estupidez de incontáveis ganharam contornos de prova de que o passado nos condena. Mais ou menos como em "O Poço", anotado pelo João Veras, uns vão devorando outros, feito zumbis de Walking Dead, só que esse "devorar" é uma espécie de "fagocitose" acintosa e brutal para calar o diferente, o menor, o belo, a liberdade em suas mais variadas formas e dar vez e voz a experiências que deveriam ser deixadas no passado. As divagações de "Seu Naza" contradizem seu interior "autoritário e intolerante". Se viessem de seu interior, saberia que recairiam sobre si os petardos virais que lançou como redenção da humanidade. Retórica vazia. Autoritarismo e intolerância conduziram este mundo para o ponto em que estamos. São incompatíveis com qualquer forma de humanismo. Tão bom seria se pudéssemos "ensaboar" as mentes e eliminar os vírus que promovem a desagregação, o egocentrismo, a estupidez e tantos males que estão transformando o planeta num lugar impossível de se viver.

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