quarta-feira, 24 de março de 2021

Coisas de pai

Há pelo menos duas décadas ele reveza estadias na Zona Sul do Rio de Janeiro com temporadas cada vez mais longas no interior da Bahia, onde cria galinhas, cultiva cocos e fotografa “os bêbados e as crianças mais lindas da região”, como diz.

 

Quando adolescente, queria ser músico. Mas o pai, ouvindo-o cantar certo dia, foi sincero como todo pai deve ser (um pouco mais, talvez): “Filho, me poupe os ouvidos”. Assim, engoliu como pôde a sentença paterna – um nem tão diligente servidor público, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores – e desistiu da música.

 

Talvez, para seu pai, ele devesse concluir os estudos básicos e prestar concurso público para ingressar numa daquelas instituições que ofereciam salários generosos e pagos em dia, garantindo uma vidinha sem sobressaltos com mulher, filhos, sogra, igreja e praia ou zoológico aos domingos.


Natural que fosse assim. Pai da gente, até uma certa idade nossa, está sempre certo. Só começa a vacilar feio depois que aprendemos a andar com as próprias pernas. 

 

De tanto prestar atenção nas coisas à sua volta, aos 12 anos ele se interessou por fotografia. Autodidata, inspirou-se no trabalho de dois primos em segundo grau, figuras de destaque na incipiente publicidade brasileira da metade do século passado. 

 

Com a militância política no ambiente doméstico, era esperado que desenvolvesse o gosto pela fotografia voltada para o social. Tanto que, mais tarde, os protestos contra a morte do estudante Edson Luís, em 1968, foram decisivos para que ele trocasse o estúdio pelas ruas.

 

Sua obra aponta várias direções, mas possui foco bem definido: um olhar às vítimas de uma sociedade autoritária e desigual. Em mais de 50 anos, registrou manifestações contra a ditadura, instantâneos da vida boêmia do Rio, artistas no palco e em bares, festas populares, adultos e crianças anônimas nas ruas, nos becos ou no trabalho pesado, fora das escolas. 

 

Na mais recente exposição, realizada há dois anos, reuniu acervo de 80 imagens que traduzem um pouco de tudo o que já fez na vida, a começar pela fotografia que deu nome à mostra (Pic-nic no front), em que um jovem queima a bandeira norte-americana na sede da União Nacional dos Estudantes, ao lado do anúncio da peça em cartaz no local. 

 

Havia outras imagens belíssimas que retratavam desde a Ipanema dos anos 1960/70 até os operários que abriram o Túnel Rebouças, no Rio, passando por pequenos carvoeiros na Bahia, em flagrante afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Ele não tem a visibilidade internacional de Sebastião Salgado, que trouxe à luz quatro décadas dos horrores cometidos pelo ser humano e as grandes belezas naturais do planeta. Salgado que, após sair do Brasil fugindo da ditadura, em 1969, esteve em mais de 130 países e alcançou todos os prêmios e reconhecimentos possíveis na arte da fotografia.

 

Não, definitivamente não é um gênio desse calibre. É bem mais simples, feito do mesmo barro de um servidor público com uma aguçada veia poética que, antes de partir, deixou-lhe a carta-testamento mais intensa e visceral que já vi e que me permito citar alguns trechos: 

 

“... Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal...  um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado  a insensatez de um coração..."

"...Muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua..."

"...E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço..." 

"... Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder..."

"...E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar... Assim é o canto que te quero cantar, Pedro, meu filho..."

 


Aos 78 anos, Pedro de Mello Moraes, além de freelancer em publicidade, arquitetura, moda, jornalismo e cinema, é pai 
da cantora Mariana de Moraes (veja aqui)a quem um dia deve ter dito: “Filha, nunca me poupe os ouvidos...” 

E deu razão à sentença paterna que ouvira no começo dos anos 1950. Seu velho pai também sabia das coisas

29 comentários:

  1. Não conheço os personagens dessa bela história, mas a crônica é simplesmente fantástica, só por ela, seria possível a criação de um belo filme.

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    1. Tenho certeza de que conhece, sim, sobretudo o pai cujo nome omito de propósito na crônica: Vinicius de Moraes, autor da carta para seu único filho homem, Pedro, a quem deixou como legado “a insensatez de um coração constantemente apaixonado”.

      O legado revelou-se mais concreto: por ter vivido em estimulante ambiente intelectual e artístico, Pedro desenvolveria seu talento para as artes visuais. Tornou-se fotógrafo e coautor, com o pai, do livro “O mergulhador”, de 1968, obra que reúne fotos suas e poemas de Vinicius.

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  2. Quebrar a quarentena "bianual" lendo um texto desse nível nos impulsiona a buscar o ar para respirarmos por mais duas décadas. Obrigado colega,este tipo de crônica nos inspira a vivermos esperar a próxima.

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  3. Versar sobre coisas do viver ilumina os caminhis.

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  4. Hayton, que bacana vc trazer notícias do filho do Poetinha! Creio que muitos, assim como eu, não sabia dessas notícias. Mais uma bela crônica!

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  5. O texto nos faz esperar pela revelação do Vinicius, para a gente não se distrair do personagem e do assunto principal. Que delícia. Dedé Dwight

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  6. Uma carta-testamento dessa magnitude só poderia ter um autor de peso intergalático!
    Hayton continua a saga de tecer poesia em forma de prosa!!

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  7. Mais uma bela crônica, lapidada com esmero, enriquecendo-nos de conhecimentos curiosos e pessoais dos personagens abordados.

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  8. Show de crônica. Meu amigo Hayton és uma biblioteca de variados conhecimentos. Deus continue te iluminando e que produzas crônicas cada dia mais belas.

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  9. Beleza, simplicidade e leveza, sem superficialidade: na carta, no ofício retratado e no próprio retrato.

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  10. Belissima crônica. Uma breve biografia e uma singeleza de abordagem que Vinicius aprovaria.

    Sergio Freire

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  11. Você sabe é de coisa! Biblioteca ambulante.

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  12. Isso é coisa de pai mesmo. Pai não fala; sente. E sentimento, hein?

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  13. Mais uma bela crônica meu amigo Hayton, eu também não conhecia a historia e o filho do Vinicius. Abraço.

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  14. Meu amigo, Hayton, além da beleza do texto e da forma como você constrói a história, fica clara a sua impressionante bagagem de conhecimentos, os mais diversos, da vida como um todo. Pra mim, particularmente, já não é mais surpresa chegar ao final da crônica com aplausos pelo seu trabalho. Abração...

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  15. Valeu pela lição de amor paterno e pela bossa-nova.

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  16. Que história comovente, de laços que vão se tecendo, vão também descosturando, dando ao pano da vida algo que empreste um tênue sentido. Adorei, não conhecia nada desta história. Bravo!

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  17. Eu demorei pra postar algo aqui porque fui consultar meu amigo que é médium espírita, queria saber se ele tinha alguma notícia de outras dimensões. E não deu outra, ele me disse que logo após ler a crônica concentrou esforços na tentativa de captar alguma reação do poeta.
    E conseguiu, segundo ele. Disse-me que o poetinha adorou a peça, tanto que está se inspirando pra lavrar algo e repassar pra um de seus "comparsas" ainda hospedados neste planeta.
    Ontem mesmo o nosso Vininha, segundo ele, estava sentado em uma mesa com parceiros, bebericando o seu "on the rocks" e repassando incessantemente os olhos sobre o texto.
    Você está realmente impossível, abala até outras dimensões com suas pérolas.

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  18. Muito boa Hayton! Já ví a Mariana cantar e gostei muito ...
    Abs

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  19. Bela crônica, uma delícia de leitura! Entre outros dons, Hayton, você é um espetacular contador de histórias! ��
    tiberio

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  20. Agostinho Torres da Rocha Filho27 de março de 2021 às 09:04

    "A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte." (Mahatma Gandhi). A frase acima sintetiza a trajetória artística não apenas de cada um dos personagens citados no texto, mas também do próprio autor. Imagino quão mais severo seria o processo de confinamento - versão mais aguda do distanciamento - social a que estamos submetidos não fossem tais pérolas a iluminar nossas manhãs de quarta. Mais uma crônica fora da curva, com fortes traços poéticos. Parabéns!!!

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  21. Outra belíssima crônica! Inigualável na arte de lembrar e contar história.

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  22. Uma carta-testamento como essa , precisa mesmo ser divulgada, e melhor ainda se for por uma crônica tão linda e sensível!

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  23. A vida da gente às vezes já começa com nosso pai dizendo seja igual a mim. Aí nos honra com seu nome. Depois inicia a corrigenda: isso não, assim não pode, não vai dar certo... mas quando tudo anda é capaz de chorar de felicidade vendo nosso sucesso. Mas conselho de pai é pra não ser seguido quando a asa dele é menor que a nossa. Assim é que surgem os gênios. Parabéns pela crônica. Sempre fui fã de Vinicius.

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  24. Este comentário foi removido pelo autor.

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  25. Hayton, boa tarde. Eu definiria mais esta pérola de crônica como impressionante sua brinhante memória em nos presentear nas manhãs das quartas feiras, não bastasse esse confinamento além do isolamento social já tão longos. Agradeço a Deus por mentes maravilhosas como a sua. Realmente é um presente cada crônica. Saiba que estou relendo seus dois livros que são outros dois presentes , acredite. Tão saborosos textos de se lê. Um abraço

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  26. Estes trechos citados pelo Hayton são tão lindos, daqueles que gostaríamos de ter escrito...

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  27. E o que é está Mariana Moraes? Coisa mais linda...bem como diz a letra que canta...

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