quarta-feira, 10 de março de 2021

Ouro Branco

Próximo ao lago Paranoá, sob a vigília do céu anil da capital da República, o condomínio Ouro Branco acaba de receber seu mais novo morador. Não fosse pelo sobrenome e pelo tino para negócios imobiliários (que invejosos promotores públicos chamam de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa), ninguém prestaria muita atenção à compra, por 6 milhões de reais, de uma mansão de 2.500 metros quadrados, com quatro suítes, piscina e spa com aquecimento solar, espaço gourmert, home theater e academia.

 

Às vésperas de mais uma Páscoa sem chocolates nem netos por perto, antes de qualquer comentário mais amargo, preciso resgatar que esse foi o 20º imóvel que esse abençoado cristão negociou nos últimos 16 anos. Aliás, em declaração à Justiça Eleitoral, há dois anos, ele jurou de mãos levantadas e pés juntos ter patrimônio de 1,74 milhão de reais, quantia compatível com seu atual salário líquido, de 25 mil reais. 

 

Para os que duvidam do talento comercial desse cidadão latino-americano, com dinheiro no banco e parentes importantes, ele justificou que adquiriu sua nova morada no Ouro Branco após vender um imóvel e uma franquia no Rio de Janeiro. Referia-se à prodigiosa loja de chocolates Kopenhagen, que, de acordo com o Ministério Público, teria sido usada para mascarar desvios de recursos de assessores, já que boa parte das compras foram feitas em dinheiro vivo. 

 

“Está tudo como dantes no quartel d'Abrantes”, dirão alguns com antolhos ideológicos, argumentando que quase todos no recinto agem assim. “Não configuraria infração penal, pois é prática socialmente aceita por aqui”, diriam outros, convictos de que expressam notável saber jurídico com suas togas encardidas e mal pagas.   

 

Lembrei-me de antigos programas humorísticos de televisão, onde os bordões pegavam de tal forma que, décadas depois, ainda latejam em minha memória. Ultimamente, então, alguns me ocorrem com relativa assiduidade. Rebrotam como ervas daninhas diante de novas e tantas besteiras que assolam o país, como nos tempos de Stanislaw Ponte Preta.

 

Nos anos 80, Tavares era um personagem de Jô Soares, em Viva o Gordo, que tinha orgulho do seu filhote Dorival, enaltecendo as qualidades másculas e ideológicas do rapaz. Quando conversava com os amigos, não cansava de elogiar o rebento, sem perceber que tudo o que dizia denotava que seu filho não tinha a orientação sexual e política que ele supunha. Os amigos ficavam sem jeito, mas não diziam nada, preferindo contar os feitos de seus próprios filhos, ao que Tavares, desconfiado, dizia: “cala-te boca, tem pai que é cego!”. Numa época, claro, em que esse tipo de abordagem, mesmo que de mau gosto, ainda não beirava o crime.

 

Havia também o macaco Sócrates, interpretado por Orival Pessini no humorístico Planeta dos Homens, que buscava entender a condição humana em pequenas esquetes, as quais fechava assim: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” Por exemplo, se visse no jornal que a lei nº 9.613 descreve o crime de “lavagem” como o ato de ocultar ou dissimular a origem de bens, direitos ou valores que sejam frutos de infração criminal, perguntava: “será que todos são iguais perante a lei?” E antes que alguém respondesse, emendava de primeira: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” 

 

O macaco Sócrates, inclusive, quando era detido pela polícia por alguma falcatrua, antes mesmo de recorrer a algum ministro de tribunais superiores ávido pelos 15 minutos de fama a que se referiu Andy Warhol, olhava à sua volta e procurava outros que tinham feito a mesma coisa que ele, sem encontrar ninguém. Nesse ponto, indagava: “Só eu? Cadê os outros?”. 

 

Ainda no Planeta dos Homens, havia um sujeito que não era político, no entanto era casado com uma mulher espetacular – não se sabe se era sócia de uma franquia de chocolates extremamente rentável ou coisa parecida. Os amigos, que não se conformavam quando o viam na noite sem a companhia da esposa, o aconselhavam a voltar o mais rápido possível: “Vai pra casa, Padilha!”

 

Ao mencionar Padilha (que poderia ser chamado de Queiroz, por exemplo), lembrei-me de Kate Lyra, atriz e modelo norte-americana que fez carreira por aqui, participava da Praça da Alegria, onde contava casos em que a prestimosidade dos brasileiros lhe ajudava nas tarefas do dia a dia. Claro, todos eles com terceiras e explícitas intenções, mas ela, um pote de candura e inocência, não percebia e exalava gratidão por todos os poros: “brasileiro é tão bonzinho!” 

 

Lembrei-me ainda dos olhos arregalados sob as sobrancelhas peludas de Francisco Milani, no Viva o Gordo, a questionar o conceito de normalidade das pessoas. Se dissesse algo absurdo – como, por exemplo, que vira um militar numa guerra que jurava estar vencendo, mas vinha perdendo 2.000 soldados por dia, perguntar à tropa: “Vão ficar chorando até quando? Chega de frescura e mimimi” –, e se as pessoas ficavam olhando pra ele, arrematava na lata: “Tá me olhando por quê? Eu sou normal!”.

 

O Brasil definitivamente perdeu a graça. Vivemos tempos amargos feito chocolate com 70% de cacau, sem o lado bom da coisa. Poderia ser menos triste se fôssemos unidos e as autoridades encasteladas estivessem à altura do caos instalado. Em alta por aqui só o escárnio dessa gente inepta e a indignação nossa (e do resto do mundo) de cada dia.

 


Tô ficando rabugento! Sou do tempo em que Ouro Branco na boca me fazia dançar de olhos fechados, sem música nem medo de cara feia, glicose ou triglicerídeos. Não sei se agora, feito Cazuza, adianta disparar contra o sol minha metralhadora cheia de mágoas. Mas vou continuar correndo na direção contrária, mesmo vendo o futuro repetir o passado nesse museu de grandes novidades.

49 comentários:

  1. Da mesma forma que o mosaico de uma colcha de retalhos inspira a imaginação de uma criança, o mosaico dessa crônica nos leva para mil e algumas percepções. Uma delas: "Talento, alavancagem e mercado fazem 'novos ricos', viva a criatividade."

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    1. Pensei em começar a crônica de forma mais firme, assim:
      “Tem testa oleosa por aí se achando uma mente brilhante cercada de imbecis por todos os lados. Não sabe essa gente sebosa que sujeira de chocolate não se limpa; lambe-se! Não sabe essa gente, como diria Cazuza, que não estamos derrotados, ainda estão rolando os dados.”

      Desisti, Ademar. Eu poderia ser chamado de invejoso, como os promotores públicos que acusaram o cidadão.

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  2. Nem sei dizer se curti mais a retrospectiva dos grandes momentos do humor, ou da ressonância que da voz à indignação com o momento atual, que nos corrói. Da mesma forma que o café agora me aquece o coração, e é tão bom como essa leitura bom dia. Obrigado. Dedé.

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  3. ANTONIO CARLOS CAMPOS10 de março de 2021 às 07:42

    Parece que o castigo de ser Presidente da Republica, que deve ser uma atividade muito penosa e mal remunerada, é enriquecer e despertar o dom da genialidade nos filhos.

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    1. Por isso o velho bordão resiste: “Tem pai que é cego!”. Ou se faz de cego, surdo e mudo.

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  4. Nesse momento de novo normal e de difícil credibilidade, vc conseguiu trazer um verdadeiro sorriso, ao lembrar desses talentosos atores comediantes. Da triste realidade atual à ternura de qdo realmente éramos felizes.

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  5. Bom Dia!
    Excelente, revive muitos destes programas e personagens. Que aliás, traziam a nossa consciência e aos olhos realidades que quase todos,considerava repugnante. Amanhã, ha de ser outro dia.

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  6. FABRICIO LUCAS DI PACE10 de março de 2021 às 08:27

    Qndo li a chamada através do link sabia que seria uma boa leitura mas não imaginava que seria até mais interessante do que imaginei kkk Top, analogia excelente

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  7. Que blz, Hayton! Você expressou com categoria o sentimento nacional de indignação e revolta que pairam represados no ar de todos nós, sobretudo, daqueles que ainda enxergam a camuflagem desses "políticos que continuam "brincando" com o pacífico povo brasileiro. Um dia o chocolate acaba! Tiberio.

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  8. Perfeito! Você está cada vez mais afiado! Necessário! 🤣

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  9. Excelente amigo! Analogia perfeita.

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  10. O FBAPA continua assolando o país. Triste muito triste.

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  11. Cada vez melhor! Esse é o meu amigo! Muita sensatez.

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  12. Gostei demais, meu caro amigo!
    Vc conseguiu uma perfeita mistura: uma saborosa visita aos deliciosos programas humorísticos de velhos tempos com sutis e precisas alfinetadas na (in)competência para negócios imobiliários do Zero Um...

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Perfeitas as analogias, com doses de muito humor.

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  15. Prezado Hayton

    Quem desenvolveu a valiosa competência de lidar com a palavra escrita, penso eu, tem como missão cidadã, por meio de textos, denunciar os desmandos e falcatruas que afligem nosso sofrido País. Se o fizer com engenhosidade redacional e bom humor, como você faz nesta crônica, melhor ainda!

    Abraço!

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  16. Muito bom, Hayton! Você reavivou personagens que iam se despedindo, se apagando da minha memória. Você foi firme mas elegante na indignação. Talvez por isso não tenha evocado a figura do Justo Veríssimo.

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    1. Verdade, Diniz. Logo ele, que anda tão presente ultimamente nessas figuras bizarras que se aglomeram sem máscara nem vergonha na cara. E o povão mais humilde, na fila do respirador, que... Melhor deixar pra lá.

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  17. Tem pai que é cego, acredito. Não me parece ser o caso do pai do gênio do ramo imobiliário...

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  18. Excelente, como sempre, amigo Hayton! Analisar os descalabros atuais à luz dos bordões humorísticos... muita sensibilidade e categoria! Parabéns!
    Sandro

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  19. Belas analogias e cabíveis ao momento. Triste o que vivemos, porém o escárnio continua.

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  20. Maria de Jesus Almeida Rocha
    Você foi perfeito!
    Conseguiu fazer a ponte entre o humor e a realidade com muita classe!!!
    Como diz o bordão:
    "Tem pai que é cego!"
    Abraços.

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  21. Alô, João Batista? Salomé De Passo Fundo!
    Estamos mesmo de uma nova Salomé, quanto dizia: "Eu "faço" a cabeça de João Batista ou não me chamo Salomé". Personagens deliciosos que se desfilaram em nossa história, quando, ingênuos, ainda acreditávamos que algo de bom iria acontecer com esse nosso sofrido país. Agora, no avançar dos anos, percebemos que rir é o melhor remédio. Ou não.

    Essa crônica tem que entrar no próximo livro hein? Obrigado pelo deleite desta.

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  22. Fazendo metáfora com a canção de Lupicínio Rodrigues Esses Moços,
    "Esses moços
    Pobres moços
    Ah! Se soubessem ...."
    Arrisco a dizer:
    Esses filhos
    Pobres filhos
    Ah! Se soubessem o pai que tem

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  23. Rabugento? É o preço que estamos pagando em viver isolado do mundo e vendo as politicagem sem feios.

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  24. Gosto quando você envereda pela seara política com dureza sem perder a ternura e a capacidade de despertar nostalgia, sorrisos contidos e indignação.
    A “carpintaria” do escriba está cada dia mais afiada!

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  25. Minha total e irrestrita solidariedade a sua indignação!
    Que maestria costurar o humor em contraponto à brutal realidade brasileira...valeu demais recordar grandes momentos que nos faziam sorrir com vontade.
    Grato

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  26. Excelente trabalho, meu amigo Hayton! Um texto com a simplicidade do cronista que sabe o que diz e o refinamento de uma crítica pra lá de oportuna. Da prodigiosa memória nem é preciso falar, o texto fala por si. Grande abraço!

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  27. Excelente crônica, muito melhor que aquelas que os jornalões oferecem ao público diariamente, raivosas e feitas para agradar os patrões. Críticas feitas em dosagem perfeita que nos mostram que pertencemos a um país de medrosos e acomodados mas sem ofender nem a inimigos do sistema nem tampouco a apoiadores do governo atual. Como diria um certo personagem daqueles programas, esse texto é “Bótimo, melhor que bom, melhor que ótimo!”

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  28. Excelente! Hoje vemos, perplexos, que aquele país de “gente boa” se mostra diferente, uma miragem. Forte abraço.

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  29. Delícia de texto. À maneira pasquinesca, tentando driblar a censura, mas entrando de ponta cabeça no assunto propriamente dito. Falando da política com toque de humor inteligente!

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  30. Agostinho Torres da Rocha Filho11 de março de 2021 às 17:34

    Não lembro de ter lido, ouvido ou assistido crítica tão contundente acerca da matéria, que foi o maior destaque da imprensa nacional na última semana. Mais um texto leve, criativo e bem humorado para brindar os leitores do blog. Parabéns!!! Crônica fora da curva.

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  31. Pensei que era só eu que estava ficando "rabugento". Complementando, como dizia Renato Russo: "que país é esse?".

    Nosso atual momento, de pandemia e polarização política, nos fará descer degraus no desenvolvimento social e econômico. Como se diz: "não tem nada tão ruim que não possa piorar".

    Não vou baixar a cabeça, mas não estou otimista.

    Grande abraço Hayton.

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  32. Não há tema onde você não brilhe, uma crítica como essa deveria ocupar lugar de honra nos anais que se organizasse de comentários sobre o momento político que vivemos.
    De quebra, o desfile de momentos e personagens inesquecíveis da TV, tão atuais hoje, talvez até mais do que no momento de suas criações.

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  33. Bom trabalho Hayton, gostei muito! Os bordões citados me levaram a tempos e personagens inesquecíveis!
    Abs

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  34. "Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã". As aspas indicam que a composição não é minha. Ainda que eu não tenha visto escuridão pior, a história humana viu e saiu contando. Cada retrocesso moral humano consiste num retorno "saudosista" a práticas imundas que deveriam estar enterradas tanto quanto quem as arquitetou. Muitos movimentos atuais, inclusive no Brasil, insistem em querer "restaurar a glória" de um mundo no qual o privilégio de poucos era ainda mais acentuado, o autoritarismo era a regra, a dominação, a prática, a submissão e a subserviência, meios de sobrevivência. Hoje, a inquisição corre pela internet e pessoas são "queimadas" (canceladas) por palavras, pensamentos e ações, sem direito ao mínimo conquistado pelos Estados democráticos de direito, justamente criados para combater as práticas da idade das trevas. Louvo as conquistas que nos trouxeram até aqui. Estendemos a vida, alcançamos as estrelas. Temo que tudo isso seja nada diante da capacidade de avançarmos um passo e recuarmos dez no campo da evolução de caráter humanistico. "Mas é claro que o sol vai voltar amanhã". Se metafórico o sentido do astro-rei, na canção do Renato Russo, ele mesmo parece não ter certeza quando compôs "Será que é tudo isso em vão?"

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  35. Hayton, genial! Um texto criativo e original, que demonstra com sátira e perfeição a tragédia que está acontecendo no nosso País. Parabéns, adorei!

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  36. realmente, não estamos derrotados, ainda estão rolando os dados e que bom que este planeta é redondo e ainda gira com grande regularidade. Acho que sempre estaremos respirando como povo e quem achar que "já ganhou"sempre estará "redondamente" enganado. Uma hora as faturas chegam...Muito linda sua crônica Hayton, os números da citada operação são tão escandalosos que é difícil imaginar como a Receita Federal ou o Ministério Público, se não fossem "dominados" não tomariam uma providência. Imagina nós aposentados do BB, do Executivo ao Posto Executivo, ninguém conseguiria um empréstimo deste tamanho com a renda que temos. Isso é constrangedor, além de revoltante. Mas que bom termos cronistas que falam disso com a leveza adequada, quem sabe nesta linguagem alguém leia e se sinta constrangido o suficiente para fazer algo... O traficante é assim, fica enebriado pela grana e acha que nunca será pego...um dia a casa cai!!!Parabéns Hayton.

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