quarta-feira, 21 de abril de 2021

Quem pirou o pirarucu?

No fim do mês passado, um pirarucu daqueles da Bacia Amazônica, tido como um dos maiores predadores de água doce em temperaturas que variam de 24°C a 37°C  pode chegar a 330 kg, medindo mais de três metros foi visto agonizando na beira de um rio no parque Cape Coral’s Jaycee, na Flórida, nos Estados Unidos.

O fato sem precedentes se compara ao príncipe Charles, passeando com Camila, a duquesa da Cornualha, nos jardins do Palácio de Buckingham, flagrar uma reunião envolvendo um bicho-preguiça, um macaco-prego, uma capivara e um tatu-bola, a chuparem bacias de jabuticabas, pitangas e pitombas, sob o olhar protetor de uma onça-pintada – retrato de paz na terra entre bichos de boa vontade, debaixo dos chuviscos de março fechando o inverno.

 


Claro que os americanos entraram em pânico com o nosso pirarucu. Tanto que pediram aos cidadãos que, se toparem com outro exemplar, fotografem ou filmem e mandem a imagem. Mas por que o desespero? Temem que possa ser o começo de um desequilíbrio ecológico, com mais uma espécie invasiva a comprometer o meio ambiente, a saúde humana e a economia. O custo direto e indireto aos Estados Unidos, argumentam, pode chegar a US$ 100 bilhões por ano.

 

Quem não tem pirarucu, tem medo, óbvio! Ainda mais hoje em dia, quando tudo o que procede da terra do samba e do carimbó – onde a atuação caótica das autoridades frente à guerra do século levou à catástrofe de quase 4 mil baixas em um único dia – está sendo visto sob as lentes da incredulidade e da repulsa, como se fossem seres desalmados capazes de, com suas cepas virais produzidas num criadouro de variantes exóticas, provocar estragos bem mais sérios do que um ataquezinho terrorista qualquer, promovido por meia dúzia de fanáticos magriços e barbudos.

 

Estaria o peixão tupiniquim, decepcionado com o que se passa em seu habitat, procurando uma vida mais digna, longe da exploração predatória que ameaça transformar a maior floresta tropical do mundo numa grande savana, com a inevitável extinção de povos tradicionais na mais bela e cobiçada região do planeta? Ou tentando fugir da escandalosa e contraditória falta de oxigênio exatamente no "pulmão do mundo"?

 

Seria o peixão um emissário secreto das nações indígenas designado para relatar ao novo governo instalado na Casa Branca, em nojentos detalhes, que apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020 desmataram mais de 11 mil quilômetros quadrados na Amazônia, o equivalente a sumir com uma área verde quatro vezes maior que as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas? 

 

Ou quem sabe pretendia contar aos gringos que existe por aqui um certo sinistro do meio ambiente que chegou a confessar num programa de TV que assumira a pasta sem nunca ter visitado a Amazônia nem saber quem era Chico Mendes. Que, no começo da guerra do século, o indigitado defendeu com caninos e unhas, numa reunião ministerial cujo teor por acaso veio a público, que se deveria aproveitar o fato de a mídia estar distraída com uma gripezinha “para passar a boiada”, isto é, afrouxar a legislação ambiental sem risco de reação por parte dos brasileiros alfabetizados. 

 

Na reunião que entrou para o anedotário de Brasília, ocorrida exatamente há um ano, viu-se em cores sombrias o enredo proposto para um filme de horror onde demônios vestidos de santos desmontariam a legislação ambiental e enfraqueceriam os órgãos de proteção, estimulando grileiros, madeireiros e garimpeiros a invadirem as áreas públicas da floresta, justo quando o maior surto viral da história se alastrava como fogo morro acima pelos territórios indígenas. 

 

E se a pressão internacional apertasse? Para o homem branco, bastaria um show pirotécnico com armas de grosso calibre, espalhando dados distorcidos para levar ao resto do mundo – sem alterar a fisionomia, a voz, nem corar – a mentira segundo a qual aqui se faz o que é possível ser feito e que tudo está como sempre esteve, na santa paz dos deuses das florestas.

 

Lembro-me bem de que o presidente norte-americano Joe Biden, em seu discurso de posse, defendeu o combate à devastação climática como uma de suas maiores prioridades. Ainda na campanha eleitoral, prometeu investir 20 bilhões de dólares na proteção da Amazônia. Sabe que não existe possibilidade de controlar o superaquecimento global, bandeira cara à ala mais progressista do seu partido político, sem o esplendor da maior floresta do mundo, viva e pulsante, abaixo da linha do Equador (e um pouquinho acima também).

 

Mas, voltando ao falecido pirarucu, se ele de fato não for um emissário secreto dos povos indígenas, é razoável supor que estaria apenas tentando se vacinar ao perceber que, pelo andar da carroça verde-amarela, a imunização dos sobreviventes deve demorar mais que uma nova conquista do futebol brasileiro. Ou teria ouvido pelo rádio de um pesqueiro qualquer que o presidente Biden, eufórico com o excelente ritmo da vacinação dos americanos, espera celebrar nas ruas o próximo Independence Day

 

Sei não... Será que tudo isso não passa de uma espécie de releitura daquele antigo hit dos Originais do Samba – nova versão, adaptada à água doce – em que um guaiamum investigava o assassinato de um camarão cujas principais suspeitas recaíam sobre sardinhas, piranhas e tainhas? Estariam agora cogitando a detenção do pirarucu em regime fechado, sem direito a prisão domiciliar como certos cúmplices envolvidos em tenebrosas rachadinhas? Quem me garante que não houve apenas uma queima de arquivo à beira do rio no parque Cape Coral’s Jaycee?

 

Enfim, muitas perguntas sem respostas. Afinal, até quem tem pirarucu, tem medo do que vem por aí.

49 comentários:

  1. Parabéns pela riqueza de construção da crônica, a partir de uma situação inusitada, que deu margem a tantas especulações imaginárias reais.

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    1. Obrigado, Chagas. Como bem dizia Fernando Sabino, “nem tudo que acontece é verdade; nem tudo que se imagina é invenção”.

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  2. É mais fácil fazer 1000 pontos na redação do ENEM, ver o Palmeiras ganhar um MUNDIAL que ter as respostas para estas indagações. Que os tigres de bengala não venham para meu Pajeú.

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  3. ANTONIO CARLOS CAMPOS21 de abril de 2021 às 07:36

    Está cada dia mais difícil se situar no mundo das informações. Como ser um cidadão consciente se o Executivo mente, o Legislativo mente, o Judiciário mente e a Grande Mídia mente. Vivemos, em essência, da mentira santa de todos os dias.

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  4. Olá Hayton, sem abdicar do bom humor e da elegância, qualidades sempre presentes em suas crônicas, você cumpre um importante papel que transcende a literatura: denunciar algumas de tantas tragédias brasileiras em curso.

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  5. Só temos uma alternativa: Fora Bolsonaro.

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    1. Respeitosamente, permito-me encarecer q não peça a volta da quadrilha

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    2. Resolve? Adianta o bate-boca de esquerda e direita se o Brasil desde Deodoro da Fonseca praticamente não sai do lugar. A pergunta que não cala: o que nossa geração fez ou tá fazendo para evitar o colapso ambiental?

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  6. Em tempos de cúpula do clima, o nosso querido pirarucu (pirosca para os tocantinenses), provavelmente estava tentando, como o Dragão do Mar, reaparecer na figura de um bravo feiticeiro, ainda em tempo (dias 22 e 23.04.22) para denunciar que, nem ele consegue respirar os ares deste além-mar, seja pelo desmatamento, seja pelo desavergonhamento geral do boiadeiro Ricardo Salles e seu dono.

    Esse artigo, mais que uma crônica merece ser enviado aos principais diretores de redação de jornais e revistas do país, pois retrata, nessa parábola do pirarucu, a lenda da revolta dos bichos contra o destruidor da natureza. Só pra constar, as 11 maiores nações em PIB no planeta, presentes à tal cúpula, respondem por 80% das emissões de CO2 atualmente.
    Acho que o pirarucu não dará muita sorte por lá.

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  7. Mias uma excelente crônica!
    Como disse o amigo aí acima, a única solução é botar fora esse desgoverno.
    Zezito

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    1. Perdão, mas não peça a volta da quadrilha , por favor

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    2. De novo, pergunto: Resolve? Adianta o bate-boca de esquerda e direita se o Brasil desde Deodoro da Fonseca praticamente não sai do lugar. A pergunta que não cala: o que nossa geração fez ou tá fazendo para evitar o colapso ambiental?

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  9. Crônica muito rica de verdades atuais do momento que estamos vivendo , onde o desequilíbrio governamental leva ao desequilíbrio ecológico, além da pandemia tão mal administrada pelo Governo Federal , levando a raça humana ao caos.

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  10. A história é boa (embora triste), mas o jeito de contá-la é tudo!
    Mais um texto impagável (acho que estou ficando redundante, repetitivo e pleonástico...)!

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  11. Esta matéria deveria ser publicada no New York Times, Le Monde, The Guardian, Dayle Mail, entre outros.

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  12. Parabéns pela crônica, cheia de imagens e mensagens. De fato, “quem tem pirarucu, tem medo”.

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  13. Crônica digna de ser publicada em grandes jornais. Parabéns mais uma vez por nos brindar com seus textos maravilhosos e enriquecedores. Só faltou dizer que desde o assassinato do camarão, ainda não prenderam os suspeitos.

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  14. Fora Bolsonaro, Dilma já!

    Política à parte, o texto é genial.

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  15. As opiniões divergem, os políticos prometem, alguns tentam acertar, a maioria erra e, no fim das contas, o Pirarucu é quem sofre!

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  16. Texto maiúsculo e maduro, Hayton! Sem abdicar do bom humor você traçou com rara felicidade o quadro dramático do desastre ambiental que está acontecendo diante de nossas retinas fatigadas e inertes. Esse desgoverno é um pesadelo e esse ministro do ambiente um competente do mal. impiedoso e inescrupuloso. Aonde vamos chegar?

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  17. Com elegante ironia e rica correlação de fatos, o texto faz rir e refletir. Pro meu gosto, não precisa mais! Perfeito!

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  18. As quadrilhas continuam por aí, inteiras ou rachadinhas. Estamos reféns de um pensamento preguiçoso que elegeu um inepto como antídoto de uma corrupção que vem desde Deodoro. Fora Salles! Fora Bolsonaro!

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  19. Texto perfeito e atualíssimo! Que vejamos tempos melhores! Que amanhã seja um outro dia!

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  20. Quem tem pirarucu, tem medo. Sigo o colega. Deus nos livre dessa quadrilha maldita. Contra fatos não há argumentos. Bom feriado. Um abraço.

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  21. E o pirarucu pagou o pato...
    Mais uma vez vc reúne bom humor e profundidade na abordagem de um dos mais graves problemas que estamos vivendo. Parabéns!

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  22. Ouvi dizer que foi uma das milhares ONGs americanas e europeias que infestam nossa Amazônia que roubou o Pirarucu e o levou para a Flórida. Se bobear, levam tudo. Atė a floresta inteira.

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  23. Ficaria melhor sem política! 👍👏
    Abs

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  24. O autor foi autêntico no que discorreu. Os analistas foram unânimes e concordam: alguém tem que sair.

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    1. Fanáticos dirão: quem tinha de sair, já saiu: o pirarucu!

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  25. Negativo. O espaço é democrático e as opiniões são divergentes. O autor atingiu seu objetivo que é despertar a atenção para seu texto. Toda a unanimidade é burra, já dizia Nelson Rodrigues.

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  26. Não sabia das andanças do pirarucu . Quem dera o objetivo de denunciar as consequências do desgoverno na Amazônia houvesse sido alcançado.! Só Deus para nos ajudar a aturar esse “sinistro “ e seu protetor.

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  27. Brilhante Hayton !!👏🏻👏🏻👏🏻
    Em 2022 teremos a oportunidade de devolver o Brasil aos brasileiros e o pirarucu a seu habitat natural.

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  28. As razões pelas quais o pirarucu foi parar na Flórida são todas as abordadas na sua crônica (e mais algumas). Pra mim, considerando que o pirarucu tem "pirarucu" ... e quem tem pirarucu tem medo, conforme você registrou, ele se evadiu - pirulitou-se - com medo de não ser vacinado, de não encontrar vaga em UTI, de não poder receber auxílio emergencial, de ter que usar cloroquina e outras drogas, de ser investigado pela PF por ter criticado o presidente (em minúscula mesmo). O pirarucu fez o que muitos gostariam de ter feito!!!
    Abração
    Roberto Abbehusen

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  29. Você não tem jeito!!!
    Consegue misturar o Palácio de Buckingham com os Originais do Samba, com cirúrgica pertinência. Mais ousado, nos faz lembrar que "quem tem pirarucu tem medo", mas coloca com precisão que "quem não tem, também se amedronta", a depender de ocasião e caso.
    Enfim, mais uma pérola - dentre as finas - com que você nos brinda.
    De resto, meu querido Abbehusen foi preciso e brilhante no comentário acima.

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  30. Pitadas de Gabriel Garcia Marques e realidade cotidiana. Muito bem engendrada. Meus cumprimentos amigo.

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  31. Tema danado. Não me lembro de um governo que tenha batido o martelo sobre o assunto. Infelizmente interesses se sobrepõem sempre. Pena. Quando se chama a desgraça sempre vem.

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    1. Concordo com você. Como disse Jamil Sade, "não foi apenas a floresta que diminuiu. A sociedade encolheu, a expectativa de vida caiu, a economia contraiu, a comida no prato foi reduzida e as possibilidades de cruzar as fronteiras foram limitadas",

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  32. Como sempre, excelente Hayton! Imaginação sem limites. Quem sabe, a própria natureza reagiu e decidiu defender seus interesses, considerando não ter quem o faça.

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  33. Triste, Hayton, muito triste a situação do nosso Brasil, devastadora! É inacreditável, um ministro do meio ambiente que se posta em frente à toneladas de madeira, defendendo madeireiros investigados pela Polícia Federal e que, mais absurdo ainda, destitui o delegado responsável pela investigação. Esse mesmo ministro, que dias depois, com um cinismo sem limites, comparece à Conferência Mundial do Clima. É deprimente! O que ainda me consola, são as vozes como a sua, que se levantam para denunciar tamanhos absurdos!

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    1. Pois é, Helô, a coisa tá mais feia do que parece. O delegado da PF, líder da investigação que culminou em "apreensão histórica" de madeira ilegal na Amazônia e autor da notícia-crime contra o ministro do Meio Ambiente, ironizou quinta-feira passada que o desmatamento no Brasil vai acabar, sim, até 2030, mas “por falta de floresta".

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  34. Agostinho Torres da Rocha Filho25 de abril de 2021 às 12:04

    Fora, Bolsonaro!!! Volta, Lula!!! Não concordo com a polarização do tema em torno de duas figuras que não conseguem sequer representar direita e esquerda, no Brasil. Trata-se de uma crítica bem elaborada so descaso das autoridades brasileiras com o meio ambiente. Belo texto!!! Mexeu com o sense político que anda adormecido dentro de cada um dos assíduos leitores. Parabéns!!!

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  35. Agostinho Torres da Rocha Filho25 de abril de 2021 às 12:07

    Correções: ... sobre o descaso.
    ... senso político que snds adormecido.

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  36. Que bacana o estilo do realismo fantástico que adotou. Fantástico e que nos entristece, pois que tu acertou na mosca, ou melhor, no nosso pirarucu. Costumo dizer que as palavras encantadas são a mais forte resistência. Teu conto, do Pirarucu, é tão resistente e inspirador, como aqueles que instigaram a Guerra Civil nos EUA, após a leitura de um conjunto de crônicas sob o título A Cabana do Pai Tomás. Aqui seria as aventuras de um Pirarucu, que nos fazem olhar em que n os tornamos, e sair do coro dos contentes, desafiando o lugar comum. Desafiando até ser preso. E ousar falar, mesmo que muitos já tenha se calado, ou estejam em preces resignadas. Valeu demais amigo! Adorei.

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