quarta-feira, 7 de julho de 2021

Medos e garapa

Como todo menino criado solto entre quintais e calçadas do interior, um dia escapuli logo cedo da mesa do café para ver o homem que subia no telhado da casa na esquina da rua em que morávamos. 

Dizia-se que ele iria esvaziar e lavar a caixa d’água. Sentado no chão, via-o lá em cima com o rosto encoberto pela sombra do chapéu, concentrado no que fazia. Nem notava o pequeno e curioso admirador.

 

Não demorou muito e começou a tremer como se sentisse frio, apesar do calorão que ardia no Sertão paraibano. Então se debruçou sobre caibros e ripas, os braços arriaram, o chapéu caiu e a tremedeira sumiu. 

 

Voltei correndo para casa. Ao chegar com olhos de assombro, a respiração ofegante e mudo, espantei  minha mãe:

– O que foi, menino?! 

– O homem... O homem… 

– Que homem? Fale!

– No telhado da casa da esquina…

 

Era tarde. A descarga elétrica da fiação sem adequado isolamento me fez assistir, aos oito anos, à morte trágica de um ser humano pela primeira vez. 


Lembro que não chorei, talvez por conta do pronto aconchego materno e do copo de garapa (água açucarada) que me foi servido. 


De noite, demorei a pegar no sono, com medo de alma. Medo também do que seria da vida dos filhos daquele homem sem rosto que limpava a caixa d'água e, de repente, adormeceu para não mais acordar.

 

Não demorou seis meses e, de novo, voltei a sentir medo. Vi minha mãe sofrendo, acometida do que as vizinhas chamavam de mal de sete-couros – tumor que se forma sob a pele do calcanhar, na planta do pé. Temi perdê-la e que sua alma viesse visitar a família.

 

Ela, grávida do sétimo bebê, ajoelhada sobre uma cadeira com travesseiro sem poder pisar no chão, cozinhava e lavava panelas e pratos. E cuidava dos filhos enquanto o marido chegava do trabalho para ajudá-la. 

 

Na época, eu vinha sendo catequizado para a primeira eucaristia por uma beata mirrada, com olheiras de cansaço cobertas de pó e rouge, conhecida como Neném Macarrão. 


Dizia-se que ela ficara no caritó (expressão sertaneja usada para designar a mulher que não casou) e que ganharia o reino dos céus quem tivesse a graça de vê-la sorrindo. Futrica de vizinhas sentadas nas calçadas ao entardecer.

 

Um dia, chegou a notícia de que Neném Macarrão não daria as aulas da semana. Estava doente. Minto se disser que não vibrei com o tempinho a mais para brincar. Na manhã seguinte, o coração dela parou de bater. 

 

Minha mãe nem pôde ir ao sepultamento da beata. Apesar das compressas quentes, da água oxigenada e da pomada de penicilina, continuava sofrendo os horrores do mal de sete-couros.

 

Ao lembrar que não foram pagas as últimas aulas da falecida, alertou meu pai de que deveria fazê-lo o quanto antes. Tinha certeza que a alma de quem morre vem cobrar dos vivos as contas em aberto.

 

Após o jantar, em sua angustiante rotina, ela limpava a pia ajoelhada sobre a cadeira, enquanto o marido e os filhos se espalhavam pelos demais cômodos da casa à espera da hora de dormir.

 

Um grito vindo da cozinha quase trinca os mosaicos. Pai e filhos correram para socorrer a vítima que, de olhos fechados, mãos trêmulas, com os pelos arrepiados, só não fugiu dali por causa das dores lancinantes no calcanhar:

– O que foi isso?! – acudiu o marido.

– Neném Macarrão me apareceu... Tava bem ali no canto...

 

Mãe, pai e filhos, Carnaval de 1966
Mãe, pai e filhos, no Carnaval de 1965

A gurizada quase se mija de medo. Fez fila para beber garapa e ir ao banheiro antes de dormir. E, pelo sim, pelo não, no dia seguinte fui designado para levar à casa da beata um envelope com a quantia devida pelas últimas aulas de catecismo. 

 

Mais de meio século depois, meus medos agora são outros. Por exemplo, de deixar de sonhar, de desistir de aprender, de não me comover ou me indignar com o que vejo. Garapa é doce mas não resolve. 

40 comentários:

  1. É meu caro: a gente cresce; não tem outro jeito. Conhecer nos liberta e nos aprisiona ao mesmo tempo!

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  2. Essa história é verdadeira! Testemunho e dou FÉ!! Descontando alguns " floreios" rsrsrs. Na próxima, conta do dia que levantastes a lona do caminhão de cadáveres oriundos da cheia de 1969 em União dos Palmares! Você era mestre em vir contar as " novidades" pra "assombrar" os irmãozinhos...rsrsrsrs

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  3. ANTONIO CARLOS CAMPOS7 de julho de 2021 às 07:05

    Agora maduro, sensato e racional, meus medos finalmente desapareceram; hoje só tenho pavor.

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  4. Na minha época de criança as coisas que eu tinha mais medo era de viagem e do mundo acabar.
    Zezito

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  5. Vovó e suas teorias. Até hoje, não consigo dormir sem lençol. Ela uma vez disse: "SE DORMIR SEM COBRIR O CORPO, A ALMA SAI VIU MENINA?"
    Enfim.... o subconsciente absorveu a informação com sucesso ✔

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  6. Que pintura, é narrativa da vida, bem vivida, sonhada e de grandes realizações.

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  7. Os medos são trocados com o tempo. A plena consciência comanda os pensamentos. Mas, a bem da verdade, os medos continuam. E não poderia ser diferente. As aflições estão para o homem, assim como o sol está para o céu.
    Roberto Rodrigues

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  8. Garapa eu aprendi que seria da cana de açúcar.. No sul chamamos assim o caldo de cana

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  9. Poxa, que histórias! E que bela forma de contá-las (sinto-me “dentro” delas)!
    Não sabia dessa acepção de garapa…

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  10. Hayton!
    Você me fez lembrar de um velório de uma “comadre” da minha finada vó.
    A missa de corpo presente foi na própria casa onde morava a “comadre”, na salinha de estar.
    Minha vozinha dizia, para não ter medo da falecida deve-se tocar no pé dela….

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  11. Bela crônica. E vivas à garapa, até hoje uma grande solução para os aflitos.

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  12. Convivemos, permanentemente, com a metamorfose do medo. Cada um com a sua, sem exceção. E assim caminha a humanidade...

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  13. Medo não pode ser caracterizado com fraqueza, precisa ser controlado. Difícil missão.

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  14. Achei muito engraçado o mal de sete couros. Nunca ouvira este mal. O dito cujo calo ósseo. Daysedelanzac

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  15. Hayton sempre enredando os contos da infância com as aflições da alma. O final traz a sabedoria dos anos vividos, em que a perda do encantamento das coisas não apaga a sensibilidade do olhar.

    Sergio Freire

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  16. Bela crônica, os nossos medos vão sendo substituídos com o passar dos anos, mas quem não os tem? Os nossos medos nos acompanham de acordo com a faixa etária.

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  17. Muito importante falar de medos! Quem não os tem? Medo de não sentir medo. Medo de achar que as coisas são assim porque são. Medo da normalização do sofrimento ou do tédio. Medo de morrer. E o mais terrível de todos: medo de viver!

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  18. O medo foi marcante na minha infância, seja por episódios como aqui tão bem relatados, seja pelo escuro das noites intermináveis, quando ainda não era permanente a energia elétrica nas casa, seja por escutar histórias de trancoso (lobisomem, almas penadas...etc), como requintes de assombrações. Mas outros medos nos acompanham por todas as etapas da vida, medo de não dar conta dos estudos, o medo de não entregar as obrigações do trabalho, o medo de perder os entes queridos, o medo da morte e outros, mas o que nos permite superar tudo isso e viver feliz, além de uma boa garapa, é a força que Papai do Céu no dá, que penso ser coragem.

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  19. Como sempre excelente narrativa. Adorei o final. Novos tempos, novos medos.

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  20. E sua mãe ficou boa do "mal de sete-couros"?

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    1. Hoje, com quase 83 anos, 21 netos e 24 bisnetos, vacinada e feliz, Dona Eudócia diz que não sente saudades daqueles tempos.

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    2. Novamente dez, Hayton! Histórias da vida de todos nós!

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  21. O medo tem sua utilidade pois ele nos protege, nos segura, nos controla. Ele nos priva de belas aventuras, é certo, mas nos tira de algumas "frias" também.

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  22. Muito bom! Seus contos sempre me arremete a minha infância! Vivemos em Estados diferentes, mais no nosso nordeste os nossos medos de infância são muito parecidos!

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  23. Me fez lembrar de um caso também. Quando eu tinha uns 8 anos fui a um velório de um menino, também nessa idade mais ou menos. Vi-o de perto, rosto angelical, naquele caixão, apenas com um véu branco a cobrir-lhe a face serena. Divisei um orifício de cerca de 0,5 cm logo abaixo de seu olho direito, próximo ao início do nariz. Foi um tiro. Triste aquela cena. Soube mais tarde que havia sido um acidente com a arma que pegou do pai sobre o guarda roupas. Essas histórias hoje, de fato, não nos põem medo. Nos dá, no entanto, a dúvida do porquê? Por quê pessoas simples como o limpador de caixa d'água se vão e por quê pessoas inocentes como aquele menino se vão?

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  24. Esta é do tipo das suas crônicas que eu mais saboreio, suas reminiscências tão bem contadas, que além de trazer uma boa história, desperta também lembranças na gente de fatos parecidos vividos por nós. Show!

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  25. Alguns medos desaparecem, outros ganham novas formas e diferentes intensidades.
    O importante é não deixar de sonhar e não perder a capacidade de nos indignarmos com muito do que anda acontecendo, como vc muito bem escreveu no final desta crônica.

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  26. Medo. Medos. Independente de idade sempre o teremos. Quando crianças, do escuro, de almas, de bichos e até de lobisomem. O tempo vai passando e os medos mudam, mas continuam. Acho que foi por isso que desde que me entendi por gente, e disfarçar os medos, nunca mais esqueci da frase latina: "qui culum habet, timorem tenet".

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    1. Hayton, segui o conselho de Emidio e vim aqui visitar seu blog.
      Aos dois, parabéns ! um pela indicação ao o outro por reviver assuntos esquecidos no passado como medos da infância e garapa(bebi muito).

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  27. No meu comentário acima eu quis dizer visagem, nome dado às almas penadas.
    Zezito

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  28. Um texto para reflexão...somos filhos do medo? Excelente texto sobre os fantasmas que nos acompanham a vida inteira.

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  29. Rapaz, eu concluo que suas crônicas nos fazem muito bem e até algum mal.
    O bem é que nos faz refletir, nos emociona, até nos enleva, e como nos esclarece!!!!
    Já o pequeno mal é a angústia que nos apossa por querer comentar algo e ficar sofrendo, pensando no que dizer, como registrar tanto sentimento.
    A propósito, mais uma vez você coloca algo de forma despretensiosa que nos leva a balançar. No terceiro parágrafo você diz - "o chapéu caiu e a tremedeira sumiu". Algo assim pode frequentar tratados de filosofia e, quem sabe, sociologia.
    Eu fico aqui imaginando, o que é que esse cara ainda vai inventar!!!

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  30. Mais um texto maravilhoso e emocionante que nos leva àqueles tempos onde a pureza da vida era uma constante. Ao ler, os termos "garapa" (no Maranhão é o sumo da cana-de-açúcar que sai do moedor) e caritó. Eu tinha umas tias que não casaram e as pessoas falavam que elas tinham ficado no caritó kkkk

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  31. Na minha infância o medo foi muito marcante ( medo do escuro, de alma penada, de lobisomem, de fantasma da morte... etc. E o tempo vai passando, passando... os medos mudam e nos acompanham a vida inteira.
    Garapa, eu conheço como caldo de cana.
    Bela reflexão! Fica o aprendizado!!!
    Maria de Jesus Almeida Rocha.

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  32. Medo de não ter medo, mas tendo, ter medo de enfrentá-los seria o pior deles.

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  33. Agostinho Torres da Rocha Filho11 de julho de 2021 às 10:21

    Regra geral, criança tem medo de escuridão, solidão, trovão e de outros bichos de sete cabeças, mas testemunhar o óbito de um trabalhador, eletrocutado no telhado de uma residência, é demais para compreensão infantil. Confesso que não recordo o episódio narrado, mas tenho absoluta certeza de que a garapa nordestina acalmou aquele menino agitado com a tragédia que acabara de presenciar. Ótima crônica!

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  34. É incrível como a nossa infância, principalmente dos que nasceram até a década de 1970, estão interligadas e ainda principalmente que viveu no interior do nosso Estado. Sensacional o seu texto

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  35. Muito boa. Me levou de volta ao meu tempo de menino... O medo de alma penada ainda persiste nas pessoas. Meu pai ficava surpreso dele de ver que eu não tinha medo, e nunca tive. Não me pergunte o motivo. Acho que era porque eu cresci no meio de tantos velhos que iam falecendo que me acostumei...rs. Parabéns por mais esta. Muito divertida.

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  36. Verdade, meu Amigo. Medos. convivemos com eles toda a vida.O mais desafiador, é o medo do intangível. daquilo que é certo - como a Morte - com esse quase não conseguimos lidar. A não ser pela fé. pela crença inabalável de que estamos somente de passagem, de alguma forma. Medo do tangível, esse nos permeia a vida desde o comecinho. E vamos superando, um a um. e chegam novos. às vezes mais de um ao mesmo tempo. Eles nos levam - quando superados - à Coragem, à Segurança. Superar medos, às vezes se parece com falta de prudência. Lembro que li uma vez, em Monteiro Lobato, que escreveu: 'O medo nos afasta das derrotas. Mas das vitórias também." Abração!!!

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