quarta-feira, 21 de julho de 2021

Nunca mais!

Li outro dia que um dos negócios mais rentáveis do mundo é o comércio ilegal de animais silvestres, que movimenta cerca de 20 bilhões de dólares por ano. Vem a ser a terceira atividade clandestina que mais gera dinheiro, atrás apenas dos tráficos de drogas e de armas.
 
Só no Brasil, todo ano 38 milhões de animais são retirados à força de seus habitats naturais, envolvendo anfíbios, aves, insetos, mamíferos, peixes, répteis, entre outros. 
 
Os considerados menos agressivos (araras, chinchilas, iguanas, micos, papagaios, peixes ornamentais etc.) são os preferidos nesse mercado odioso, com preços ditados pela raridade, como se fossem pedras preciosas. 
 
Enfim, aprendi que essa atividade criminosa provoca desequilíbrio ecológico, mexendo de forma dramática na cadeia alimentar, além de reduzir a biodiversidade de determinados ambientes. Mais grave ainda: 90% dos bichos traficados não sobrevivem ao transporte ou não se adaptam ao novo habitat
 
Se, há 20 e poucos anos, fosse suficientemente esclarecido sobre a complexa equação biológica que garante a vida no planeta, não teria me transformado em mais um desses marginais, ainda que não tenha lucrado um centavo com meu único delito, já devidamente prescrito. Mas ganhei alguns trocados de carinho, reconheço. Já chego lá!
 
Logo após a virada do século, havia sido comunicado pela direção do banco em que trabalhava de que fora transferido de novo (sétima mudança interestadual, entre 1988 e 2000), agora da Bahia para o Distrito Federal. A ansiedade diante de mais um recomeço se instalou na sala-de-estar de minha família.
 
Para aliviar o desassossego, alguns amigos e amigas resolveram preparar um almoço de despedida na véspera da viagem, ocasião em que uma delas quis confortar minha filha, oferecendo-lhe uma inusitada recordação da Bahia: um par de filhotes de ajapás (quelônios de água doce, mais conhecidos como cágados). 
 
Achei que minha filha fosse agradecer a gentileza e, com o jeitinho dela, explicar que não teríamos como, na viagem aérea marcada para o dia seguinte, transportar animais silvestres sem a devida permissão da autoridade competente.
 
Que nada! Tocada, imagino, pela profusão de sentimentos que vivia, percebi que ela abriu seu primeiro sorriso desde que soube que iríamos mudar de novo. Como o seu pai teria superpoderes – não para evitar o desconforto de tantas mudanças, claro! –, deve ter pensado: “Ele dará um jeito!”
 
Longe de mim, àquela altura, cobrar sensatez e argumentar que deveria deixar os pequenos animais com uma amiguinha que morasse numa casa com quintal e jardim, terra e grama, chuva e sol. Só provocaria uma nova enxurrada de lágrimas. Melhor, não.
 

Claro que bateu medo de ser detido no aeroporto e indiciado criminalmente pelo tráfico de animais silvestres. Óbvio que não seria possível simplesmente utilizar uma caixa de sapatos com furos, pois teria que passar pelo aparelho de raio X junto com as demais bagagens de mão, relógio, celular e chaves.
 
Como era grande o fluxo de pessoas entrando e saindo do terminal, imaginei que seria difícil para a administradora aeroportuária controlar a licitude e segurança de tudo que os passageiros traziam consigo. Sofrimento de filho nos faz elevar o sarrafo e saltar acima dos limites de nossa coragem (ou falta de juízo).
 
De propósito, deixei no pulso o relógio e coloquei um cágado em cada bolso do blazer. Pensei: dificilmente alguém vai desconfiar de que um cidadão grisalho, de óculos, barbeado, bem-vestido e cheiroso, com sua família, transporta escondido um par de pequenos quelônios.
 
Quando o alerta soou, a própria inspetora só me cobrou retirar do pulso o relógio e juntá-lo aos demais itens na esteira do raio X. Então, fiz apenas o que me foi solicitado, agradeci e segui em frente, juntando-me à mulher e aos filhos que já me aguardavam no corredor de acesso à zona de embarque. 
 
Dentro do avião, aquelas criaturas silenciosas e bem comportadas foram transferidas para uma caixinha que sua “dona” havia carinhosamente preparado, inclusive com pequenos pedaços de frutas, para que a viagem transcorresse em paz. Uma refeição de bordo melhor do que a dos demais passageiros.
 
Foi desse jeito que um apartamento funcional no quarto andar de um prédio numa cidade fria e seca no Planalto Central, a mais de 1000 metros de altitude, virou criatório ilegal de animais silvestres. 
 
Nunca mais! Tinha consciência de que a qualquer momento poderia receber a visita de emissários do Batalhão de Polícia Militar Ambiental, para resgate dos animais e competente autuação do aprendiz de traficante aqui. Mas cada dia com sua agonia, como diz um amigo meu.
 
Dois meses depois, os cágados pareciam acostumados com uma rotina nada silvestre, inclusive com a curiosidade de Lobão, mascote-chefe da casa que gostava de tomar banho de sol assistindo aos preguiçosos passeios dos dois nas floreiras de chão da área de serviços. 
 
Mas não demorou muito. Um dia, do nada, eles partiram sem se despedir nem de Lobão. Mudaram-se, sem aviso-prévio, para o céu das criaturas inocentes arrancadas de seu habitat
 

Não eram bancários. Nem todos sobrevivem a uma vidinha sem graça, repleta de mudanças inesperadas, tendo que conviver com seres supostamente humanos e racionais. 

37 comentários:

  1. “Sofrimento de filho nos faz elevar o sarrafo e saltar acima dos limites de nossa coragem (ou falta de juízo).“ o que os pais não fazem por seus filhos; se me contassem talvez não acreditasse, mas agora relatado pelo próprio , tenho que acreditar, dois cágados no bolso do Executivo do BB. Valeu grande pai!

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  2. Família; Filhos, nos levam a atitudes e ações diferenciadas, que só por esta causa, por entrega e amor, fazemos. Vê-los bem ou pelo menos amenizar seus sentimentos, êxito para Nós.

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  3. ANTONIO CARLOS CAMPOS21 de julho de 2021 às 06:33

    Sem adentrar ao mérito do ecologicamente correto, como criança no Mato Grosso, sobre tivemos animais exóticos, sem complexo de culpa: arara, papagaio, siriema, jaguatirica etc. Impensável nos tempos atuais. Se bem que o politicamente correto desse 'novo mundo", virou uma chatice. Os Telejornais estão aí pra não me deixar mentir.

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  4. No início da prosa fiquei na expectativa que o desfecho seria a doação dos animais para um projeto. Como se foram, resta-nos a certeza que não foi por falta de cuidado.

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  5. Mais uma narrativa interessante e gostosa de ler. Quanto ao “delito”, ninguém ficou chateado ou prejudicado. A lamentar, somente a perda das tartaruguinhas.

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  6. Ao começar a ler a saga pensei: será que os bichinhos vão terminar em "cagada" a exemplo do que faziam (não sei se ainda o fazem) lá em Santana do Ipanema-Al? Por sinal, já provei do prato e não gostei não, mas como se diz: "gosto, cada um tem o seu!". Boa história, Hayton, como sempre.

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  7. Genial. Tive inveja desse pai, bancário como eu fui, mas astuto feito um McGiver! Outra história muito bem contada! Que vai para a coleção!

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  8. Dessa história, me lembro como se fosse hoje. Que aperto heim amigo …..

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  9. Imaginei começo da crônica que após a chegada da família no novo endereço os cágados seriam felizes para sempre. Mas o próprio texto explica que geralmente animais que são retirados de seus habitats nem sempre resistem às mudanças. Uma história alegre e triste ao mesmo tempo mas ótima.

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  10. Me lembro muito bem desse dia e compartilhei dos momentos de angústia pré embarque. Ufa! que alívio quando se viu di outro lado.

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  11. Pai tem que ser assim mesmo, um misto de amor, ousadia e imprudência. Beleza de texto.

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    1. Eis aqui a querida amiga que quis e conseguiu aplacar a dor e fazer minha filha sorrir, dando-lhe o par de cágados. Quase deu certo.

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  13. Eu ia com os meninos caçar passarinhos, porque era isso que tinham que fazer os meninos no interior do Ceará. No entanto, minha consciência ecológica, que à época chamava apenas de "deu pena", me fazia dono de uma mira que nunca passou nem perto de nenhum dos bichinhos.
    O mundo muda e rebalanceia tudo que já fizemos e pensamos em fazer e quando falamos sobre o que se foi incorporamos essa mudança. Você fez bem.
    Dedé

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  14. Hahaha demais essa crônica! Agora entendo esse amor e esses atos irracionais que fazemos pelos nossos filhos… que perigo!

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  15. Somente sendo pai pra se sentir em plenitude nesta bela narrativa do que somos capazes de fazer por eles.

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  16. É verdade, meu caro amigo: pelos filhos vamos além do esperado, do que se considera “normal” na vida.
    Logo depois que meu primeiro filho nasceu, percebi que ele precisaria de atendimento especial, em razão de surdez severa. Tratamento, à época, só na Capital.
    Já exercendo cargo comissionado no BB, no interior do Estado, larguei tudo e resolvi começar a carreira do zero, em Curitiba.
    E tudo valeu muito a pena.

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    1. Seu comentário comove porque nos dá a exata dimensão do que vem a ser pai, com todas as nossas imperfeições. Valeu, meu caro Andreola.

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  17. Para além da saborosa história, merece aplausos a autocrítica em relação aos bichinhos. Nada de terceirização da culpa. E sendo feita em público, vale ainda mais! Parabéns, meu amigo!

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  18. Eu também fui vítima desse sentimento paterno. Em 1990, trouxemos de Porto Seguro, dentro do carro p/ as filhotas, uma pequena tartaruga. Ela cresceu até 30cm de diametro e resolvemos doar ao Zoo de Brasília, em 1999...

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  19. Está história poderia ter um título: "Pequeno delito de um pai amoroso".
    Abbehusen

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  20. Pelos filhos, até o impensável é justo, o errado vira certo e vida que segue. Remorso? Nenhum. Filho é filho, ué!
    Adorei. Pai sendo paizão é sempre bom. E, olha, os filhos não esquecem jamais desses gestos.
    Agora, fico imaginando o delegado da Polícia Federal interrogando o meliante: - É aí? Confesse pra onde iam esses animaizinhos da fauna brasileira? E o pseudo-meliante: - Pro país das maravilhas, que é...lá em casa. E o doutor: Tá perdoado, meu amigo. Sob o argumento de que filho é filho, ué!

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  21. Parabéns,Hayton! Muita história boa nessas tuas idas e vindas na estrada do BB. Beleza de crônica e uma delícia de leitura! 👏tiberio

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  22. Hayton, apesar da beleza de sempre seu texto, o ponto que mais me chamou atenção, foi o clímax da narrativa, extamente naquele momento da passagem no aeroporto, pelo raio X, como segue; "Quando o alerta soou, a própria inspetora só me cobrou retirar do pulso o relógio e juntá-lo aos demais itens na esteira do raio X. Então, fiz apenas o que me foi solicitado, agradeci e segui em frente, juntando-me à mulher e aos filhos que já me aguardavam no corredor de acesso à zona de embarque." Imagino o misto de medo do pequeno ilicito e a sensação de alívio depois que chegou junto à família.

    Um abraço

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  23. A que ponto chegamos! Kkkkk
    E o pobre do Lot é que foi “caçado” como meliante… rsrs
    Doce história!

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  24. Tio Hayton, deixou para liberar essa história após a prescrição do crime 😁😁😁😁

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  25. Mais uma bela história para alegrar nossa quarta-feira. Obrigada! Também fiquei sabendo das cifras astronômicas do tráfico animal, que desconhecia a dimensão. Parabéns por ser um exemplo de amor paterno

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  26. Quando era jovem eu criava pássaros. Só por gostar de vê-los cantar. Confesso que tinha dó, mas assim mesmo eu mantinha a turma. Um dia a consciência doeu. Soltei todos. Continuaram por perto por muito tempo. Aos poucos foram tomando seu rumo. Quem já não cometeu um dentro desses? Rsrs

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  27. Se os cagadinhos fossem detectados pelo raio-x, cagadinho estaria o transportador dos animaizinhos!

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  28. Quem nunca pecou que jogue a primeira pedra! E por falar em “jogar pedra”, quando criança e das danadas, era muito, mas muito bom mesmo, no tal do estilingue e, com bolinha de gude ou cascalho então, tinha mira a laser. Acho que não preciso detalhar o que esse brinquedo em minhas mãos representava para os passarinhos… mas para meu consolo, li recentemente num livro do Carl Sagan sobre “a idade da verdade” e passei a considerar mais fortemente a ideia de como “a verdade muda ao longo do tempo”. Ainda bem Hayton, que aprendemos, reposicionamos, arrependemos, mudamos, conscientizamos, evoluímos, etc, etc e etc… e hoje, posso ensinar aos meus filhos, em especial, sobre comportamentos e atitudes do passado e inimagináveis nos dias de hoje! Parabéns pela crônica.

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  29. A narrativa, como de costume, excepcionalmente bela e cativante. A "criatividade delituosa" na passagem pelo R. X, é ímpar. Não tem como a gente não gostar. Dos comentários também. Com destaque meu, especial, ao da sobrinha (certamente puxou só tio), ao constatar que O FATO SÓ VEIO À LUZ após sua prescrição... Excelente. Tudo. Parabéns. Nasser. ������

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  30. Sem deixar de registrar meu entusiasmo com o brilhantismo da crônica, os dois primeiros parágrafos me levam a solidificar um convicção que tenho hoje, o ser humano é o mais maléfico dos animais, conquanto eu continue achando que a melhor coisa do mundo é gente - os dois sentimentos, que se revelam conflitantes, estão arraigados em mim.
    Por fim, não posso deixar de registrar meu mais efusivo entusiasmo pelo comentário acima, de sua sobrinha Priscilla, a quem não tenho o prazer de conhecer - ela conseguiu focar no detalhe definitivo a que ninguém se ligara, você competentemente esperou a prescrição do crime. Teria sucesso na política...

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  31. Agostinho Torres da Rocha Filho26 de julho de 2021 às 17:25

    Difícil de imaginar um executivo do Banco do Brasil flagrado no aeroporto com dois filhotes de cágado nos bolsos. Certamente, teria uma enorme repercussão na mídia e na própria empresa. Excelente crônica!!!

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  32. Tudo pelos filhos.... Pelos filhos, tudo!!!

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