– Meu filho, corte esse cabelo... Você tá parecendo um mascate!
– O que é isso? – perguntei.
– É aquele vendedor ambulante que oferece bugigangas de porta em porta, como o Ariovaldo – personagem de Gianfrancesco Guarnieri em “Meu Pé de Laranja Lima”, telenovela exibida no começo dos anos 70 pela extinta TV Tupi.
Deu-se assim meu primeiro contato com Dr. Casado, chefe do serviço médico da agência do Banco do Brasil, em Maceió.
No horário comercial, o ambulatório atendia não só aos funcionários em suas pequenas queixas (resfriado, dor de cabeça, de barriga etc.), como também a familiares que precisassem de avaliação clínica ou serviços de enfermagem.
Ele e outros pelo País afora foram precursores do chamado médico de família no âmbito corporativo. Tinham o papel de evitar que as pessoas faltassem ao trabalho por uma tolice qualquer ou por conta de consultas, exames e procedimentos que pudessem trazer mais riscos do que benefícios.
O tom paternal, a confiança que inspirava e o perfil generalista eram traços nítidos naqueles que atuavam "até" como médicos. Serviam, também, de confidentes, conselheiros, padres e psicólogos nas catedrais de antigamente, algumas com mais de 300 almas tecendo suas histórias.
Dr. Casado nunca prescreveu uma injeção para ninguém. Dizia, com a senioridade de pediatra acostumado a lidar com seres humanos em construção, que o caminho natural para a entrada de medicamentos era a boca. Simples, não? E ai de quem duvidasse disso!
Certo dia uma mãe chegou com o filho no colo e lhe pediu que receitasse algumas vitaminas. Ouviu o que não queria ouvir:
– Esqueça as farmácias. Vitamina para criança se compra no mercado, minha senhora. É banana, é beterraba, é cenoura, é laranja, é tomate...
Maerbal, o perito de balanços, soube do episódio e comentaria o caso com ele pouco depois:
– Doutor, isso acontece...
– Pois é. Você não faz ideia da quantidade de mães que chegam aqui, por exemplo, dizendo que o filho precisa de exame de sangue.
– E aí?
– Então, eu pergunto: que exame? E elas: de sangue, doutor, de sangue! O senhor não sabe o que é exame de sangue?
Agripino, contínuo que cuidava da recepção e expedição de documentos, queixava-se de dor de garganta e calafrio. Foi atendido pelo Dr. Casado, que lhe prescreveu alguns remédios básicos para alívio dos sintomas gripais.
Três dias adiante, Agripino volta e diz que os remédios não surtiram efeito. E já foi mostrando uma garrafada daquelas que misturam alho, cebola, gengibre, limão, mel, sabugueiro e outros:
– Um amigo me deu, doutor. Será que faz mal?
– Nem bem... – Resumiu o médico.
Na semana seguinte, o próprio Dr. Casado gripa, faz de tudo e nada de a virose ceder. Então, com a humildade dos sábios, liga para Agripino:
– Como é mesmo o nome daquele seu amigo da garrafada?
Havia outro médico no serviço, chamado Dr. Zé Maria, membro da Academia Alagoana de Letras, cuja disposição para o trabalho era nula nas primeiras horas da tarde. Nem fechava mais a porta do consultório para tirar uma boa soneca, com sibilante ronco ouvido na sala de espera.
Numa tarde, Armando, outro contínuo, não suportando a enxaqueca, cutuca o braço de Dr. Zé Maria em pleno cochilo:
– Doutor, o que eu tomo para acabar com esta dor de cabeça miserável?
– Vá naquele armário e pegue um Melhoral – aponta o médico, sem abrir os olhos.
– Mas doutor, só vejo ali daquele comprimido rosinha (Melhoral Infantil).
– Tome dois... Mas me deixe sossegado, volte mais tarde.
Nunca esqueci desses anjos do bem-estar. Quando adolescente, quis até ser um deles – médico e empregado de uma grande empresa. Em Brasília, 40 anos depois, trabalhei na Cassi (operadora de planos de saúde de funcionários do BB e familiares) e soube de outras histórias envolvendo esses profissionais, com importante contribuição para a melhoria do ambiente corporativo.
Um deles atuara na agência central de Brasília e já havia muitos anos abandonado a profissão. Descansava então numa chácara nos arredores do Distrito Federal.
Certa noite, bateram à porta. Ele, arrastando os pés, foi ver quem era: deu de cara com um vizinho de uma chácara próxima, passando o fim de semana com a família.
– Doutor, acuda pelo amor de Deus, minha mulher vai dar à luz!
– Ih, meu filho, tem anos que não mexo com isso.
– Só tem o senhor aqui por perto. Eu não entendo nada. Pelo menos ajuda minha mulher, corre lá.
O velhinho demorou meia hora para encontrar os óculos, percorrer o trajeto até a casa do vizinho, higienizar as mãos e chegar ao quarto do casal.
Fechou-se lá com a mulher e cuidou de tudo. O parto foi perfeito, sem intercorrências. Ele deitou a criança ao lado da mãe e foi avisar ao marido.
– Deu certo. Nasceu em paz e está tudo bem.
– É menino ou menina, doutor? – quis saber o pai aflito.
– Olhe aqui, meu rapaz, se não me falha a memória é menina!
E foi-se embora como se nada tivesse acontecido.
Nada como uma história leve, bem humorada e pitoresca para começar o dia :)
ResponderExcluirMédico sempre médico, sempre temos uma consulta a fazer a esses “ psicólogos, conselheiros, ...” como bem relatou o cronista, e sempre uma história pra contar do nosso médico do trabalho e da familia, realmente anjos do bem,👏👏👏
ResponderExcluirHayton, meu avô contratava e demitia funcionários, muitas vezes, pelo tamanho do cabelo do cidadão. Surreal para os tempos de hoje mas uma realidade na empresa dele 🤣
ResponderExcluirNos consultórios e nos corredores dos hospitais tem histórias que trariam alegria para leitores e leitoras nestes tempos bicudos. Quando contadas por escribas bancários ganham um tom especial.
ResponderExcluirQuando menino, apesar de ter pai e mãe, morava com meus avós. Nunca entendi. Mas o importante é que o casal de velhinhos tinha um remédio único pra todas as doenças: PRONTO ALÍVIO. Servia pra tudo: dor de cabeça, dor de dente, gripe, infecção, inflamação da garganta, tosse, diarréia, hematomas, dor de ouvido etc. Sentia qualquer coisa: PRONTO ALÍVIO. Devia ser bom mesmo; era só o que tinha.
ResponderExcluirO nome correto era PONTA LÍVIO.
ExcluirAdorei! É bom começar o dia rindo antes das 8 da manhã. Também eu tive o "meu médico" no Banco, que cuidou de mim nos primeiros 8 anos. Dr. Belchor Fontes, AGCEN-SP. Excelente médico com uma história bonita (alfabetizado aos 14 anos, fez medicina na USP concomitante ao trabalho no Banco). Só não era tão bem-humorado como os seus médicos. Excelente texto!
ResponderExcluirRachando de rir... Se não me falha a memória é ótimo. Tu me fez lembrar a Dra Socorro Gouveiaz que atendia no posto da Cassi da Ag. Gampina Grande-PB, com seus cinco andares e mais de duzentos colegas, antes do PDV. Um dia descobri que um cheque meu, emitido pela esposa, chegou e voltou da boca do caixa. Desconcertado, e puto de raiva, fui na Socorro buscar um calmante. Ela fez como este médico que tu homenageia, o das plantas, e me disse: Ricardim, pra este nervoso o remédio é a palavra. Fale com ela. Ou com os amigos. Mas,bote pra fora que vai melhorar. E num é que passou mesmo... Após meia hora no Chope do Alemão, e muito desabafo com o colega Catao, estava pronto pra vender o carro e quitar o cheque. E, romper com aquela relação doentia. Obrigado Corrinha!
ResponderExcluirNa Agência Centro em Salvador também tem algumas histórias de De. Almiro, que era o Chefe do Serviço Médico, Dr. Brito. Também tinha Dr. Braúna e a sua irmã, D. Violeta, enfermeira, Pina, também enfermeiro e com o passar dos tempos, outros médicos: Dr. Menezes, Dr. Aldovandro, Dr. Sobrinho, Dr. Nery, Dr. Ricardo, Dr. Nogueira.
ResponderExcluirDorival foi ao Serviço Médico, estava gripado. No corredor, encontrou Dr. Brito e falou com ele: Dr. estou gripado. Dr. Brito, deu um pulo para trás e gritou: nem encoste em mim, tome um “Binotal”.
ExcluirBoa! 🤣 Este é o espírito: resgatar boas histórias de um tempo bom. Você me fez recordar de uma tal de vacina anticatarral do laboratório “Pinheiros” que fazia sucesso…
ExcluirSinto falta dos remédios caseiros, fartos nos sítios, ministrados por nossos familiares, cuja eficácia superava todas as nossas expectativas. Lembro do sabor do mastruz com leite e do chá de quebra pedras, da suculenta babosa, do chá com alho, mel e limão, e do infalível “lambedor”. Parabéns pelo texto, que mais uma vez nos transporta pelo túnel do tempo!
ResponderExcluirTô vendo onde Agripino conseguiu a garrafada milagrosa que seduziu Dr. Casado! Como era mesmo o nome de seu avô, hein?!
Excluir👏👏👏👏👏
ResponderExcluirConvivi com todas as figuras .
Tutti buona gente
Delícia de texto!! Resgatar histórias tão humanas, trazendo à tona a personalidade dos personagens com poucas frases, é arte pra poucos!
ResponderExcluirSou da época que era cognominado CEASP, os médicos eram amigos e quando íamos ao consultório por algum motivo, perguntava : quer atestado? Kkk
ResponderExcluirMaravilha de crônica. Saborosa e que fez recordar do atendimento médico da Cassi em Brasília, lá no final da Asa Sul. Desde o tempo de menor aprendiz era freguês, digo, paciente do centro médico. Atendimento espetacular!
ResponderExcluirHoje, o lugar se tornou um estacionamento ....
Que bela história (isso está ficando repetitivo!)!
ResponderExcluirLeveza, simplicidade, sabedoria.
Pessoas que não passam em vão pelo mundo.
Que bela crônica, prazer e envolvimento no decorrer da leitura. Trazendo satisfação e melhor vivendo cada momento.
ResponderExcluirO texto fez-me lembrar de duas situações: Dr.Luiz, na Cassi, que também não era muito adepto de prescrever medicamentos. As vezes dizia "Você já viu a data de validade, pra daqui a dois, três anos? Imagine a química que tem lá dentro pra conservar aquilo. Melhor não tomar".
ResponderExcluirE viajando para um passado mais distante, levou-me aos diversos remédios caseiros da minha infância.
Bom resgate dessas memórias.
Sua crônica me remete aos tempos (bons) do serviço médico da Ag. Centro Salvador. Os médicos atendiam funcionários e familiares. Destaque para o saudoso Dr. Braúna! O mascate e a garrafada: havia um que frequentava a Praça Cayru, mercando seu milagroso produto que dizia curar "dor de cabeça, dor de barriga, TPM, tontura, dor de corno, espinhela caída, dor de cotovelo e namoro acabado"!
ResponderExcluir"Aqui no nosso sertão, essa história de injeção, o pessoá tem receio..." (Genésio Tocantins). Até o médico se socorreu na garrafada, kkkkkkkkkk. Excelente e gostosa história.
ResponderExcluirÓtimas histórias. Voltei ao passado com os chás, que odeio até hoje, por conta dos de cidreira e sabugueiro, que era obrigado a tomar, além da garrafada de mastruz com leite que quase não me deixa estar contando isso. Saudades mesmo tenho é das rezas da minha vô com um galhinho de mato pra lá e pra cá na cabeça que curava tudo. Que diferença pra hoje. Parabéns Hayton!
ResponderExcluirConvivi com todos esses personagens. Para completar o trio tinha o Dr. Talma. Pessoas notáveis e bem lembradas.
ResponderExcluirDR. CASADO, O MELHOR MÉDICO DO MUNDO
ResponderExcluirMeu avô faleceu aos 95 anos. Era um velho forte. Morava em Maragogi, era pescador e vivia bem de vida. Possuía dois sítios de coqueiros à beira mar, tinha currais de pesca e foi nomeado pela Capitania dos Portos, Capataz da região. Emprego federal, uma espécie de fiscal de pesca ilegal. Boa remuneração, todo mês vinha a Maceió para apresentar um relatório e receber seus proventos. Já se encontrava por volta de uns 92, 93 anos, quando a saúde começou a ratear. Em uma das vezes pediu para eu procurar um médico, desde que não cobrasse muito caro. Lembrei-me do Dr. Casado. Meio acanhado, perguntei se ele poderia nos fazer esse favor.
- Quantos anos ele tem? Ele mora onde? Traga-o aqui para a gente ver.
No outro dia fomos, eu, minha mãe e o véio para a consulta. Logo que ele entrou, o Dr. Casado disparou:
- Véio, nós somos conterrâneos. Sou de Maragogi também. Sente aqui pra gente prosar. Foi uma conversa pra lá de animada que durou mais de meia-hora. Falaram de lugares, praias, famílias, etc.
- Como vai fulano?
- Morreu.
- E Sicrano? (Esse trecho me recordo bem). Ah, esse tá veinho demais. Tá caducando. Vive triste desde que a fia se amigou. Pegou barriga ele botou pra fora de casa. E a conversa seguiu por aí a fora.
Findo o bate-papo o Dr. Casado perguntou: O que você está sentindo? Ele falou que se consultou com um médico na cidade de Barreiros que disse que ele tinha “doença do coração”. A seguir mostrou um “cachete” que lhe fora receitado, pelo referido médico.Dr. Casado então disse: Só de olhar vejo que você não tem nada. Mas vamos lá. Pegou o estetoscópio e enquanto examinava dizia, véio você tem um coração muito bom. Coração de criança. Disso você não morre. Vale dizer que o véio era surdo. Dr. Casado, ao perceber o meu espanto, sussurrou baixinho pra mim: Está soprando pra todo lado.
Findo o exame ele disse jogue fora esse cachete que o outro médico lhe receitou, que ele não entende de nada. Você gosta de tomar uma cervejinha? Ele respondeu: Por vício, não, mas gosto mais de uma pinga que é mais barata. (E gostava mesmo) Então continue tomando sua cerveja, sua pinga e até chumbo derretido que você não tem nada no coração. Minha mãe ponderou. Mas doutor, agora ele vai se soltar na buraqueira. Dr. Casado respondeu: A senhora acha que eu vou proibir alguma coisa a um homem nessa idade? Deixe-o viver em paz seus últimos anos que já não serão tantos.
Terminada a consulta meu avô perguntou, fazendo o gesto de tirar a carteira, quanto devo? Dr. Casado riu e disse. Não me deve nada. Lá tem polvo? Então quando vier a Maceió venha aqui novamente e, se possível, traga um polvozinho para mim.
Claro que todo mês o Dr. Casado recebia em casa um generoso pacote de polvo e o véio, ao tomar sua pinga, ao invés de “dar para o santo”, dizia: Essa é para o DR. CASADO O MELHOR MÉDICO DO MUNDO.
Maerbal Azevedo Nunes
KAKAKAKAKA
ResponderExcluirCreio que o Dr. José Maria de Melo era mais vocacionado para as letras do que para a medicina. Li de sua autoria o livro "Os Canoés", excelente romance que foca a saga de uma família do interior de Alagoas, os Canoés. Achei-o comparável aos melhores livros de José Lins do Rego. Infelizmente perdi o exemplar e, creio, não mais está sendo editado.
ResponderExcluirChá de eucalipto com sabugueiro, receita caseira para curar os primeiros sintomas da gripe. Se não curasse, ia-se para a farmácia para tomar aquelas injeções oleosas que doíam pra caramba.
Valeu, Hayton, por lembrar os bons tempos da Maceió-Centro.
Orlando Salvador de Lima
Esses médicos do tipo do doutor da Cassi estão quase extintos, mesmo esse tendo mais tendência para a leitura. Hoje, um médico atende quase que sem olhar para o paciente e ainda por cima receita muitos remédios caríssimos. Uma realidade num ótima crônica.
ResponderExcluir*Uma realidade numa ótima crônica.
ExcluirO BB faria um de seus melhores investimentos se dispensasse todos os seus contatados pra divulgar sua imagem e contratasse você pra toda semana contar um história vivida em seus domínios, divulgando-as, claro. Haja memória!!
ResponderExcluirMais uma pérola a nos encantar, com o adicional de nos despertar reminiscências.
Efusivos parabéns...
Ótima Hayton, leve e gostosa de ler! Acho que muito de nós teve perto um Dr. Casado, durante nossa passagem pelo BB! 😂👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirAbs
Excelente, amigo Hayton.
ResponderExcluirEssas histórias do BB valem um filme e fazem parte das nossas vidas.
Coisas da vida... boas histórias... e no caso da garrafada, fica o ditado de na hora do desespero se reza pra Deus e para o diabo... quem atender valeu..rs
ResponderExcluirBons tempos, Hayton, quando o humanismo era o referencial de todas as ações. Como sempre, excelente!
ResponderExcluirMais histórias, contadas com pitadas de bom humor e ainda bem que existem pessoas como esses, em especial doutores.
ResponderExcluirE, no Banco, havia até bancários! Kkkkkkk.
ResponderExcluirEita!!! foi longe nas minhas lembranças... tive a ventura de conhecer Dr. Casado e Armando. "corte esse cabelo". Ouvi inúmeras vezes, pois era - ainda sou - admirador de cabelos compridos. Época que valia ouro, verdadeiramente. São tesouros das nossas lembranças. Que alegria, que você me proporciona, meu Amigo, em me ajudar nessa viagem, com sua sempre suave escrita.
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