quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O benefício da dúvida

Nunca tive o sono leve. Pelo contrário, trabalhando duro desde moço, batia na cama e só acordava no dia seguinte. Hoje, aos 86 anos, acordo ainda no breu pensando no que me resta por fazer. Velho não deve perder tempo. 

Aprendi que a morte não chega na velhice. Vem em prestações. Morri um pouco quando fiquei viúvo pela primeira vez, aos 50 anos e, pela segunda, aos 70. Minhas ex-mulheres partiram cedo, levando pedaços de mim. 

 

O que sobrou seguiu em frente. Mas já não faço planos para daqui a um, dois anos. Se alguém  me convida para viajar no próximo verão, disfarço ou invento uma desculpa qualquer e me pergunto: vai dar? 

 

Não sou de me queixar de nada, a não ser ter que aturar certas figuras públicas no último estágio evolutivo da imbecilidade humana. Uso meu tempo lendo bons livros, escrevendo memórias, ouvindo músicas, vendo futebol e telejornais. 

 

Antes da pandemia, costumava me reunir bem cedo com uns caras divertidos e desocupados como eu, das cinco às sete, no que chamamos de Senadinho  banca de revistas à beira-mar onde se debate desde a bunda de quem passa até as grandes questões nacionais. 


Veio o coronavírus e tive que me resguardar. Soube que os nobres "senadores" já voltaram do recesso. Com a paralisação de minhas caminhadas matinais, joelhos e tornozelos abriram falência, em conluio com a coluna lombar, dificultando-me até aparar as unhas dos pés ou amarrar o cadarço do tênis. 

Decidi contratar uma pessoa para não depender da ajuda de filhos e netos. Falo de Doralice, 35 anos, uma simpática pernambucana de Macaparana, indicada por meu geriatra de estimação (sim, há um estágio na vida em que o principal amigo da gente é o geriatra; o cachorro vem depois). 

Nunca havia trabalhado como cuidadora. Era diarista, mas pegou covid-19 e, mesmo curada, deixou de ser acionada pelas pessoas a quem servia. Resolvi então fazer uma experiência, por 90 dias, a partir de março deste ano.

 

Em abril, fui surpreendido por Doralice, preocupada com a possibilidade de ser substituída e alistar-se no indecente exército de 15 milhões de desempregados deste País:

– Seu Pinheiro, por tudo que é mais sagrado, não me demita!  

– O que houve, menina? 

– Eu não queria, mas...

– Aconteceu o quê?

– Tô grávida...

– Como foi isso?

– Vai dizer que o senhor não lembra mais como isso acontece?

– Não é isso...

– Meu namorado... Anda num fogo medonho, mesmo quando chego em casa morta de cansada.

– E agora?

– Agora, tô eu aqui sem saber o que vai ser de mim.

– Por quê o medo?

– Sei lá! Como vou cuidar do senhor e da criança? 

– Tem jeito para tudo... Menos para morte.

 

Falei da boca para fora para aquietá-la. De fato, tínhamos um problema. As dores nas minhas articulações e na coluna lombar só aumentavam e minha dependência, também. O que ela fará quando tiver que escolher entre me ajudar a tomar meus remédios ou oferecer o peito à criança?

 

O namorado dela não conseguia emprego. Tinha antecedentes criminais. Tocava uma barraca de milho cozido e coco verde que ficou fechada por mais de seis meses por causa da pandemia. E mesmo com a reabertura na virada do ano, as vendas despencaram.

 

Apesar do risco, optei por ficar com Doralice. Cancelei o contrato de experiência e assinei sua carteira profissional por prazo indeterminado. Coincidiu que o namorado, na semana seguinte, sofreu uma denúncia anônima e está preso, cumprindo dura pena por tráfico internacional de drogas. Existe, pois, razoável chance de ele nem chegar a conhecer o filho.

 

Como nunca dei espaço a meus familiares para que se metam em minha vida, e sensibilizado com o completo desamparo de Doralice, ofereci a ela a possibilidade de prestar seus serviços morando em meu apartamento – com todo respeito, óbvio. Disse-lhe até que fazia questão, mais adiante e havendo tempo, de passear com o carrinho pelas calçadas do bairro com “meu” afilhado, o que vai me dar a sensação de eternidade e poder na área.  


Ela compreendeu perfeitamente. Nisso, bateu uma vontade danada de abrir uma garrafa de vinho e ouvir João Gilberto cantando Caymmi: 

"Doralice, eu bem que te disse

Amar é tolice, é bobagem, ilusão..."

 

Ilustração: UMor
Ilustração: UMOR

Três meses de fisioterapia depois, ando dormindo feito criança e, semana passada, com a ajuda dela, voltei às caminhadas matinais. Não vou negar, morro de rir só imaginando o que vai na cabeça dos curiosos, inclusive meus nobres colegas “senadores”, quando passamos de braços dados: eu, a disfarçar minhas dores e Doralice, com um barrigão daqueles. 

Como a dúvida me favorece, melhor deixar assim.

67 comentários:

  1. Texto bem escrito é que transforma a leitora ou o leitor em pêndulo. Joga-os de um lado para o outro a procura de um lugar na trama. Senti esta sensação lendo este.

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  2. ANTONIO CARLOS CAMPOS18 de agosto de 2021 às 07:06

    Narrativas voltaram a moda e essa é muito boa.

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  3. Muito bonita a sua abordagem de temas tão complexos da vida cotidiana. Parodiando o ditado popular, isso é que é se empenhar para tomar os limões sentindo o gosto de limonada. Vida longa ao Pinheiro e sua Doralice!

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  4. Muito bom! Não precisa ser, parecer já basta...hehehe. Abraços.

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  5. Me acabei de rir com o finalzinho somado à ilustração.

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    1. A ilustração de meu amigo UMor é a apoteose do texto. E se eu lhe contar que ele nem precisou ler o texto para produzir esta pérola? Bastou-me dar algumas dicas por telefone e o cara, lá na Bahia, fez o que fez!

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  6. Muito boa, e o melhor, a fama que Pinheiro ganhou, deixando os “senadores” invejosíssimos.

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  7. Diverti-me lendo a sua crônica!

    Texto leve, fluido, como são os dos grandes escritores.

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  8. Sensacional!! Captura o leitor inapelavelmente desde o primeiro parágrafo. Elegância, suavidade, humor sutil: tudo está presente no texto!

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  9. Como de costume, outra crônica show demais.

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  10. Literatura pura, de primeira! Delícia de texto. Não conhecesse o autor acharia que é autobiográfico... Parabéns, Hayton! Sua pena está cada vez mais calibrada!

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  11. Maravilha de texto! Chega deu vontade de conhecer esse “casal” simpático!

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  12. Este comentário foi removido pelo autor.

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  13. Muito bom! A humanidade de Pinheiro e a forma como previu o futuro próximo ficando em evidência pro seus amigos foi muito divertido!

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  14. Mais uma crônica excelente, com construção perfeita de início, meio e arremate final. Certamente estará na seleção do próximo exemplar físico a ser lançado.

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  15. Agostinho Torres da Rocha Filho18 de agosto de 2021 às 09:05

    Crônica leve, suave e muito criativa. Parabéns!!!

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  16. Bom deparar, pela manhã, com mais uma bela crônica. Além, da curiosidade em conhecer o senadinho, aonde talvez encontre o Senador com sua Doralice.

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  17. Com a espinha ereta e a cabeça boa, provavelmente o seu Pinheiro não tardará em querer compartilhar com o rebento o peito, que, por direito, também lhe pertence. Faz jus. Parabéns!

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    1. Não tenha dúvida quanto ao benefício da relação do “senador” com o “afilhado”, futuros amigos do peito.

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  18. Excelente! Hayton,um contador de boas histórias e estórias!

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  19. Excelente crônica!
    Pena que foi pequena
    Abração
    Zezito

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  20. Que blz de texto! Show de bola!
    Tiberio

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  21. Texto maravilhoso. Imagino que a autoestima do Sr. Pinheiro esteja em alta com as fofocas no bairro. rsrsrsrs

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  22. Parabéns pela plenitude do texto que expõe com exatidão o "Pinheiro" que há em todos nós.

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    1. Mark Twain dizia que “a diferença entre a verdade e a ficção é que a ficção faz mais sentido”. É por aí, Fernando.

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  23. Pense na alegria que será para ele quando esse(a) áfilhado(a) nascer? Ele fez uma boa ação e será recompensado, espero por isso.

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  24. Texto delicioso, na “temperatura” certa!
    Realidade com cara de ficção…

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  25. Esse cronista, meu particular amigo, tem uma veia de bom humor tão acentuada que transforma qualquer drama em um belo e divertido texto. Quando ele diz que ilustrei essa história sem tê-la lido, eu acrescento que em dois minutos de conversa por telefone, ele foi capaz de me passar todo o necessário pra subsidiar meu trabalho. Hayton é assim, um talento enorme, uma cabeça pensante efervescente e a generosidade de nos brindar com tanta coisa boa…!

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  26. Hayton, divertidíssimo. Só falta a Doralice colocar o nome dele na criança 🤣🤣🤣

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    1. Quem sabe, meu caro, quem sabe? Gentileza gera gentileza, não é mesmo?

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  27. Que belo texto! As palavras, cada uma com sua força própria, levam o leitor a incorporar o Sr. Pinheiro, só para usufruir um pouco da companhia da Doralice... Parabéns ao cronista!

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  28. Que texto bacana! Me lembrou muito meu eterno sogro Sr Jolibel com suas traquinagens e brincadeiras. Crônica leve e divertida. 👏🏻👏🏻

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  29. Muito bom! O 'véio' acertou na loteria. É claro que os fofoqueiros de plantão vão falar quando eles passearem de mãos dadas, mas dirão: "Esse da barriga não é do véio, aí tem..." kkkk. Excelente e divertida crônica!

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  30. Excelente e divertida cronica, no caso do texto os dois acertaram na loteria foi uma troca perfeita só imagino como ficam as cabeças do pessoal do senadinho e parabéns pelo afilhado(a) ótimo texto continue....

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  31. Criativo texto. Não é à toa que se apregoa que a cabeça dos da "melhor idade" é mais prático, mesmo não sendo tão rápido como na juventude.

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  32. Texto show de bola!
    O Sr. Pinheiro tem um grande ❤️.
    Fez a escolha correta. Um cuida do outro e ambos cuidam do bebê...
    Abraços,
    Maria de Jesus A. Rocha.

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  33. Continuando João Gilberto e Caymme...
    Agora amor, Doralice meu bem, o que é que nós vamos fazer?
    - Vamos invejar os Senadorinhos.

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  34. Mais uma maravilha de crônica que ainda traz uma extravagância, a ilustração genial - como sempre - do nosso UMOR, que ainda posta um comentário mais que certeiro, também oportuno e eivado de verdades.
    De resto, seus personagens são impagáveis...

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  35. Kkkkk! Na verdade Hayton, tem muito ‘senador’ se identificando com seu octogenário! Você está abrindo o leque de opções do seu blog, para as mais profundas e íntimas emoções dos seus assíduos leitores! Especialmente os vividos e ‘ bom vivant’ do pedaço!

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  36. Ha muito tempo que eu nao lia uma otima e engraçada cronica!

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  37. Gostei muito! Texto leve, divertido, criativo. Provocou a minha curiosidade sobre o nome que vai receber o pimpolho. Pinheiro Jr.???
    Abbehusen

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  38. Que conto maravilhoso. Esse sim é um velho que curtiu muito a vida. Paulo Bouças

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  39. Muito bom....agora imagino o que outras pessoas pensam de nós qdo não conhecem nossa única e verdadeira história???

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  40. Muito boa. Tá vendo? Pra ser herói nem precisa ter ido à guerra...rs

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  41. Esta crônica, para mim, é um retrato escrito do cotidiano. Acredito haver alguns casos assim. Conheço um. Pode servir de inspiração também. Poderia ainda ser assinada pelo Nelson Rodrigues dos bons tempos ou o Stanislaw Ponte Preta (Sergio Porto, que foi funcionário do BB), mas é do Hayton, que está está cada ver melhor nas suas escrituras. Bem escrita e leve, é ótima para desanuviar as doenças maiores dessa pandemia: o isolamento, a tristeza, até a falta de um simples, antigo e convencional aperto de mão. Hayton, escreva mais. Mande mais. Aos companheiros leitores, sugiro a indicação do blog aos seus grupos de "Watsupp" e aos amigos. As cronicas abrem as janelas para o sol, a paisagem, só coisas boas. E a melhor parte nós precisa de leveza, senão desequilibra a outra, do DNA humano, a contenda, muito comum nesses tempos ditos modernos...


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  42. Excelente. Me fez viajar na imaginação.

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  43. Ficar com essa dúvida é o gostoso final da crônica… mais uma excelente.

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  44. Mais uma crônica espetacular, da vida real ou da real vida.

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