quarta-feira, 13 de julho de 2022

Botinas, afagos e batinas

Andei lendo sobre o Brasil de dois séculos atrás, nos primeiros anos de independência, quando a Igreja abriu centenas de processos com pesadíssimas acusações contra o clero e inúmeros religiosos. As denúncias mais corriqueiras eram sobre crimes de fornicação (ato sexual que acontece entre não cônjuges), concubinato (união sem reconhecimento legal) e interpretação tendenciosa das escrituras em assuntos relacionados a sexo.

 

A bagunça era tanta que um certo dom Antônio Viçoso, bispo de Mariana, Minas Gerais, só faltou ajoelhar-se aos pés de seus superiores na arquidiocese da província: “Peço o socorro de suas orações a favor de um pobre bispo que passa pela aflição de ver paróquias entregues a lobos vorazes mesmo sem peles de ovelha”. Referia-se a seu próprio rebanho: seminaristas, padres e párocos.

 

É verdade que a própria formação do clero contribuiu para esse estado de coisas. Os seminários eram vistos pelas famílias como porteira de acesso de seus rebentos ao ensino superior e à elite. Vocação à parte, era bem mais em conta do que bancar estudos de filhos no Velho Continente.  

 

Também havia dificuldades de recrutamento por força das restrições impostas para o celibato eclesiástico. Isso levou a Igreja a afrouxar os cadarços de sua pregação moralizadora, especialmente durante os ciclos do açúcar e do ouro de nossa história. 

 

O caso de José Barradas foi emblemático. Em 1795, três padres que avaliavam o seu ingresso no seminário argumentaram que era “público e notório” que ele era “concubinário e com filhos”, além de autor de “alguns latrocínios”. No entanto, o pároco da região mineira de Mariana, João Borges, concluiu que tudo não passava de “ouvir dizer e não havia prejuízo causado a qualquer pessoa”. 

 

Difícil imaginar que latrocínio não prejudicasse alguém, mas, enfim, foi a conclusão. Parece que as águas de Mariana, impregnadas de minérios, não eram lá muito bentas. 

 

Este sobrevoo panorâmico me fez recordar de uma conversa que mantive com uma querida amiga gaúcha (já falecida) no final dos anos 1970. Ela me contou que, nos idos de 1941, dois de seus irmãos viram de perto a maior enchente do rio Guaíba, que banha a cidade onde nasceram na zona metropolitana de Porto Alegre. 


O mais velho deles, de 10 anos, saíra cedinho para ver a correnteza arrastando o que encontrava nas margens. As águas subiram rápido, a tarde esfriava e nada de o menino chegar. Em meio aos rumores de que alguns corpos foram vistos boiando rio abaixo, a família cai no choro a pedir aos céus um milagre. 

 

Nisso, o irmão mais novo do sumido aparece na sala e se habilita na possível partilha de bens: “Se ele morrer, o par de botinas é meu!”. Para sua frustração, o quase afogado surge assoviando na porta de casa, no final do dia, e a vida, feito o rio Guaíba, seguiu seu curso.

 

Anos depois, dizendo-se arrependido da falta de compaixão e fraternidade durante a infância, o quase herdeiro das botinas daria a entender que se transformara em homem digno, justo, a serviço do bem: ordenou-se padre e assumiu o trabalho pastoral na própria diocese em que fora batizado.  

 

Porém nunca conseguiu conciliar a vida celibatária com sua canalhice atávica e vocacional, perceptível até nas bochechas e nos olhos empapuçados de safadeza. 


Era daqueles cujas batinas estavam sempre amarrotadas. Vivia a afagar “sem maldade” quase todas as beatas papa-hóstias que se dispunham a auxiliá-lo nas tarefas paroquiais, inclusive uma bem robusta que, mais adiante, lhe faria arfar com a língua de fora propondo casamento, de papel passado e tudo. 

 

Para a sua irmã (a querida amiga a que me reportei), tirando a filha dela, quase todas as sobrinhas haviam sido vítimas de afagos, a pretexto de lhes avaliar o desenvolvimento de mamilos e pernas, tal como fazia com outras meninotas da comunidade, sob velada ameaça de vazamento de segredos guardados desde a primeira eucaristia. 

Ele sempre negou, jurando tratar-se de algo “cruel, injusto e desigual”, como diria meio século mais tarde um certo executivo afastado da presidência de um banco público sob a acusação de assédio sexual e moral.

 




Quanto às meninas mais recalcitrantes, no escurinho do confessionário ele oferecia drops de anis como parte da penitência, desde que elas os escolhessem com as próprias mãos nos bolsos da batina. As mais espertas pulavam de banda quando descobriam, dentre os pacotes de pastilhas, que havia algo de textura um pouco diferente.

 

Depois que largou a batina, casou-se e virou fiscal de rendas na capital gaúcha, não durou nem 10 anos. A diabetes nunca combinou com sua gulodice canina, apesar de se enxergar o próprio garoto-propaganda do Suíta (o primeiro adoçante artificial lançado por aqui, para as pessoas que queriam “entrar na linha”). 

 

Se era para o bem de todos e felicidade geral da comunidade, foi-se. Antes, contudo, teve que quitar a contragosto parte de seus pecados em módicas parcelas mensais: primeiro, foram-se alguns dedos dos pésem seguida, fatias das pernas brancas e gordas; por fim, o saldo da pança, inclusive as bochechas.


Chupando drops de anis, deve agora vagar noutro escurinho, a rever o filme de tudo sentado no colo do capeta.

 

 

25 comentários:

  1. Agora, como sempre, a mulher têm sido alvo dessas investidas de criminosos que, por branda pena (máximo de 15 anos em caso de estupro), sentem-se livres para praticar atos dos mais abomináveis. Não que os menos não sejam, ainda assim, abominav. A mulher têm sido desvalorizada, diminuída em sua dignidade de ser humano. Proponho pena de cortar a região mais sensível desses celerados. Triste realidade a nossa.

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  2. Deborath....o que nos faz13 de julho de 2022 às 06:09

    Um conto bem atual sobre a questão do celibato. Conheço padre que, ainda hoje, vive em concubinato velado por não ser possível autorização da Igreja para oficializar a união de duas pessoas que se amam há anos. Uma regra sem sentido, criada há séculos, originada por questões econômicas que ainda se mantém e, talvez seja uma responsável por tantos crimes sexuais entre padres. Nesse ponto, vejo as religiões protestantes maus evoluídas. Os pastores são considerados homens comuns e capazes de terem vida sexual legalizada, muito embora alguns cometam crimes da ordem e da extorsão. Gostei do conto por levantar a questão do celibato, que poderia estar na pauta do progressista Chiquinho, mas também do abuso e assédio sexual, tão presentes ainda hoje. Deborath

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  3. Já dizia uma poetisa do Pajeú "...Apelei até pras Santas/As tentações foram tantas/Que cai nas tentações...."

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  4. E figuras como essas aqui relatadas continuam por aí.

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  5. O pecado sempre houve, mas ainda há quem pense que ele agora aparece mais por causa dos mimimis e lacrações. São boas as coisas deste Novo Mundo mais vigilante e atento a não deixar nada escondido atrás de batina de padre, cortina de anestesista nem de gabinete do ódio. Dedé Dwight

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  6. Que legal!! Vivencio os comentários da época sobre alguns padres

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  7. Acontece nas melhores famílias da corte! E com frequência inusitada!

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  8. É, Nelson Rodrigues não escrevia ficção.
    Seus personagens de “A vida como ela é” continuam por aí.

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  9. Esse cabra sabe de muitas histórias e tem uma veia humorística muito contida.kkk

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  10. Muito oportuno trazer o tema dos abusos sexuais à tona.
    Acrescento, para nossa reflexão, a diferença das cenas de prisão: de um negro sem capacete ao andar de moto em Sergipe e que acabou morto no porta-malas do carro da polícia; e de um médico branco que cometeu estupro durante uma cesárea, que parecia estar sendo convidado a um passeio.

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    1. Grande dica de reflexão, Riede! A “isonomia” de tratamento entre a Casa Grande e a Senzala continua dando o que falar por aqui.

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  11. Importante a abordagem do tema e o Hayton faz isso, como sempre, de forma brilhante. Desenhou!!! Quanto mais visibilidade e necessariamente punição para esses crimes, mais esperança tenho de que virem coisas do passado. Abs, Carlos Célio.

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  12. Casos aparecem a cada dia. Tenho amigos que deixaram a batina e hoje são pais de família. Alguns casaram-se com as próprias secretárias, a proximidade é igual Satanás...rs. o celibato exigido pela igreja é pra evitar partilha de bens...rs. Padre morto só tem reza.

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  13. Cleber Pinheiro Fonseca13 de julho de 2022 às 10:58

    E não nos esqueçamos dos muitos ditos “pastores”, em sua versão atualizada dos célebres ministros religiosos de outrora, que herdaram e aperfeiçoaram os seus delitos e continuam “pregando” livremente e impunes sob as lentes escuras e embaçadas do nosso seletivo judiciário.

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  14. Bom Dia, caro amigo Hayton e leitores. O tema que nós foi ofertado nessa belíssima crônica faz-nos refletir sobre vários fatos que são literalmente escondidos para não abalar estruturas familiares da vítima. Infelizmente, moral é algo nem sempre fácil de ser entendida quando a ética também se esconde...
    Forte abraço.

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  15. Infelizmente, nada de novo sobre o - nas palavras de Sagan - "pálido ponto azul", a não ser aquilo que Eco definiu como dando "voz aos imbecis", potencializando o deslocamento de uma lógica razoavelmente assentada para dentro de mentes as mais pronósticas, com os trágicos resultados que estamos a ver.

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  16. São tantos os crimes do Padre Amaro que aqui nunca é demais relatá--los; ou seria que aqui não vale a pena relatá-los?
    Desde que o homem é homem sua maior cobiça é a mulher, não
    é a batina que vai impedir isso.

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  17. Parabéns pelo excelente e oportuno texto.

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  18. O humor dessa crônica foi talhado em rocha magmática! Lado drástico de Hayton... kkkkkkk

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  19. Parabéns, pela crônica! Muito oportuna.

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  20. Triste saber que isso acontecia no passado, acontece hoje e, mais triste ainda, vai continuar acontecendo no futuro se não houver punição dura, apropriada e exemplar para os casos que surgem diariamente na nossa sociedade. "Essa tribo é atrasada demais"!

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  21. Mais uma pérola de sua lavra, só que agora você pode ter mexido em um "vespeiro". Sim, não é difícil avaliar os desassossegos que acontecem nos seminários e conventos da vida, mas ai de quem pretender citá-los, a imagem de pureza é tão divulgada que chegamos a pensar que ali pode ser mesmo um departamento das moradas celestiais. Enfim, a conferir...
    De resto, entre suas tiradas filosóficas impagáveis, nunca mais poderemos esquecer das "bochechas e olhos empapuçados de safadeza". Não há como não transportar a imagem para certas figuras carimbadas que cada um de nós conhece.
    Grande abraço.

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  22. Este comentário foi removido pelo autor.

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  23. Como dizia vovó Filó, o céu e o inferno são aqui na Terra mesmo. O tal padre com certeza experimentou ambos antes de desencarnar.

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  24. Batbosa. Muito engraçada e bem escrita. Minhas congratulações.

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