Não é certo

Quem sou eu pra falar dessas coisas, mas resolvi navegar no intrigante universo do insulto, essa prática sofisticada para exibir nossa erudição social. Palavras, gestos e atitudes desrespeitosas, verdadeiros mimos linguísticos com o poder de ferir a dignidade alheia. Afinal, quem precisa de flores quando pode presentear alguém com um insulto afiado, daqueles que cortam o coração da pessoa ofendida?

 

O ser humano, esse bicho seletivo por conveniência, ainda luta para superar conceitos primitivos como a ideia de que homens "garanhões" merecem tapinhas nas costas, enquanto mulheres que têm mais de um parceiro são chamadas de "putas". A dualidade dos sexos, tão incensada pela sociedade, permanece uma figura de retórica. Afinal, quem precisa de igualdade quando pode apontar o dedo apenas numa direção?

 

E o que dizer das pérolas linguísticas utilizadas para xingar o próximo? A palavra "vagabunda", por exemplo, uma verdadeira sinfonia de desrespeito quando dirigida a uma mulher, com uma simples troca de vogal pode virar afago no ego masculino. Chamar um homem de "vagabundo" às vezes é reconhecê-lo como “esperto”, “malandro”, capaz de tocar a vida à custa dos outros.

 

No território do caráter relacional, “egoísta”, "farsante", "mentirosa" são termos que refletem a complexidade das relações interpessoais, com destaque para a exploração de traços físicos. Chamar uma mulher de "gorda" atinge o ápice do ultraje, enquanto atribuir gordura a um homem vira e mexe é um elogio cúmplice. Já vi até machão vestindo camisa onde escrito “um homem sem barriga é um homem sem história”. A incoerência nos insultos realmente nos remete à idade da pedra lascada.

 

Ilustração: Umor

E que tal palavrões em tom de brincadeira? Entre amigos ou amigas, o insulto pode ser apenas uma forma de zombar o outro. Mas, olhe lá! A entonação é crucial, pois no contexto errado, a mesma expressão pode passar de uma piada inofensiva para um ataque de proporções épicas. É o caso dos clássicos “pqp!”, “vtf” e “vtnc!” (evito grafá-los para não vulgarizar o texto), desabafos que levam alguns à catarse no desfecho de uma conversa.

 

E quando a ideia é desferir insultos "funcionais", a diferença entre homens e mulheres atinge níveis cômicos. Se um dos piores insultos para elas é ser chamada de "gorda" ou “velha”, para eles alcança o topo da ofensa ser chamado de "broxa" ou “corno”. Torna-se alto o risco de lesões corporais recíprocas.

 

No futebol, outro terreno fértil para insultos a granel, gírias e expressões são comuns aos dois gêneros. "Chinelinho" (quem faz corpo mole, simula contusão ou se machuca com frequência, e só aparece na mídia usando chinelos), "mascarado" (quem se acha a última pipoca do saco), "pipoqueiro" (quem se esconde nos momentos críticos, quando seu time mais precisa). São verdadeiros coices nas canelas das vítimas.

 

E no meio militar, hein?! Tá o maior bafafá em Brasília desde que um certo general, ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente da República em 2022, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que mira articulações ideológicas de extrema direita (gostaram do eufemismo?). 


Mensagens obtidas nos celulares confiscados revelam que o general insultou integrantes das Forças Armadas que não aderiram às “articulações”. Numa delas, ele se refere ao então comandante do exército com o epíteto de “cagão” e pede (não se sabe a quem) que a cabeça dele seja oferecida. 

 

Claro, não falava de um desarranjo intestinal do velho companheiro de farda e quepe. Mas cheguei a pensar que estávamos prestes a assistir a um duelo meticulosamente orquestrado entre ambos, em campo aberto, na presença de testemunhas representativas dos três poderes da República, com armas escolhidas pelo ofendido para desagravo de sua honra. Uma espécie de revival medieval confrontando dois nobres da corte.

 

Descobri, no entanto, que duelos estão proibidos desde a época colonial, uma proibição confirmada logo depois da independência do Brasil, com a constituição outorgada por Pedro I em 1824. Melhor assim, sem melodramas. Afinal, lavar a honra com sangue suja a roupa toda, como diria Stanislaw Ponte Preta (19231968).

 

Soube ainda que, há pouco tempo, num inquérito administrativo contra uma militar mato-grossense acusada de ferir moral, ética e disciplina, os xingamentos proferidos, inicialmente considerados como pressão psicológica sobre um recruta, foram perdoados. 

 

Argumentou-se que certos insultos, extraídos de um dicionário de gírias e jargões militares, são inofensivos e funcionam apenas como meio de animar a tropa a dar o melhor de si. Bisonho, cagão, caga pau, coisa, cu de tropa, mocorongo, morcego, molambo, perebento, pulha, rolha, tapado, entre outros… Ótima forma de incentivar a equipe! Como nunca pensei nisso!?


Convicções pessoais e xingamentos à parte, aos que estranharam a ocorrência verde-oliva em Brasília, recordo aqui um certo personagem criado nos anos 1970 pelos cartunistas Cláudio Paiva, Hubert Aranha e Agner, em tirinhas publicadas na última página de O Pasquim. Avelar, o general que não aderiu ao golpe de 1964  um linha dura que apanhava da esposa em casa –, vivia repetindo, resignadamente: “Não ia dar certo mesmo...”

Comentários

  1. Ademar Rafael Ferreira6 de março de 2024 às 05:02

    O xingamento faz parte da nossa maneira de ser, muitas extrapola os limites pela prepotência de quem pratica. As palavras dobram de tamanho ao saírem da boca do prepotente. Abaixo os insultos.

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  2. Adorei o eufemismo. Acho mesmo que não foi tentativa; foi mesmo um GOLPE de mestre linguístico. Que show de crônica!

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  3. Espetacular o caminho sinuoso que a crônica foi trilhando até chegar na praça, ou melhor, no general! PQP!

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  4. Que maravilhosa lembrança a do Avelar. Criado pelos caras que tempos depois iriam fazer a TV Pirata, eu me divertia muito com os infortúnios dele. Dedé Dwight

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    1. A História, assim como o mundo, Dedé, se move em círculos.

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  5. Uma boa crônica, para começar o dia.Isso,é um espelho da nossa sociedade machista e desequilibrada

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  6. Crônica perfeita, resultado de uma sociedade insensível e sem respeito. Oriunda de uma realidade de pensamento do início dos tempos. Parabéns pelo raciocínio claro e sem reservas.

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  7. Simplesmente, "espetacular". Uma viagem pelas raízes e história de nosso povo. O eufemismo foi a cereja do bolo. Show de bola!!!
    Jez Agra

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  8. Crônica riquíssima que atravessa temas importantes de uma forma forma leve. O recorte dos insultos diferenciados para homens e mulheres é fonte de estudo e pesquisa de profissionais da psicologia que se dedicam a entender como a violência nas relações de gênero se expressam atacando o controle da sexualidade e a estética da mulher, perpetuando o machismo que assistimos por aí. Dra Valeska Zanello tem um artigo interessante só sobre os insultos X gênero. Muito alinhado com sua crônica!

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  9. Perfeito como sempre! Continuo querendo acreditar na evolução humana rsss. Ressuscita o Pasquim! 😅

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    1. Eu também, Bel, continuo querendo acreditar na evolução humana, mas os humanos insistem em me provar que isso é teimosia de minha parte.

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  10. Quem recebe a pedrada nunca esquece. Uma coisa que aprendi e levarei para o resto da vida: contra a educação não há argumentos.

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  11. STONEY PALMEIRA MELO6 de março de 2024 às 08:57

    O início do texto me fez refletir do quanto somos machistas e o quanto isso é terrível. O homem que trai é o Garanhão, a mulher que trai é a Put***. O homem traído é a pior desgraça da humanidade, a mulher traída é mais sofrida de todas e sempre tem que perdoar. "oh mundo tão desigual."

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  12. Os desabafos e os xingamentos existem em todos os idiomas e, quase sempre, a vítima apresenta estrutura física menor do que o atirador da pedra... Em algumas línguas, as ofensas são, inclusive, dirigidas ao Divino. Mas, como em toda regra tem exceção, não é bom "atirar pedra em baixinho"...

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  13. Roberto Rodrigues Leite Bezerra6 de março de 2024 às 09:28

    Hayton mergulhou fundo e entregou um verdadeiro tratado antropológico. Senão vejamos: tratou, de pronto, os insultos com suas variâncias alusivas a homens e mulheres; enveredou pelo estudo da tonicidade, que dá diferentes significados a palavrões usuais ou, como explicou, "funcionais"; passeou pelo futebol, acabando na caserna, com farta gama de situações e sujeitos. A tudo deu significados; alguns até pouco conhecidos. Mas tudo de maneira justificada com farta explicação e exemplos -- cientificidade. É, Hayton, fazer crônica é fazer cultura. Ou melhor, esmiuçá-la para melhor digestão do leitor mais ávido. Uma maravilha.

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  14. Mais uma bela crônica, grande Hayton?
    Curioso como insultos persistem nos tempos atuais. E, quando afloram figuras políticas ou midiáticas de personalidade autoritária, arrogante, preconceituosa, a coisa amplifica, revelando o quanto isso é maior do que parece.
    E quem as utiliza sempre busca argumento pra justificar e naturalizar seus desvios de personalidade.
    Pior é que nenhum de nós está 100% livre de riscos de soltar uma palavra condenável, ainda que num deslize fortuito. Como se diz por aí, somos racistas, machistas, preconceituosos em desconstrução. E vamos precisar de muito tempo pra mudar isso de vez.

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  15. Língua portuguesa é um espetáculo. Pena que nem tudo pode ser dito, graças ao dito popular. Até a pobre da melancia entrou na onda.

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  16. Hayton, parabéns pela bela crônica elaborada com profundidade e leveza na abordagem, levando o leitor a reflexão de como é impactante os xingamentos em suas diversas modalidades.
    No contraditório, daqueles com "desarranjo intestinal", teremos uma evacuação com muitas munições perigosas contra aqueles que xingaram, berraram e afrontaram a inteligência de vários verdes oliva.
    Vamos que vamos.

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  17. Crônica riquíssima em nos inserir nesse submundo do desequilíbrio humano. Durante um bom tempo mantive acesa uma minúscula chama de esperança que a humanidade poderia melhorar. Com a chegada da pandemia, que nos assustou de ponta a ponta no mundo, acreditei que seria um ponto de inflexão no comportamento humano.
    Pura utopia.
    Infelizmente, diariamente vemos que a tão sonhada evolução do ser humano está mais difícil do que o homem chegar ao Sol sem ser fritado.

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  18. Aprendi como insultar sem ofender nesse seu texto, Hayton.
    Claro que vai depender do local, do alvo do insulto e da disposição de perder os dentes no caso de não dar certo.
    Mais uma lição aprendida com você, caro Confrade.
    Abração.

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  19. Gostei do eufemismo e também aprendi mais algumas “gírias militares” para incentivar a tropa, carinhosamente!

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  20. A Cronica trata o insulto com fina ironia, com viés humorístico. Para além disso, traz uma triste constatação: também nos xingamentos existe desigualdade de gênero. Mas gostei mesmo foi do eufemismo para falar dos acontecimentos próximos passados, no meio verde oliva. Parafraseando( aliás, tergiversando) o titulo do livro de Garcia Marquez, “ O General em seu Labirinto”, nos remete ao similar tupiniquim, que, ao ser insultado de ‘cagão’, deve ter ficado em duvida se engolia a ofensa e fazia voto de silencio, ou abria o verbo e jogava fezes no ventilador

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  21. Crônica divertida e excelente! Eu amava o Pasquim! Tempos bons!!

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  22. Por motivos óbvios, você não
    nos brindou com termos ou frases hoje consideradas racistas e que, antigamente, era considerada brincadeira, intimidade: não dava cana. Por exemplo: "tem muito nego bebo aí", ou seja, muitas pessoas que beberam em excesso. E por aí vai...



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  23. É interessante como os animais são utilizados de maneira bem diversa para se referir a homens e mulheres.
    Homens são “fortes como um touro”, “correm como um cavalo”, “trabalham como um boi”, “tem a força de um elefante”. Talvez a exceção seja a referência aos alces para se referir a alguns tipos de machos.
    Já quando chamamos uma mulher de “vaca”, “galinha”, “piranha”, “cobra”, “jararaca”, sabemos que o sentido é bem outro.
    Em algumas circunstâncias, o xingamento tem mais impacto quando traz um significado específico para alguém ou um contexto. Por exemplo, um dos apelidos que mais me incomodou na vida foi o de “vedete”, que um técnico de futsal me deu quando eu tinha 12 anos. Doeu mais porque eu não sabia o que significava e os colegas de futebol se deliciavam com minha indignação, embora eles também não soubessem exatamente o que o treinador queria dizer com isso.
    Num certo reality da tevê brasileira, fiquei sabendo que uma moça fina ficou indignada ao ser chamada de “inútil”, logo ela que se referiu ao “ofensor” diversas vezes o chamando de “monstro”, “escroto”, “nojento” e até “psicopata”.
    Vai ver o “inútil” pra ela tem o peso que “vedete” tinha pra mim!

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  24. Até para ser um insulto, uma palavra ou uma expressão depende do lugar onde está sendo pronunciada. No linguajar dos artistas de Teatro, dizer "merda" é desejar boa sorte. No Rio Grande do sul, "china" é a mulher amada. Para o resto do mundo, "China" é um (imenso e populoso) país. "Negócio da China" é uma expressão dita com muita alegria por quem consegue fazer um. Mas, em mentes pervertidas e/ou preconceituosas, "china" é outra coisa, até no Rio Grande do Sul. Isto também acontece em Portugal, onde "moça" é um insulto, mas "rapariga" não. E "puto" é apenas um menino. Mas, aqui no Brasil, "rapariga" e "puto"... (recuso-me a comentar!!!). Já "moça" é quem está na "flor da idade". Se bem, que de vez quando, alguma distorção acontece. Já "filho" ou "filha" são palavras doces. "Mãe", então, muito mais doce ainda. Mas se as juntarmos...
    Até na música.... "Mas, se alguém me desafia e 'bota a mãe no meio', dou pernada a três por quatro e nem me despenteio..."
    Xingar! Ofender! Insultar! Tão desnecessários, quanto destrutivos. A não ser quando "topamos" o dedão do pé em uma quina...

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  25. Mais do que insultos ou afagos, gosto muito quando suas crônicas pendem pro lado político/militar(com direito a farda e quepe). Mesmo nesses tempos sombrios, quando tememos entrar em esfera perigosa, pois tememos por nós e por nossos, sempre tem uma maneira sátiro/humorístico/política (vide Pasquim) de adentrarmos subrepticiamente na política, sem medo de ser feliz!
    Gostei da referência ao ‘Cagão’ mesmo percebendo que, no caso, o insulto não atinge a vítima dada a origem de onde vem!
    Valeu!

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  26. Parafraseando Aristóteles ‘ O homem é um animal político’

    La sexualité des intellectuels est politique(Foge-me nome do autor)

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  27. Não me surpreenderei nem um pouco se alguma Universidade consagrada passar a utilizar crônicas suas em provas de vestibular, consagrando assim sua condição de cronista.
    Hei de ver...

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  28. É, não daria mesmo para esperar muita coisa de um sujeito que é “treinado” para considerar carinhosos aqueles adjetivos…

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  29. Putz, quantas lembranças me vieram sobre caras que se ofendia com certos termos. A diversão de quem profere a palavra é medmo proporcional a irritação do outro. Imagino o Serginho irritado com 12 anos jogando bola kkkkkk. Devia ficar muito brabo o galego.

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  30. Acima estou como anônimo mas este é um apelido que não gosto kkkkkk. Uma vem cara montar num burro porque foi chamado de palhaço. Dizia ele sendo contido pelos amigos..."palhaço não"...e bufava.

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