No frescor dos novos tempos

Está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei que visa regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos e de empresas por meio de entidades de classe.

 

Com o calorão que anda fazendo ultimamente, há cada vez mais queixas nas redes sociais contra motoristas que cobram adicional dos passageiros que querem viajar com o ar-condicionado ligado. É como se os prestadores do serviço se tornassem os novos mercadores do Egito, onde tudo se compra e se vende, até mesmo a brisa que nos refresca durante a viagem. E veja que não trato aqui de um conto de fadas moderno, mas da triste realidade das plaquinhas que adornam o encosto de cabeça dos bancos dianteiros dos carros, oferecendo o refrigério por certo preço. 


É a cortesia cedendo lugar à cobrança. Balas (ou confeitos) e água gelada foram substituídas por um pagamento antes mesmo de o carro partir. Enquanto alguns defendem a gratuidade da climatização, principalmente em tempos de aceleração do aquecimento global, outros apontam que esse custo não pode recair nas costas dos motoristas, pois o uso do equipamento aumenta muito a conta do combustível. 

 

Conheço um militar reformado que se aventura pelas estradas urbanas como condutor de aplicativos. Ele me contava outro dia, com resignação, que as plataformas têm repassado muito pouco aos motoristas. "Infelizmente é assim. Ah, se eu pudesse oferecer o conforto de antes, sem pedir aos passageiros o reforço por fora...”, lamenta.

 

Aqui deitado em rede esplêndida, ao som do mar e à luz de um sol escaldante, depois de dias e mais dias sem fazer nada de útil à aventura humana sobre a Terra, resolvi perturbar o sossego das plataformas de transporte com minhas indagações de aprendiz de rábula. 

 

Uma delas, em sua sapiência tecnológica e a partir do caso do ar-condicionado, me garante que quando detecta que "o motorista conduz mal uma corrida, pune o desobediente com severa advertência", uma espécie de marca de Caim nos tempos modernos. Nada como uma avaliação ruim para trazer à tona o pior de nós mesmos, não é?

 

Diz mais: que "a cobrança de qualquer adicional por fora representa violação às regras de segurança e podem levar à desativação da conta do motorista parceiro envolvido". 

 

Uma segunda empresa me manda uma mensagem rebuscada, sem nada de novo: “Somos uma empresa de tecnologia voltada à mobilidade urbana e conveniência, que conecta passageiros e motoristas parceiros por meio de seu aplicativo”. E sugere que “motoristas e passageiros decidam juntos sobre o uso do ar-condicionado”.

 

Com a aprovação da lei que regulamentará o trabalho de motoristas de aplicativos por meio de sindicatos, me ocorre propor uma negociação bastante simples para resolver o impasse. 

 

Sem falsa modéstia, a ideia só não é melhor porque é minha. Vejam bem: por que não estabelecer uma taxação mútua? Os passageiros pagariam pelo ar fresco, mas seriam compensados quando fossem obrigados a escutar funk, sertanejo ou dissertações intermináveis sobre preferências clubísticas, políticas ou religiosas.

 

Para os motoristas que insistirem em tentar convencer “convertidos” com suas réplicas e tréplicas, uma penalidade extra seria cobrada: aumento de 50%, com o lembrete de que ficar em silencio é nunca mais precisar ter razão, mesmo em tempos de overdose de informações.

 

A flatulência (e a eructação) também teria cobrança recíproca, apesar da previsível polêmica quanto à autoria de disparos letais silenciosos, sobretudo no caso do transporte compartilhado de passageiros, do meio-dia pra tarde.

 

No fim da corrida, haveria o acerto de contas entre as partes, com razoável chance de a maioria das viagens terminarem com as despesas adicionais anuladas entre si. Elas por elas, digamos assim.

 

Com tanta gente por aí que não se constrange em compartilhar sua estupidez a qualquer hora do dia ou da noite, inclusive espalhando notícias falsas, a taxação mútua, que a princípio pode parecer injusta aos motoristas, teria também um caráter pedagógico e profilático.

 

Sei que na categoria Confort da principal plataforma que opera no Brasil existe a possibilidade, antes da viagem, de o passageiro marcar a opção de não conversar com o motorista e até de definir a opção pelo ar-condicionado, porém me refiro aqui às categorias mais populares, claro, de todos os aplicativos.

 

Não é a solução perfeita, admito, mas ao menos se poderia transformar as viagens em momentos de bem-estar e paz social, ouvindo-se, no frescor dos novos tempos, apenas o barulhinho do ar-condicionado e não monólogos de donos da verdade ou música de qualidade duvidosa para passageiros cujos ouvidos correm o risco de virar penicos.

Comentários

  1. É isso aí, o Uber chegou como a oitava maravilha, o taxi, ficou falando sozinho, e depois vimos que os tais aplicativos nem regulamentados são, e os donos estão no estrangeiro.

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  2. A ideia da compensação parece justa, mas, infelizmente, a "Lei de Gerson" prevalece para a grande maioria de motoristas e passageiros!

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  3. O Uber já chegou em ITABAIANA ?😀

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    1. Já tem até Coca-cola, “Anônimo”!

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  4. As ideias me parecem boas, mas difícil de implementa-las. Não sou a pessoa ideal para avaliar, haja visto que raramente faço uso do Uber.
    Abraço
    Valdery

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  5. A ideia é ótima e dá até pra criar uma sistema de monitoramento baseado em realidade aumentada pra apurar o escore real de passageiro x motorista. Talvez dê até pra colocar o resultado nas plataformas de apostas. Dedé Dwight

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    1. Quis apenas reivindicar o meu direito ao frescor do ar condicionado e a viajar no silêncio de meus barulhos mentais. Se de todo impossível, basta um chorinho bem tocado pra deixar minha viagem bastante feliz.

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  6. “ de disparos letais silenciosos”… cada texto , uma risada franca e quente😉

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  7. Acabei de ler mais um texto do amigo Hayton, desta vez sobre a exigência de taxa para o uso do ar-condicionado nesses momentos de muito calor. O uso da exigência faz parte do momento que é passageiro. O problema é que pode se tornar permanente. E aí temos que nos prevenir para mais essa novidade desagradável. Fazer o que? Temos mesmo que enfrentar a realidade. Bom dia!

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  8. felixbala61@gmail.com13 de março de 2024 às 08:46

    Como em todas atividades e/ou categorias, os bons, ótimos e excelentes, pagam pelos péssimos, insuficientes e maus.

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  9. Uber seguindo o modelo das Cias Aéreas.
    Uma ideia seria os motoristas desenvolverem um aplicativo e receberem o que o Uber recebe e pagarem o que o uber paga...
    Vejam o exemplo dos softwares livres e sua existência comparada com os softwares proprietários

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  10. Boa. Se eu tenho que pagar um adicional pelo uso do ar condicionado, porque o motorista também não paga?? Afinal de contas, ele também usufrui....

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  11. Roberto Rodrigues Leite Bezerra13 de março de 2024 às 09:52

    Seu relato é pura verdade, Hayton. Talvez, a face mais difícil do acerto entre motoristas e passageiros advenha do ineditismo da avença. Algo impensável há poucos anos, transforma a realidade dos dias atuais. Que precisa ajustar-se. A relação, a princípio pouco conflituosa, acaba fazendo nascer embates naturais. Há muito mais por vir, certamente.

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  12. Hayton, nada melhor do que ler esta crônica e dar boas gargalhadas.🔝🙌 Retratou de forma lúdica as vivências no uso dos aplicativos de transporte de passageiros, especialmente na categoria popular.

    Alguns usuários conseguem tirar a paciência dos motoristas do UBER X, por exemplo, com algumas perguntas:

    Tem balinha?
    Pode levar mais uma pessoa?
    Posso levar meu cachorro?
    Pode dar uma paradinha na farmácia adiante? ...

    Estes deveriam optar pelo Comfort ou Black e assim ter uma viagem mais confortável, ciente de que as bufas serão detectadas e as penalidades devidamente computadas de acordo com sugestões a implementar. rsrsr

    Abraço fraterno

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  13. Em toda prestação de serviços sempre há os satisfeitos e os descontentes... Isso é próprio da natureza humana. A questão mais complicada está justamente na gestão do aplicativo, repassando ao prestador do serviço valor muitas vezes aquém do justo. Sou a favor da regulamentação da atividade, mas sem imposição de custos adicionais, pois esses seriam fatalmente pagos pelo usuário, o que, possivelmente, afetaria a demanda...

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  14. Para não fugir da regra, tudo quando está começando é a melhor maravilha, com o passar do tempo vão surgindo as necessidades de ajustes e caí na mesmice, ou seja, acabam as bebesses.

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  15. Ademar Rafael Ferreira13 de março de 2024 às 12:53

    Se a moda pega o barbeiro vai cobrar para o corte ser sentado, a cafeteira cobrar pela xícara... é um vale tudo. Gandhi já dizia algo parecido com: "Os ingleses não tomaram a Índia, nós entregamos". Dessa forma é nosso silêncio sobre taxas das taxas.

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  16. STONEY PALMEIRA MELO13 de março de 2024 às 13:07

    Outro dia peguei um UBER e o motorista não falou nada, foi uma das melhores viagens que fiz.

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  17. Qualquer que seja a conclusão que se chegue ao final dessa polêmica, certamente agradará e desagradará, parcialmente, a ambas as partes envolvidas, prestador do serviço e consumidor. Mas, convenhamos, fazer uma corridinha, ao som de um belo "silêncio" e com uma temperatura que nos deixe confortável é bem agradável, ainda que tenhamos que gastar uns centavos a mais.

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  18. Você é um cronista que se aventura por todos os caminhos da vivência humana. Sempre com sabedoria. Pois não é que gostei das sugestões ? Ouro sugerir que , no caso do ar condicionado, também ocorra uma compensação, porque o motorista também é beneficiado pelo refrigério.

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  19. Já coloquei aqui mais de uma vez, mas não canso de repetir, minha quase estupefação com sua versatilidade na variedade de temas em suas crônicas.
    Minha mente sempre retorna ao assunto, fica martelando algo, até me induzindo a alguma comparação com alguém da área.
    Até que hoje, a "bomba explodiu". Ao constatar sua referência a "flatulência, eructação e disparo letais silenciosos", a ficha caiu, a iluminação chegou.
    Sim, não tenho mais dúvida, seu estilo é o mesmo do grande e saudoso Sérgio Porto, o inesquecível e imortal STANISLAW PONTE PRETA.
    Mande brasa...

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  20. Corrigindo, "disparos letais...

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  21. Justiça seja feita. Graças ao transporte por aplicativo, aposentei-me da função de motorista... de mim mesmo. E da família também, claro! Também meus custos com transporte passaram a ter um maior controle. Sei antecipadamente o valor de cada corrida e controlo melhor minha média mensal de gastos. Não tenho mais que me preocupar com IPVA, Seguro, depreciação do veículo, flanelinhas, lugar para estacionar, custo de estacionamento etc etc. Sem falar do maior dos benefícios. Não sofro mais o estresse de ser obrigado a dirigir nesse trânsito maluco (não importa a cidade).
    Mas, como toda a moeda, tem o outro lado. Tudo depende de dois fatores:
    1) do que está entre o volante e o banco. Existem condutores, existem motoristas e existem aqueles dos quais o Hayton está falando;
    2) da conservação do que envolve tudo. Existem carros, existem "fubicas" e existem aqueles dos quais eu quero falar:
    Num dia desses em que prevalecia a tal "tarifa dinâmica", optei pela "outra" empresa de aplicativos. Não obstante a simpatia e a timidez do jovem motorista, que optou por ganhar a vida de forma honesta, ainda que com ganhos sabidamente irrisórios, percebi que a qualidade e a manutenção dos veículos não é mais prioridade (e talvez nem exigência) das empresas do ramo. Logo que entrei e sentei no banco traseiro, lado direito, senti que o carro "abaixou" mais do que devia. A cara que eu fiz deve ter assustado o jovem motorista e ele apressou-se a explicar: "Já pedi ao dono do carro para consertar o amortecedor, mas ele disse que está sem tempo. E eu, além de nada poder fazer, não posso parar o carro. É  o meu ganha-pão. Ganho pouco, mas é melhor que nada".
    Percebi, que eu estava diante de um "terceirizado de outro terceirizado", numa situação em quem ganha é a Empresa, (que ganha muito) e o dono do carro (embora ganhe muito menos). Para o pobre motorista sobram "caraminguas".
    Ele concluiu, dizendo que, se eu quisesse cancelar a corrida, estava no meu direito. Mas percebi o seu tom de necessidade e quase desespero e resolvi continuar a viagem...
    Cada ressalto do asfalto, um salto! E a cabeça batendo no teto. E, no brusco retorno ao banco, um tranco! E minha coluna... nem te conto! E minha cabeça...  fiquei tonto!
    Ele fez várias tentativas de reduzir meu (dele também) desconforto. Tentou reduzir a velocidade, mas os buracos do asfalto aumentaram o problema. Tentou ir mais rápido, o que de nada adiantou. Finalmente, chegamos, com ele pedindo mil desculpas. Dei a ele um valor extra em dinheiro e, ao "fechar" a corrida, no aplicativo, elogiei o motorista, critiquei o carro e fiz o devido bloqueio. Aquele carro nunca mais.
    Mas não desisto dos serviços. Os benefícios superam estes ônus eventuais. Até mesmo a falta do ar condicionado. Pelo menos, para mim.

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  22. É por isso que o Brasil não “pogrede”, como diria o Gonzagão (numa canção)!
    As pessoas mais brilhantes, com as ideias mais luminosas, não têm o poder de implementá-las (como é seu caso 🤣).
    E quem tem o poder, não tem ideia, ou tem ideias erradas (para nós).
    Realmente, acaba tudo ficando nos ombros dos motoristas ou, o que é pior, nas costas do banco dianteiro…

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  23. Durante a campanha eleitoral, solicitei um Uber e o mesmo feio adesivado com propagandas do maldito e com duas bandeiras do Brasil. Falei com o motorista que naquele carro não entrava, pois ele estava totalmente em desacordo com as normas da empresa e com o as minhas simpatias políticas. Até hoje tenho essa pendência de débito no Uber. Não paguei e não pagarei. Que os ditos prestadores de serviço respeitem os seus clientes.

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  24. O Congresso Nacional precisa te ouvir!
    👏👏🤩🤩 Maravilhosas ponderações e soluções!

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  25. Adorei! Muito divertido o texto! Esbanjando criatividade em tema tão árido!

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  26. Como não saio de casa dirigindo quando vou encontrar os amigos, uso bastante o aplicativo. Mas já peguei até banco mijado,tendo que abortar a viagem. Aí não tem jeito de não dar nota ruim. Mas, no geral, em BH, são bons.

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  27. Aqui ainda não passei por tal problema de ar condicionado, como não sou muito favorável a esse frescor, sempre peço para desligar. Abro as janelas, pois tenho claustrofobia.

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  28. Muito oportuno o tema diante da “quentura” de nossos dias. O pior, para mim , é chamar um dito Comfort e o ar condicionado , certamente com defeito , apenas ventilando.

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  29. Hayton, você inventa cada uma …
    Essa de hoje é muito boa!
    Sempre gostei de falar com barbeiro e motorista de táxi: sabem de tudo. E dou linha para eles dissertarem sobre o assunto do momento. É uma delícia.
    Agora, pagar por ar condicionado, já é demais.

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  30. Até que enfim alguém pra pensar numa solução pra nossos impasses na relação com os aplicativos.
    Hayton já vem com um pacote que pode resolver muita coisa 😄

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  31. O desafio será a precificação…
    Por assunto? Por tempo? Por reincidência?…. Mas sei que vc terá as respostas! Pode acionar as plataformas e ganhar dinheiro com elas 💪🏼☺️

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