quarta-feira, 30 de abril de 2025

O peso do sim e o doce da culpa

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Durante anos, os ovos carregaram o rótulo de vilões das artérias. Um só — dos grandes, de gema graúda — vinha com quase 200 mg de colesterol na bagagem. Bastava quebrar a casca e lá estava o medo, junto com a clara e a gema, na frigideira. Os médicos juravam que o colesterol do ovo ia direto pro coração, feito boleto de taxa extra de condomínio em mês de IPTU.


Mas o tempo, esse velho cheio de novidades, tratou de desmenti-los. Descobriu-se que o impacto do ovo no sangue era quase tão inofensivo quanto água de pote. Hoje, é fonte de proteína, gordura das boas e de umas tantas vitaminas e minerais. Quase um santo, não fosse o preço, que virou pecado capital na mesa dos mais humildes.


Eu sempre soube. Nunca me curvei à patrulha dietética. Desde que me entendo por gente, gosto de ovos mexidos — sem sal, mas com queijo ralado, vinagrete e pimenta moída. E até onde sei, sigo respirando. O que, por sinal, me dá o direito de me gabar dos ovos que nunca deixei de comer.


Agora, o novo bode expiatório da mesa são os adoçantes. A Organização Mundial da Saúde, sempre cautelosa em suas diretrizes, desaconselha o uso dessas gotinhas e pozinhos mágicos na cruzada contra a balança. Diz que, além de não ajudar a emagrecer, o uso prolongado pode abrir as portas do inferno: diabetes, doenças cardíacas e, quem diria, até morte prematura — embora eu nunca tenha entendido bem como se mede a tal "prematuridade" da morte.


Tem de tudo na lista de condenados: aspartame, sacarina, stevia, sucralose... até o "zero" dos refrigerantes entrou. Pois é: mudam os rótulos, mas a culpa nunca sai do cardápio. Ela se disfarça de conselho médico ou moda passageira, mas está sempre ali, espreitando.


Foi pensando nesse peso invisível, que adoça e amarga nossas escolhas, que me veio à memória um café da manhã em Petrolina, capital da Califórnia brasileira — daqueles temperados com flores, suspense e o preço de um "sim".


Eu, representando um grande banco numa missão delicada, acabara de sair de uma reunião onde produtores rurais tentaram me crucificar pelo que acontecia na economia. 


Na saída, fui abordado por um senhor de chapelão, bigodes fartos, fala grave e porte de quem não pede: convoca.

— Gostaria de recebê-lo pro café da manhã em minha casa.


Cogitei recusar. Viajaria logo cedo para o Recife. Mas coronel, quando cisma, não há argumento que dobre:
— Tudo bem, estarei lá.


Acordei achando que ele tivesse esquecido. Mas lá estava o homem no portão: seis em ponto, paletó de linho branco, um bugarim branco na mão.
— Sabe que flor é essa? — perguntou, mais sedutor que o falecido cantor Wando.
— Não faço ideia.
— Bugarim. Todo dia colho um pra minha mulher. Flor tem disso. Precisa ser vista antes que murche.


Entramos. A mesa era um altar à abundância: bolos, cuscuz, frutas, guisado, linguiça, munguzá, ovos e tapioca. No meio do banquete, ele gotejou adoçante no café:
— Peso é coisa séria, né?


A ironia escorreu pelos cantos da boca do homem. Mal afogara o bigode na gordura e já posava de comedido. E entre um gole de café e uma tragada de charuto, ele chegou ao ponto que queria:
— Não gostei do seu "não" no caso do meu compadre, de quem sou avalista. Onde já se viu negar o parcelamento das dívidas de um homem sério como ele?


Expliquei que banco é bicho desconfiado. Lida com "sim", "não" e "depende". E que, se o compadre dele quisesse mesmo renegociar, precisava trazer uma proposta melhor, amortizar um pedaço. Nada de querer desconto no saldo da dívida. 


Mas o coronel insistia:
— O "não" é a noite, escurece tudo. Só o "sim" ilumina, constrói, dá graça às flores…


Pensei — mas calei, que não era doido: até a flor mais bonita murcha se for regada a calote. Expliquei que qualquer banco só dá desconto nesses casos quando o devedor está sem eira nem beira. Não quando tem avalista robusto, capitalizado. Ele resmungou, mas fez o que o bom senso mandava:
— Vou convencer meu compadre. Onde já se viu querer desconto tendo por trás um avalista de primeira?


Não sei se a dívida foi paga, renegociada ou morreu esquecida em alguma vara judicial. Sei que, trinta anos depois, o coronel já não está entre nós. Mas os bugarins brancos continuam florindo na Califórnia brasileira.


Nos despedimos. Antes de embarcar, ele recitou, como quem sabia que todo café, todo "sim" e toda culpa têm o mesmo destino:


A vida é doce
e doce é sua doçura.
Tão doce talvez não fosse
se, entre goles e flores,
não coubesse amargura.


Pois é. A vida é esse café coado às pressas: doce o bastante pra consolar, amargo o suficiente pra não nos deixar esquecer que, no tempo certo, até o que pesa, passa.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Bouquet de confusões


No reino animal, há quem corra, quem morda, quem grite e… quem feda. Claro, o fedor também é arma — e das mais eficazes. Especialmente entre mamíferos, que aprenderam, ao longo de milênios, que nem todo predador está pronto para encarar, digamos, um gás lacrimogêneo natural.


O gambá, por exemplo, é um franco-atirador perigosíssimo. Quando ameaçado, gira o traseiro como quem diz “pega essa garapa!” e dispara um jato fétido com a mira de velho jogador de sinuca. Pode atingir mais de três metros e, se acertar nos olhos, o inimigo se despede temporariamente da visão. E, se tiver olfato, perde inclusive a dignidade. O problema é que o “arsenal” precisa de dez dias para recarregar — ou seja, é melhor ser bom de pontaria. Ainda assim, há quem o enfrente: uma certa coruja ousa atacá-lo pelas costas, como quem diz que nem todo odor amedronta quem voa acima da linha do bom senso.




Na semana passada, o espírito do gambá baixou no circuito profissional de tênis. Durante o WTA 250 de Rouen, na França, a britânica Harriet Dart, 28 anos, perdeu o jogo e a compostura. Revoltada não só com o placar (0-6 e 3-6, uma derrota inquestionável!), levantou-se no segundo set, apontou discretamente o nariz para o céu e se queixou à árbitra: “Você pode pedir pra ela usar desodorante? Ela está com um cheiro forte!”


A adversária, Lois Boisson, 21 anos, francesa, jogava com foco, garra e, aparentemente, um bouquet olfativo com notas que não agradaram as narinas aristocráticas da britânica. A conversa vazou para os microfones de quadra e rodou o planeta com mais velocidade que os saques trocados entre ambas.


Resultado: Harriet perdeu o jogo, a elegância e talvez alguns patrocínios. A WTA ainda estuda uma punição por comportamento antidesportivo. Ela, então, correu para o Instagram com um pedido de desculpas que mais parecia bula de antisséptico: “Foi no calor do momento, me arrependo profundamente, tenho muito respeito pela Lois e pela forma como competiu hoje.” Quem tem... nariz, tem medo!


Já Boisson, essa sim com fair play e pitadas de humor, postou uma montagem no Instagram: ela ao lado de um desodorante Dove, marcando a marca e sugerindo um “collab” — parceria entre marcas e/ou pessoas para criar algo inovador. Deixou a britânica e suas narinas na poeira da história, perfumada pela ironia.


Mas se no tênis a classe costuma ser obrigatória até no suor, no futebol o cheiro de confusão às vezes vem de fábrica — e não é só do vestiário.


Há dois anos, durante um Bayern x Manchester City pela Champions League, câmeras flagraram o alemão Leon Goretzka visivelmente incomodado com Erling Haaland. O norueguês sorria, alisando a barriga, enquanto Goretzka tampava o nariz. A legenda da TrollFootball sugeria um protesto inusitado: “Haaland soltou um toda vez que nos aproximamos. Isso não é futebol!”


Não há provas de que essa flatulência tenha sido planejada como estratégia ofensiva e defensiva ao mesmo tempo, mas não se pode descartar um plano tático de guerra química. Aqui, os meios justificam os fins.


Em 2015, o brasileiro Diego Costa acusou o britânico Ryan Shawcross de exalar odores “curiosos”. A história, claro, viralizou — e virou propaganda. Uma marca presenteou o atleta ofendido com desodorantes e o transformou em garoto-propaganda. Ficou cheirosamente famoso.


Oito anos depois, já no Botafogo, Diego provou do próprio suor. Em São Januário, no Rio, enfrentando o Vasco, trocou empurrões com o chileno Gary Medel. O zagueiro vascaíno reagiu de forma inesperada: tapou o nariz com uma das mãos e abanou com a outra, como quem repele mau cheiro. Ambos levaram cartão amarelo.


Curioso como o fedor, que começa como ataque ou defesa, acaba revelando sua vocação mais nobre: a de guia invisível da memória. O cheiro tem dessas — arrasta a gente para o passado, desde o colo da avó, passando pela mesa da infância, até a roupa de cama que ainda guarda um abraço que já se foi. Cheiro é saudade em estado puro e gasoso.


Dias e ventos melhores soprarão para os viventes de boa vontade, com fragrância de bom senso, pitadas de cortesia e, quem sabe, um toque cítrico de respeito ao próximo. Porque civilidade não deveria ser como desodorante em spray: age por algum tempo, evapora rápido e, quando mais se precisa, já foi embora sem dizer adeus. E o pior: às vezes deixa só o rastro do que tentava esconder.

 

 


quarta-feira, 16 de abril de 2025

Sete vidas e nenhum coração

Nos tempos do Império, “doutor” era título nobre, concedido com a pompa de quem recebia uma comenda da Coroa, com direito a anel de esmeralda. Hoje, basta cruzar a linha de chegada do vestibular de Medicina para ver brotar “doutores” como mato em calçada rachada. O jaleco branco virou capa de super-herói urbano — só que, em vez de salvar vidas, muitos agora se contentam em postar vídeos e duelar por likes no TikTok. 

Recentemente, em São Paulo, duas estudantes de Medicina, princesas da superficialidade digital, resolveram empunhar seus celulares como bisturis morais e praticar dissecação pública no coração de uma história triste. Postaram um vídeo debochado, digno de uma tragicomédia urbana, comentando com desdém o caso de uma jovem que, em vez de sete vidas, como os gatos, teve três corações. E mesmo assim, não escapou do apedrejamento pós-morte.






A paciente não era personagem de ficção. Era uma guerreira de carne, cicatrizes e ossos. Diagnosticada ainda criança com uma anomalia rara no coração, percorreu uma via-crúcis de hospitais, salas cirúrgicas e UTIs como quem atravessa desertos à procura de um gole de esperança. Sobreviveu a três transplantes, enfrentou o esgotamento de um corpo que não se rendia fácil — mas tombou, ironicamente, pela mão invisível e fria da crueldade das redes sociais, essa que se disfarça de humor e se esconde atrás de arrobas e filtros.


As princesas — subcelebridades narcisistas que não eram da USP, mas se exibiam como novas protagonistas da elite de branco — resolveram transformar a luta da paciente em espetáculo de stand-up. Talvez achassem que estavam arrasando numa TED Talk de corredor hospitalar. Escorregaram feio na casca da insensatez. A plateia não riu. O Brasil, mesmo anestesiado por absurdos cotidianos, também não. E a família da paciente? Foi obrigada a assistir, pela enésima vez, à dor da filha viralizando como figurinha rara no álbum das humilhações da internet.

 

Sim, existe uma infecção generalizada se alastrando no reino das redes sociais. E não é só o algoritmo, esse bicho que sabe mais de nós do que nossa mãe. É o que mora por trás do jaleco, do estetoscópio, da indiferença. Um vazio de empatia, de ética, de senso. As “doutorinhas” — como disse um amigo meu, com precisão cirúrgica — talvez não necessitem de um transplante de coração. Talvez precisem de um implante de humanidade. O problema é que esse órgão anda mais escasso que plantonistas em véspera de feriadão.

 

Se existisse um Dr. Frankenstein capaz de costurar um novo ser humano com retalhos de decência, talvez ainda houvesse esperança. Mas a fila de espera é longa, e o estoque, escasso. O Brasil também agoniza com déficit crônico de doadores de células de compaixão.

 

É claro que, como manda o script, vieram as notas de repúdio, os comunicados frios, os protocolos de apuração, o inquérito policial. As faculdades das princesas “lamentaram profundamente”, como se fossem mães arrependidas por uma travessura de suas meninas. O Incor apressou-se em dizer que elas eram apenas figurantes num curso de extensão — e que, felizmente, já haviam deixado o palco.

 

Mas quem devolve à família da injuriada o direito de lembrar dela em paz, sem a mácula do escárnio viralizado? Quem restitui à jovem morta a dignidade que lhe foi negada mesmo após o martírio?

 

O caso exala por todos os poros vaidade digital de quinta categoria. Por um instante, considerei me poupar do contato com tanta toxicidade. Mas o vídeo me chegou pelas mãos de um amigo que, com a indignação que falta aos conselhos de ética, lançou uma pergunta perfurante: “Quantos transplantes de coração seriam necessários para essas moças?”

 

Boa pergunta.

 

Talvez bastasse aprender que coração não é feito só de ventrículos, válvulas e vasos. É feito de decência, intenção e gesto. De silêncio, quando falta o que dizer. De humildade, pra não se achar acima da dor alheia. E, sobretudo, de vergonha na alma — essa que não se ensina em aula magna nem se baixa por link patrocinado.

 

Se, por alguma ironia do destino, cruzar por aí com uma das princesas — numa esquina da vida onde o inesperado distribui seus tapas —, prometo abrir meu coração. Direi, com a elegância que a idade ensina, que embora quase nunca esqueça um rosto, no caso dela terei o prazer de abrir uma exceção.

 

Porque o coração, esse órgão besta e valente, apanha calado todos os dias. Mas quando a compaixão e a ética param de bater por ele... ele não vira pedra. Vira farsa. E aí, nem transplante dá jeito.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Nem tudo precisa ser dito

Circula nas redes sociais mais uma daquelas correntes com cara de receita milagrosa, sugerindo o repasse de uma mensagem para “dez amigos mais velhos”. O autor anônimo — supostamente respaldado por descobertas científicas de última hora — garante que idosos que falam demais estão apenas se protegendo da perda de memória. Para ele, médicos consideram isso quase uma bênção: seria o mais eficaz antídoto contra o Alzheimer. Falar. Falar muito. E sem parar.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)



Sustenta sua tese listando benefícios quase celestiais aos tagarelas da terceira idade: ativar o cérebro, prevenir doenças mentais e manter a musculatura facial em forma. Como se bate-papo substituísse pilates ou caminhada. A receita da longevidade emocional, enfim, seria uma roda de amigos trocando opiniões, piadas e trivialidades — e, claro, gargalhadas. A grande descoberta, nesse caso, seria que desocupados bem-humorados envelhecem melhor, morrem em módicas prestações.


Consigo imaginar o impacto dessa mensagem em três amigas minhas, casadas com três irmãos da mesma faixa etária. Verborrágicas desde a adolescência, talvez vejam nisso não apenas um alívio, mas um mandamento divino. Estimuladas pela “ciência”, devem intensificar suas videochamadas familiares — seja no café da manhã, no jantar, até nas madrugadas em que a insônia bater.


Enquanto isso, seus maridos, tão silenciosos quanto monges tibetanos gripados, seguiriam imóveis em seus encontros contemplativos na sala ou na varanda, cada qual com sua latinha gelada, olhando o nada como se aguardassem uma revelação. O ápice do diálogo entre eles é um enigmático “é verdade... é verdade...”, seguido de um suspiro, como se naquele intervalo coubessem toda a sabedoria do universo.


Dizem que mulher fala muito mais do que homem. Será mesmo? Trabalhos recentes apontam cerca de 16.200 palavras por dia para elas, contra 15.700 para eles — diferença de 500 palavrinhas, o que mal dá pra sustentar uma fofoca decente. Mas o mito resiste. Vai ver ninguém resiste a um bom clichê vestido de jaleco branco.


Foi assim que a tese ganhou ares de fato incontestável. Em 2006, o livro O Cérebro Feminino, de Louann Brizendine, cravou que mulheres falavam 20 mil palavras por dia, contra apenas 7 mil dos homens. O dado foi rapidamente desmentido pelo linguista Mark Lieberman, que rastreou sua origem até um obscuro folheto de aconselhamento matrimonial dos anos 1990. Mas, como toda “verdade científica” conveniente, recusou-se a morrer. Se está na internet e vem precedido de “estudos comprovam”, então é ciência. E ponto.


Seja como for, um fato parece inegável: homens e mulheres entendem a comunicação de formas diferentes. Para muitos, a fala feminina soa um oceano infinito. Para muitas, os homens são desertos de silêncio. Talvez esse descompasso seja justamente o que mantém a convivência a dois de pé — ou o que a torna exaustiva e instigante ao mesmo tempo.


Viver a dois é ir descascando, dia após dia, as camadas do outro e as nossas — como uma cebola de temperamentos, que às vezes faz chorar, outras vezes arde, mas quase sempre dá sabor ao prato do dia. Quando os “eus” entram em rota de colisão, o segredo talvez seja distraí-los: deixar um falando sem parar e o outro praticando o nobre ofício de fingir que escuta.


Quando menos se espera, lá se vão dez, vinte, trinta anos. E então se percebe que a única diferença entre o bebê que fomos e o idoso que nos tornamos é que, agora, precisamos de um fisioterapeuta para lembrar que um dia conseguimos morder o próprio dedão do pé.


Outro amigo meu costuma dizer que, felizmente, sua mulher fala muito mais do que ele. E, ressalta ele, ainda bem que é assim. Cada palavra dela ocupa os buracos que sua introspecção cava. Enquanto ela compartilha impressões e conecta os pontos do cotidiano, ele apenas sussurra, grato: “é verdade... é verdade...”. E volta ao celular, ao livro ou ao controle remoto da TV.


Talvez aí resida o segredo: aprender a ouvir o que se esconde entre uma palavra e um suspiro. Porque quem fala, acredita conduzir a conversa. Quem escuta, também. Portanto, os dois se enganam. E é nesse engano compartilhado que se desenha o possível equilíbrio.


Afinal, se viver já não anda fácil pra ninguém, conviver virou modalidade olímpica — sem medalha, sem pódio. Onde a fala preenche e o silêncio revela.


Nem tudo precisa ser dito. Muitas vezes, quem cala, diz quase tudo. 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Drink do Corno Feliz

Foi maravilhoso revisitar a Bahia semana passada! Na minha faixa etária, pouco acima da “meia-idade”, já vi muita coisa, mas ainda me surpreendo. Como, por exemplo, um homem traído que resolveu transformar o próprio infortúnio em um bar de sucesso: o Drink do Corno Feliz.  




Agora me digam: o que se faz ao descobrir uma traição? Uns choram, outros quebram copos e pratos, alguns tentam afogar as mágoas em abraços alternativos.

 

João Augusto, baiano de Morro de São Paulo, escolheu um caminho insólito: abriu um bar. E não qualquer boteco, mas um ponto turístico batizado com precisão cirúrgica.

 

O bar, que já soma mais de uma década de sucesso, nasceu da dor, cresceu na resignação e amadurece sob o sol de Tinharé.

— Muita gente destrói a vida por causa de uma traição. Precisamos brincar mais com isso. A vida continua... — ensina João.

 

Talvez, ainda menino, ele tenha escutado na vitrola do pai Juca Chaves  o “Menestrel Maldito” apelidado por Vinicius de Moraes — e aprendido, desde cedo, a rir das próprias desgraças, como nestes versos:

“Eu tenho chifre mas não tenho queixa

Se bem que a testa fique bem maior

Até que é bom quando a mulher nos deixa

A gente sempre arruma outra melhor.”

 

E segue o refrão:

“Essa é a vida que eu sempre quis

Eu sou cornudo, mas eu sou feliz...”

 

A traição veio em 2016, encerrando um relacionamento de 16 anos. João vagou pelas ruas de Morro de São Paulo com o mundo escorregando sob os pés — orgulho ferido, raiva contida, e a sensação de que só ele não sabia.

 

Por dias, perambulou feito zumbi, o amargo colado na garganta. Foi nesse estado que, certa tarde, escutou um grupo de turistas reclamando da falta de um bom drink diante do pôr do sol. Um deles brincou:

— Rapaz, se eu levo um chifre num lugar desses, pelo menos queria uma caipirinha pra descer redondo.

 

A frase pairou como revelação de boteco: nada divino, mas uma ideia luminosa — dessas que chegam com gelo, limão e timing perfeito.

 

Dali pro negócio foi um pulo. Comprou alguns ingredientes, uma caixa térmica e improvisou um letreiro de madeira: Drink do Corno Feliz.

 

Afinal, se a dor é inevitável, que ao menos gere fluxo de caixa positivo.

 

A prefeitura torceu o nariz, burocratas fingiram não ver — talvez já calejados de tantos chifres próprios —, mas João não esmoreceu. Limpou o mirante, ergueu sua modesta estrutura e, em pouco tempo, o bar se tornou uma referência local.

 

Turistas e moradores começaram a procurá-lo não apenas pela vista, mas para brindar ao inevitável: o chifre pode alcançar qualquer um.

 

Supõe-se que os primeiros clientes chegaram movidos pelo humor. Mas a curiosidade venceu o constrangimento, e João logo percebeu que o bar era mais que ponto turístico: virou santuário dos cornos anônimos.

 

Entre uma caipirinha e outra, confissões surgiam como desabafo de penitentes: o marido que caiu nos braços da madrinha de casamento, a missionária que era amante do "irmão" de igreja, o sujeito que percebeu que o filho do vizinho se parecia mais com ele do que o próprio filho biológico.

 

O apelido "Corno Feliz" colou de vez, e João, longe de se incomodar, o adotou com gosto.

 

Hoje, desfila pelo bar com um chapéu de palha de onde brotam chifres vistosos, feito um viking tropical — ou um Dom Quixote que fez as pazes com seus moinhos —, e uma frase de efeito para cada situação.

 

Se o cliente reclama do preço da caipirinha, ele rebate:

— Chifre é de graça, mas caipirinha tem custo.

Se alguém hesita em pedir um drink, encabulado com o nome do bar, ele pondera:

— Se chegou até aqui, já pode brindar.

E quando perguntam se já superou a traição, apenas sorri e aponta para a placa.

 

Nelson Rodrigues, outro que entendia como poucos das agruras do coração, dizia que "amar é ser fiel a quem te trai". Provocador, né? Sugere algo quase insuportável: um amor que resiste ao que deveria matá-lo. 


Mas talvez ele só quisesse dizer que fidelidade diz mais sobre quem leva o chifre do que sobre quem o aplica. O traidor pode ser canalha, distraído ou apenas um desavisado tropeçando na própria libido.


Já o traído... ah, esse ganha um certo status: vira patrimônio emocional tombado — digno de abraço carinhoso, conselho gratuito e, às vezes, até de uma rodada de caipirinha.

 

Vai ver João Augusto entendeu, lá do alto do mirante, que se a vida dá chifres, que venham com limão, açúcar, gelo e uma boa cachaça.

 

E que rendam mais que um relacionamento amoroso — de preferência, livres de mágoas, de impostos e com vista pro mar.

quarta-feira, 26 de março de 2025

Bastidores picantes de uma noite brasiliense

Há quase meio século, o Brasil balançava ao ritmo da novela global Dancin’ Days. No embalo, Brasília viu brotar danceterias como a Machine, no Venâncio 2000, e a New Aquarius, no Conic — a primeira boate gay da cidade. Mais adiante, brilharia a lendária Zoom, no Lago Sul, inaugurada sob os holofotes de Pelé, Xuxa, Luiza Brunet e outros astros cintilantes.


Era uma festa de máscaras. Políticos, lobistas e engravatados de sobriedade elástica e ética flexível se esbaldavam sem medo de estampar folhas do Correio Braziliense ou as manchetes do Jornal Nacional.

 

Enquanto isso, em outro salão — os corredores de uma estatal poderosa — dançava-se uma coreografia bem menos vistosa, mas não menos animada. A criação de delegacias estaduais transformara a Capital numa pista burocrática. 

 

Reuniões semestrais garantiam à turma do alto escalão distância conjugal conveniente e noites bem mais agitadas que qualquer planejamento de metas — o que, convenhamos, nem é grande vantagem.

 

Diferentemente dos políticos, os burocratas seguiam fora da mira da imprensa, que preferia garimpar escândalos sob luzes mais precárias.

 

Foi numa dessas reuniões no Setor Hoteleiro que o chefe Donald — nome fictício, naturalmente — liberou os delegados estaduais para conhecerem a noite brasiliense. Grupos se formaram e partiram para destinos variados. Entre eles, Huguinho, Zezinho e Luisinho — chamemos assim, por razões óbvias.

 

Reprodução: Redes Sociais/Walt Disney's Comic and Stories


O trio desembarcou na Zoom, onde luxo e luxúria andavam de mãos entrelaçadas. Naquela pista, os Metralhas e Maga Patolójika podiam discutir contratos milionários à margem da lei, entre generosos goles de uísque, e minutos depois serem flagrados pelo espelho aos beijos com “colegas de labuta” — sempre “colegas”, claro.

 

Zezinho, animado além da conta e convencido de sua irresistível virilidade, decidiu incendiar a noite. Cutucava beldades, apalpava o colo alheio sem cerimônia, urinava onde e quando não devia, transitando perigosamente entre o glamour e o vexame —pendendo, como era de se esperar, para o último.

 

Huguinho e Luisinho tentaram contê-lo. Em vão. Chateados com a teimosia etílica do companheiro, decidiram ensiná-lo a pegar leve.


Huguinho, ainda com traços de bom senso, pulou fora quando percebeu a crueldade do plano. Já Luisinho, veterano em trotes corporativos, seguiu adiante.

 

Na volta ao hotel, cuidou pessoalmente do translado do colega desacordado. E, com a precisão de um atirador de elite, armou a peça. Com a ajuda da camareira, preparou uma mistura de claras de ovos, gotas de limão e um toque de pimenta malagueta — receita infalível para reações adversas. Em seguida, despejou o líquido na parte traseira da cueca de Zezinho. 

 

Ao despertar, ainda grogue, Zezinho foi informado de que perdera o controle e acabara a noite no piso frio do banheiro, onde fora encontrado balbuciando palavras ininteligíveis. Tentou rir, nervoso, mas uma sensação de incêndio na retaguarda logo lhe roubou a graça.

 

O rastro pegajoso, viscoso como um escândalo mal abafado, selou o pânico na alma e na cueca de ZezinhoSem raciocinar, ele correu até Tio Patinhas — todo-poderoso da organização e seu protetor — e, entre gaguejos e lágrimas, denunciou um atentado desonroso e suspeito.

 

Chamaram médicos. Fizeram exames. Cogitaram tudo: de abuso a espionagem, passando por tentativa de desestabilizar a República. Espantado com o desenrolar dos fatos, Luisinho não resistiu: confessou o "crime".

 

Em reunião de emergência, determinaram o afastamento sumário do brincalhão e instauraram uma sindicância para avaliar, inclusive, a sua demissão por justa causa — artigo raro nas estatais, onde a máxima costuma ser: “errar é humano, punir é desumano!”. 

 

Para evitar um escândalo de proporções sísmicas, fizeram o que sempre se faz nesses casos: tentaram abafar e torcer para que a fumaça se dissipasse.

 

Mas, como todo segredo corporativo, a história vazou pelos corredores e ganhou o mundo em versões cada vez mais pitorescas, garantindo a Zezinho uma coleção de apelidos sugestivos: Capitão Cueca, Fire Tail, Peido Picante, Zezinho Leite Moça e por aí afora. 

 

Seis semanas depois, a sindicância foi arquivada — entenderam que não houve má-fé, apenas "excesso de confiança na intimidade entre colegas". Chefe Donald se aposentou antes que o samba descambasse. Huguinho sumiu no mundo, cedido a um cargo diplomático. Zezinho foi promovido e seguiu vida afora fingindo que os apelidos não eram com ele. E Luisinho... ah, o indefectível Luisinho! Perdoado pelo Tio Patinhas, não só escapou da degola como herdou o trono do chefe Donald.

 

Com o tempo, a ressaca passou. Mas a história — picante e salgada — entrou para o folclore das noites brasilienses, lembrando que, por essas bandas, a conta da farra quase sempre arde onde menos se espera.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Trocando em miúdos (até o rim)

Poucas cenas me entristecem tanto quanto o crepúsculo de uma relação amorosa. Pior quando envolve amigos queridos — aqueles que, mesmo a gente sabendo dos perrengues conjugais, torce para que entrem de novo em sintonia e sigam de mãos dadas até o fim da estrada, mesmo de bengalas.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Volta e meia me lembro de uma interpretação antológica de Elis Regina para Atrás da Porta (Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus...), de Chico Buarque e Francis Hime. Foi em outubro de 1980, no programa Grandes Nomes, da Rede Globo, sob as ruínas de seu casamento, Elis foi tão visceral que, no fim, desabou em lágrimas.


Só faltou a voz de fundo de Vinicius de Moraes com o Soneto da Fidelidade, contando da mortalidade e da natureza efêmera da vida, ensinando que o amor pode não ser imortal, “posto que é chama”, mas que seja “infinito enquanto dure”.


Outra memória vem de 1979. Parece de um tempo ainda mais remoto — um museu de costumes extintos, com cheiro de cigarro, poltrona de veludo, radiola e vinil. Aconteceu há 45 anos, mas poderia ter sido há uma década. Só que o espírito da coisa é vintage: analógico até na dor.


O divórcio, na época objeto de grande polêmica religiosa, havia sido instituído recentemente. No seriado Malu MulherPedro Henrique (Dênis Carvalho), diante da prateleira de LPs, escuta o veredito de Malu (Regina Duarte): “Os discos de Bethânia são todos meus.” Era o fim do amor dividido em faixas de vinil.


A cena tinha aquele ar solene de inventário sentimental. E não existia metáfora melhor para dividir os escombros de um amor do que repartir a trilha sonora que o embalou. Hoje, a logística do coração perdeu parte do charme: a discografia inteira de uma relação cabe num pendrive ou numa playlist que se pode deletar com um ou dois cliques. Sem agulhas, sem faixas riscadas, sem drama.


O mundo gira e, junto com os discos, até a saideira — aquele improvável arremate de beijos e carícias — também saiu de catálogo. Dá pra imaginar diálogos que nunca mais serão ouvidos:
— Fico com os de Elis e Gal. Você sempre foi mais Bethânia...
Ou o atestado definitivo de que já não existe mais nada:
— Por que tá levando o Acabou Chorare?
— Foi presente de Dia dos Namorados, lembra?!
— Pois é, mas se eu soubesse que a gente ia se separar, te dava um Fábio Jr.


Se antes os discos serviam como álibi para o desfecho de um caso, hoje a falta de objetos de valor estimativo para dividir parece ter transformado o fim do amor num jogo sem regras. Não basta mais decidir quem fica com os LPs de Chico Buarque — tem gente querendo de volta até o que não se pode tocar.


Se antes só se brigava por discos, cartas e fotos, agora o amor parece se desfazer em downloads e devoluções mais inusitadas. E assim chegamos ao caso de Richard Batista, médico de Long Island, nos Estados Unidos, que levou o “Trocando em miúdos” — o hino buarqueano da separação — ao pé da letra.


Segundo o New York Post, quando a esposa, Dominic Barbara, precisou de um rim, ele não titubeou: doou. Só não contava que o casamento não sobreviveria ao transplante. Recuperada, Dominic resolveu engatar uma amizade — digamos, reconfortante demais — com o fisioterapeuta. Richard, traído, pediu o divórcio e, de quebra, exigiu o rim de volta ou uma indenização de US$ 1,5 milhão.


A Justiça negou o pedido, alegando que órgãos não entram na partilha de bens. O rim agora era dela, ponto final. E, convenhamos, arrancar o órgão para devolução soaria um tanto medieval.


Ainda bem que Chico e Francis nunca imaginaram algo parecido nos anos 1970. Do contrário, no sarapatel de sentimentos envolvendo coração, fígado e rins, a letra de Trocando em Miúdos poderia terminar com um pragmático:
“Fico com o disco do Pixinguinha, sim
Mas se eu soubesse que tudo terminaria assim
Doaria só metade do rim...”


Se a moda pega, logo vai ter gente exigindo de volta não só os discos, mas abraços, beijos, carícias e até os “eu te amo” cheios de desejo sussurrados ao pé do ouvido. E, claro, tudo corrigido pela inflação.


E não duvidem: daqui a pouco, os casais talvez nem precisem mais de advogados. Bastará um aplicativo para calcular a depreciação emocional do relacionamento, reaver arquivos sentimentais deletados e, quem sabe, propor a devolução parcelada de orgasmos não compartilhados. No fim, o amor, que um dia foi eterno enquanto durou, será só mais um contrato com cláusula de rescisão automática, garantia estendida contra danos afetivos e indenização proporcional ao tempo desperdiçado.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Fugindo pro inferno


Um cinegrafista que capturava imagens do fundo do mar nunca imaginou que seu grande momento de fama viria com um peixe que, ironicamente, passou a vida fugindo dos holofotes. Pois foi exatamente isso que aconteceu recentemente, quando pesquisadores da ONG Condrik Tenerife avistaram um espécime do temido Melanocetus johnsonii  o peixe-diabo-negro  nadando em águas rasas, nas Ilhas Canárias.

O evento, sem precedentes, foi recebido com a seriedade típica dos fóruns de internet: teorias conspiratórias brotaram como larvas de mosquito-da-dengue em pneus descartados nos lixões.


Foto: Reprodução / Divulgação / ONG Condrik Tenerife / Perfil Brasil

— Se esse bicho subiu, é porque algo terrível está para acontecer — decretou um profeta do apocalipse digital.
— Concordo! Se ele apareceu, é porque o inferno lá embaixo ficou pior — sentenciou outro, com uma lógica digna de reunião corporativa na véspera do Carnaval. 

Os vídeos do bicho feio viralizaram, e foi aí que a coisa descambou de vez. Bastou alguém lembrar que um abalo sísmico chacoalhou o Caribe dias depois, e pronto: estava estabelecida a conexão telepática entre peixes das profundezas e placas tectônicas. Para os especialistas das redes sociais, o fim do mundo começara com um peixe-diabólico que se cansou do anonimato. 

Um amigo meu, cronista bissexto e cearense, me enviou o link da notícia com um comentário provocativo:

— Tá aí, cara, até o diabo, quando menos se espera, busca a luz...

Pensei em responder com um emoji apreensivo, mas antes que eu apertasse o botão, outra mensagem pipocou na tela: a capa da Forbes. A manchete destacava um primata descascando sua banana ao lado de uma reflexão indigesta:

"Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto os outros morressem de fome, os cientistas tentariam entender o que há de errado com ele. Mas quando um humano faz isso, o colocamos na capa da Forbes."

A conexão foi instantânea. Talvez o peixe-diabo-negro tenha subido porque percebeu que o verdadeiro inferno não era lá embaixo. De repente, olhou para o andar de cima e viu um czar branco deportando imigrantes como se fossem bagagens extraviadas, magnatas monopolizando logaritmos e CEOs erguendo impérios sobre vales de lágrimas e miséria. Sem alternativas, nadou em direção ao sol, na esperança de encontrar dias ruins, mas pelo menos iluminados.


Os cientistas logo trataram de oferecer uma explicação mais racional:

— Provavelmente estava doente — apontou um biólogo da UFMG.
— Não há evidências de que seja presságio de tsunami — garantiu outro.


Também destacaram um detalhe biológico: era uma fêmea — sim, uma fêmea! — e sua bioluminescência a diferenciava dos machos da espécie, que, numa reviravolta evolutiva, vivem como meros apêndices grudados ao corpo delas.


No fim, o peixe diabólico não resistiu. A pressão atmosférica lhe foi fatal, e seu corpo foi recolhido pelo Museu de Natureza e Arqueologia de Tenerife. Enquanto isso, no abismo, seus familiares talvez se perguntem se ela fugiu para curtir o Caribe com uma garoupa ou um robalo. Tudo é possível nos dias de hoje.


No fundo — no fundo mesmo — talvez tenha sido melhor assim. Se tivesse sobrevivido, logo seria convidado para dar palestras sobre resiliência em eventos corporativos, patrocinados por fintechs que prometem democratizar investimentos enquanto cobram taxas que fariam um tubarão corar.

Aliás, não duvido que algum guru da autoajuda já tenha transformado essa breve incursão à superfície em um novo best-seller: "A luz que há no abismo: lições de superação de um peixe que desafiou seu destino". Com direito a TED Talk e legendas motivacionais em posts do LinkedIn.

Por via das dúvidas, se algum dia eu estiver aqui, relaxando nas águas mornas da Enseada da Ponta Verde, em Maceió, e encontrar um bicho feio desses nadando na vertical, não vou me preocupar com sinais apocalípticos. Provavelmente, só se cansou da escuridão e resolveu tentar a vida de coach no Nordeste.

Neste mundo onde qualquer um pode virar influencer, o inferno já não precisa de chamas. Ele se ilumina com flashes, números inflados e promessas vazias. Ou, quem sabe, o peixe só tenha entendido antes de nós que o verdadeiro abismo não está nas profundezas do oceano, mas na superfície — onde o monstro da ambição engole tudo o que vê pela frente. Mais do que qualquer criatura das trevas.

 

quarta-feira, 5 de março de 2025

Startup da paixão

Vejam vocês como é a vida. Soube de um jovem casal que trocou as juras de amor por reuniões de trabalho em home office. Ele, CFO das finanças domésticas. Ela, CEO das operações logísticas. No início, tudo era promissor: lua de mel, investimentos em viagens e jantares românticos, projeção de lucro afetivo a médio prazo. Mas, com o tempo, a rotina engoliu os dividendos da paixão, o negócio esfriou e o desejo – esse acionista inquieto – ameaça vender sua participação.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


A internet, esse oráculo do século, ensina que casamento já foi apenas um contrato de conveniência: comida na mesa, herdeiros e disposição para tocar o projeto, na saúde e na doença... O amor veio depois, quando Freud abriu a caixa-preta das angústias humanas e as relações deixaram de ser apenas uma questão de sobrevivência. Mas a régua subiu: além de fiel, um parceiro precisa ser engraçado, sensível, sexy – e, de preferência, não esquecer a toalha molhada na cama.

 

O problema é que esse negócio afetivo desanda sem inovação. Entre boletos, reuniões e dilemas gastronômicos (“carne ou peixe? pizza ou sushi?”), a fantasia do relacionamento apaixonado mofa no fundo do armário, junto com as roupas que um dia serviram. 


Conversar, dizem os especialistas no assunto, os casais conversam. Oito horas por semana, em média. Mas boa parte desse tempo se perde na planilha invisível das obrigações: quem lavou mais louça, quem recolheu o lixo, quem varreu a sala... E, na dúvida entre dar atenção à cara-metade ou ao cachorro, um terço opta pelo óbvio – afinal, cachorro nunca late um “a gente precisa conversar!”.

 

O saldo dessa encrenca? Um cheque especial de afetos no vermelho. Um reclama do colesterol, o outro do preço do café. Um lembra da conta de luz, o outro das marcas do amor que sumiram dos lençóis. E a matemática do desejo é ingrata: para cada desentendimento, garantem os entendidos, são necessárias cinco interações positivas. Mas quem tem tempo para isso, quando a Netflix recomenda uma nova série imperdível?

 

Então o desejo faz o quê? Troca de roupa e vai dar uma voltinha. Foge para grupos de caminhadas ou pedais, botecos da moda ou, pior, para o conforto anestésico do celular. Nada disso é um desastre – toda individualidade precisa de espaço, claro. O problema é quando o casamento vira apenas um projeto de estabilidade, um arquivo de rancores que se acumulam como mensagens não lidas. E daí, para o desinteresse mútuo, é um pulo.

  

Desejo e novidade são crias da mesma costela, se bem que muitos casais insistem nas mesmas viagens, nos mesmos restaurantes, nos mesmos pijamas esburacados, como se nunca tivessem ouvido o alerta de Chico Buarque: “Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã…” Depois, estranham quando a chama vira brasa e a brasa, cinza.

 

Não sou consultor de crises sentimentais, mas talvez funcione parar de esperar que o desejo caia do céu como um passe de mágica. Criar momentos sutis. Abrir um vinho ou preparar um risoto, um espaguete. Sussurrar (ou escrever) algo bonito quando o outro menos espera. Reservar meia hora por semana sem ser mãe ou pai – apenas amante, em estado positivo e operante.

 

Porque desejo não é boleto em débito automático. Se um espera pelo outro e o outro aguarda um milagre dos céus, a relação vira reunião de condomínio, onde todo mundo dá pitaco, mas ninguém quer ser síndico. E o desejo também precisa de espaço. Mais do que isso, de treino. Ninguém corre maratona sem preparo ou mantém o tesão sem prática. É como dizia meu avô: “se não arejar a terra, a espiga de milho vem rala”.

 

Se o negócio está mais para planilha do que para poesia, passou da hora de um “reboot”. De fechar as abas mentais e atualizar o sistema. Criar um protocolo de emergência antes que o desejo venda a sua participação e, pior, reinvista no concorrente.

 

Porque a coisa deixou de ser contrato de longo prazo com cláusula de estabilidade. Virou uma startup volátil, arriscada, que exige inovação constante. Se ninguém tomar a frente, o desejo faz o que sempre fez: abre o capital, procura um sócio mais arrojado e se desfaz da sociedade. E aí, nem adianta mais apelar para consultoria. Romance sem investimento quebra – por falência múltipla dos pequenos gestos que sustentam qualquer relação.

O mercado não chora. O amor, sim. Se nada for feito, o desejo segue a lógica do capital: busca novas apostas. E quando menos se espera, já não existe doce lar, mas um espaço para alugar. Um cheiro que ficou no travesseiro. Uma canção que machuca. Sem dó.

 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Segue o jogo...

Nesta quarta-feira, 26, celebro 67 fevereiros, início de uma nova página na minha existência. Uns dirão: “um menino, ainda!”, enquanto outros, com os pés fincados na realidade, comentam: “descendo a ladeira, hein?!” Millôr Fernandes diria: “Qualquer idiota consegue ser jovem. É preciso talento pra envelhecer.”

Alguns me perguntam: por que escrevo? Escrevo porque preciso conversar com amigos e amigas, mesmo que virtualmente, e deixar rastros de momentos em que pensei, senti e vivi com intensidade. E você? Já refletiu sobre o que tem deixado de si?


Ilustração: Álbum de família


Em 1970, em Maceió, ao lado do meu irmão Agostinho – ou Nena, pois minha língua não acertava “nenê” –, antes de brincar com as palavras, mergulhávamos numa outra arte: fabricar botões para o futebol de mesa. Nossa alquimia usava ingredientes simples e, ainda assim, perigosamente poéticos. Numa panelinha de leite em pó, untada com sabão, misturávamos pedaços de plástico rígido – tampas de remédio, retalhos de cano, lanternas quebradas – e, sob o fogo tênue de uma lamparina, o ordinário se transformava em pura magia. Depois, políamos com folhas de cajueiro bravo e, com flanela e fragmentos moídos de azulejos, fazíamos brilhar o que fora descartado.

Antes dessa alquimia, em União dos Palmares, experimentamos uma breve temporada dos botões de quengo de coco, logo após a fase passarinheira em que engaiolávamos canários, curiós e galos-de-campina, como se a beleza e o canto pudessem ser aprisionados. Depois surgiram os botões de capas de relógio e de acrílico – o mítico “vidro inquebrável”, que parecia imune ao tempo.

Aprendemos juntos, então, que viver é um eterno aprender e desaprender. Hoje, duvido que ousássemos arrancar um pedaço daquela janela de acrílico rachada do ônibus da linha Ponta da Terra – Ponta Grossa, desembarcando às pressas, sem pagar passagem, mesmo com o passe estudantil amassado no bolso.

Nem com uma serra de canos nos atreveríamos a recortar quadradinhos, arredondar as quinas do batente do quintal e, entre dois discos meticulosamente alinhados, fixar a foto de um craque recortada da “Placar” – um batismo laico de ídolos. Quem não se lembra do número 10 dos grandes clubes – Pelé, Tostão, Rivellino, Ademir da Guia? Em seguida, Zico e Roberto Dinamite inaugurariam uma nova era, enquanto nós, artesãos do futebol de mesa, lutávamos para tornar o “10” o adversário mais temido. Com palheta ou pente em punho, olhar fixo e respiração contida, alertávamos: “Coloque-se!” E, em resposta, o adversário implorava aos deuses do futebol que seu goleiro – uma caixa de fósforos recheada com grãos de chumbo – evitasse o gol.

“Dez segundos pra acabar... Último chute!”, avisava o árbitro imaginário. E o mundo aguardava o apito final.

Às quartas-feiras, nossa rotina nos levava ao mercado público da Levada, onde comprávamos carnes, frutas e raízes, movidos pelo desejo quase sagrado de garantir a nova edição da “Placar”. Da lista de compras, separávamos o trocado que sustentava nossa dose semanal de futebol impresso. Nossa mãe, imersa no desafio de cuidar de nove filhos, não notava o pequeno confisco; enquanto nosso pai, com olhar cúmplice, compartilhava o entusiasmo silencioso pela leitura.

O cheiro da revista ainda pulsa em nossas narinas, evocando não só uma revista, mas o elo que unia os rachas nos campinhos, as noites de domingo diante da TV esperando os gols do final de semana e as épicas disputas de botão.

Numa dessas idas ao mercado, um camelô, com sua banca improvisada, revelou-nos um segredo quase mágico: bastava espalhar, com um chumaço de algodão, uma mistura de álcool e gasolina sobre uma folha de papel para que as imagens da “Placar” se transformassem num passe de encantamento. Assim nasceram nossos jornais – eu editava o “Destaque”, que apenas Nena lia; ele, o “Jortebol”, exclusivo para mim.

Nena tornou-se um fanático são-paulino, embalado pelo bicampeonato paulista de 1970-71, enquanto eu, contagiado pelo entusiasmo do nosso pai e pelo título carioca do Vasco, forjava minha seleção com Buglê, Valfrido e Silva. As partidas eram intensas e, logo, a guerra de narrativas se instaurava: cada um redigia sua versão do jogo, alinhando à régua as notícias escritas com esferográfica, enquanto as imagens da “Placar” serviam de pano de fundo. O resultado era o mesmo, mas os fatos se desdobravam em três versões: a minha, a dele e a verdadeira.

O tempo passou. Mudamos e o mundo se transformou. Não nos tornamos escritores, jornalistas ou “game designers” (ainda nem existiam Microsoft, PlayStation ou Xbox). Viramos bancários, como nosso pai. Aprendemos que cada escolha traz ganhos e perdas – e que, enquanto o apito final não soa, o jogo continua. 

Hoje, aos 67 anos, sigo em campo. Já marquei gols, perdi pênaltis, ganhei abraços e levei pontapés, mas a bola ainda rola nos gramados da vida. E, quem sabe, o próximo chute, a dez segundos do fim, seja o mais memorável de todos. Coloque-se! – porque o jogo ainda não acabou.

O peso do sim e o doce da culpa

Ilustração: Uilson Morais (Umor) Durante anos, os ovos carregaram o rótulo de vilões das artérias. Um só — dos grandes, de gema graúda — vin...