quarta-feira, 14 de maio de 2025

Ladrão de sanfona




Ilustração:  Dedé Dwight


Ano passado, um ladrão espalhou luto musical debaixo de muitos telhados mineiros. Um especialista — desses que não roubam qualquer coisa — mirando no fole sagrado dos mestres do interiorzão. Chamava-se Célio de Menezes, 59 anos, mas na bandidagem atendia por Zé do Queijo. Nome inofensivo, não fosse a trilha de desencanto que deixou em mais de trinta cidades. Sessenta sanfonas furtadas até a polícia desafinar de vez a melodia do crime.


O golpe era simples como dançar arrasta-pé: chegava se dizendo músico errante, fã de Dominguinhos, à procura de quem precisasse de um sanfoneiro pra animar festas. Falava grosso, citava nomes, tocava a senha do coração de quem vive da música. Ganhava confiança, pedia a sanfona “só pra dar uma ensaiada” ... e sumia no mundo como refrão esquecido. Quando a lábia desafinava, subia o tom com métodos menos musicais: ameaças. Sete anos nessa turnê criminosa.


Há algo cruel, quase desumano, no roubo de um instrumento. Não é só couro, madeira e metal que se perdem, mas ilusões, lembranças, sons que jamais serão ouvidos de novo. Quantas sanfonas não carregavam, além de teclas e baixos, o fole suado de uma vida inteira devotada à música? Cada roubo foi sequestro de um punhado de sonhos — e sonho feito refém, a gente sabe, é resgate difícil de negociar.


Foi a filha de um sanfoneiro quem desmascarou o ladrão. Reconheceu o instrumento do pai num anúncio nas redes sociais. Um arranhão aqui, uma tecla amarelada ali, marcas que nem o tempo apaga. A denúncia levou à captura do criminoso, e o destino dos instrumentos veio à tona: Rio de Janeiro, onde um receptador desmontava as relíquias e vendia as entranhas. Cada sanfona rendia sete, oito mil reais — sem contar o prejuízo sentimental, que dinheiro nenhum cobre.


Dizem que todo roubo revela tanto sobre quem o comete quanto sobre quem o sofre. E, pensando bem, também fui responsável por um — embora mais simbólico.


No sertão paraibano dos anos 1960, tentei ser digno de uma sanfona. Comprada em loja, com nota fiscal e tudo. Mas nunca fui íntimo delas, nem de qualquer outro instrumento. Se dependesse de mim, Zé do Queijo teria que repensar a profissão — talvez tentasse a sorte como açougueiro, camelô, funcionário público ou, quem sabe, se arriscasse em crimes de menor musicalidade.


Minha desarmonia com a música não foi por falta de incentivo. Meu pai, bancário por ofício e boêmio doméstico por vocação, tinha seu ritual nas manhãs de sábado: cervejinha gelada numa mão, enceradeira na outra, deslizava sobre mosaicos ao som de Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e outros mestres. Depois, cuidava das margaridas e das rosas no jardim com o mesmo carinho devotado à mulher da vida dele.


Talvez, ao me ver fascinado por aquelas cenas, tenha enxergado no filho um prodígio musical na prole. Apostou alto: uma sanfona de 80 baixos e uma professora para me iniciar nos mistérios do Método de Acordeão Mário Mascarenhas.


Foram quatro meses de tortura. Eu, travando batalhas inglórias contra bemóis e sustenidos, enquanto o peso da sanfona esmagava minhas costelas e pernas magras, e a lentidão dos ponteiros do relógio da casa da professora fazia inveja à eternidade. Lá fora, o rock’n’roll já cochichava nos meus ouvidos — Beatles, Jovem Guarda — e eu queria mesmo era uma guitarra elétrica. Algo inaceitável para um pai amante da música genuinamente brasileira.


Optou-se por não insistir com as aulas — e, não vou negar, fiquei bastante contente. Preferia criar passarinhos, jogar bola, roubar goiaba, tomar banhos de açude, chuva ou rio, zoar os irmãos.


Só algum tempo depois entendi: tem pais que projetam nos filhos os sonhos que nunca realizaram. O meu, que nunca jogou futebol, nunca montou a cavalo, nunca nadou, nunca pedalou, nunca tocou um instrumento, viu no filho mais velho a chance de quebrar a sina. Quase deu certo.


Ao roubar sanfonas, Zé do Queijo silenciou músicos e sepultou esperanças. Eu, sem querer, fui cúmplice de outra espécie de roubo: deixei que uma sanfona — comprada a delírios e prestações — levasse embora o sonho de meu pai de me ver tocando um baião, um bolero, um forró.


Quantos de nós, sem querer, já não silenciamos o sonho de alguém? Do pai, da mãe, dos avós... Gente que só queria tocar bonito a vida pelos nossos dedos — e teve que se contentar com o silêncio.


Às vezes, a gente nem percebe quando vira ladrão dos sonhos alheios. E esse tipo de roubo nem cadeia dá. Só arrependimento, desgosto e saudade.

26 comentários:

  1. Sou apaixonada por sanfona, acordeom.. meu pai até me deu um scandalli… mas, magrela feito vara-pau, não aguentava o peso… desisti dele com muita frustração (isa musa)

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  2. Não sei de que época, mas lembro de uma campanha publicitária que dizia: “Quem lê viaja”.
    Fico imaginando quantas viagens vão pelas cabeças dos leitores dessa crônica. Eu mesmo fiz umas três ou quatro, mas fui mais longe ao lembrar de um moço chamado Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Fiquei imaginado que poderíamos não saborear a beleza infinita de um “viver é melhor que sonhar” e tantas outras poesias musicais daquele moço se não acontecesse um tal encontro casual entre ele e Elis Regina.
    Entre sonhar e viver há um mistério impossível de explicar. Zé do Queijo é apenas um personagem desse enredo misterioso.

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  3. Que delícia de texto e de enredo.
    Comecei bem minha quarta feira.

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  4. Zé do queijo teve seu leite azedado e foi desmascarado após causar tanto sofrimento às suas vítimas, deixando o vazio da música e vários sonhos acalentados.

    Fernando Pessoa, já dizia que:

    *"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso."*

    Complicado mesmo é ganhar uma sanfona, sem ter ganhado o dom e ver que o cronista não tinha o sonho de tocar um acordeon, mas de ouvir e apreciar os mestres das notas em ação.

    Alguns sonhos imperfeitos podem ser refeitos, principalmente aqueles roubados de forma não intencional, a exemplo de amor e expectativas não correspondidas nas diversas modalidades de relacionamento, apesar de terem sido calados nas dobras do tempo.
    Simbora, rumo à próxima quarta-feira para o deleite com a próxima crônica. 🤝🎯

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  5. O sanfoneiro, pelo jeito, é antes de tudo um forte. Eu sou completamente apaixonado por sanfona e ia ser lindo se tivesse te conhecido já tocando, pois com certeza iríamos formar um baita trio forrozão. Dedé

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  6. Caro Hayton, bom dia!

    Sua crônica é uma melodia que ressoa fundo na alma, mais do que um texto, é um convite à reflexão.

    O paralelo entre o roubo físico e o roubo silencioso dos sonhos me tocou profundamente. Quantas vezes, sem perceber, apagamos esperanças? E quantas vezes nossos próprios sonhos foram calados por outros?

    Seu texto não apenas conta uma história—ele nos provoca, nos instiga a olhar para dentro, a compreender melhor as marcas que deixamos e as que carregamos. O autoconhecimento nos dá ferramentas para minimizar essas perdas e, mais importante, nos ensina a ajudar a nós mesmos e aos outros a viverem seus verdadeiros sonhos.

    Obrigado por compartilhar essa pérola!

    Abraços, Ulisses

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    1. Eu que agradeço o privilégio de ver o texto receber uma manifestação generosa deste quilate, meu amigo!

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  7. Quanto lirismo pra falar de um roubo.
    Aliás, me corrijo: pra falar de sonhos. Quanto a instrumentos musicais, sou do time do autor: um fracasso em tudo!
    Mas também projetei sonhos em meus filhos, no caso em relação a jogar futebol profissional. Acabou não saindo como eu e meu filho queríamos, mas foi interessante tentar até onde deu!
    O que seria da vida sem sonhos?

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    1. Escrevi 800 palavras quando, a rigor, teria dito tudo assim:
      “Quantos de nós, sem querer, já não silenciamos o sonho de alguém? Do pai, da mãe, dos avós... Gente que só queria tocar bonito a vida pelos nossos dedos — e teve que se contentar com o silêncio.”
      Obrigado, Riede, por sua atenção!

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  8. Ah!!’ No Método Mascarenhas tinha a música Baratinha Tonta. Minha prima já tocava acordeão e eu querendo aprender. Ela se prontificou a me ensinar, nas férias. E a tal Baratinha Tonta me colocou pra fora do time dos acordeonistas. Eu errava uma nota e ouvia:”Você está a própria” . Desisti. O irmão dela desistiu também, mas foi por causa da Kalu. Kkk tinha rima. Mas só você, Hayton, pra me trazer de volta tão boas lembranças numa crônica. Nelza Martins

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  9. Mais uma crônica sensacional.

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  10. A crônica prova que não devemos escolher as profissões dos nossos filhos. Que sejam felizes em qualquer atividade. Em Senhor do Bonfim tive o prazer de "tocar"(colocar a mão) na sanfona do eterno Luiz Gonzaga.

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  11. Como é bom reencontrar o Hayton às quartas feiras com suas palavras que nos levam a relembrar sonhos, não importa se realizados ou não! Importante é sempre sonhar.

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  12. O texto nos leva a refletir sobre como seria "viver sem sonhar". Algumas vezes optamos por inibir, ao invés de incentivar o sonho alheio. Show de crônica!!!

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  13. A linda crônica tem os bemóis e sustenidos que vc buscava na sanfona… Certamente não roubou os sonhos de um pai amado, mas os traduziu para seus talentos tão ricamente desenvolvidos! Aposto que ele sentiu-se realizado em vc! Sorte de quem tem sonhos alterados assim…

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  14. Roberto Rodrigues Leite Bezerra14 de maio de 2025 às 08:21

    Hayton, ultimamente você anda profetizando. Cuidado. Você será cobrado por isso. Vi documentários sobre ídolos como: Belchior e Renato Russo. Em comum, um delírio. As pessoas em geral, tendo presenciado tanta sabedoria, tantas frases filosóficas -- e ainda rimadas --, sempre que os sábios artistas falavam, esperavam novas pérolas do pensamento humano. E isso lhes trazia: dor, cansaço, pressão e, por conseguinte, grande estresse. Hayton, você anda fazendo pensamentos muito eloquentes e cheios de sabedoria. Mas não se cobre -- e desconsidere as cobranças. Apenas crie.

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  15. a sanfona me lembra do Rio Grande do Norte

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  16. Hayton como sempre despertando um bom sentimento, uma saudade boa... Quem nunca teve um desejo semelhante ou foi estimulado a realizar desejos guardados.
    Valeu Hayton

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  17. Bela crônica. Também tive frustração, minha, não dos pais. Na época da jovem guarda, achei que podia aprender a tocar violão e ser tão bom quanto eles.
    Comprei violão, entrei na escola de música, mas não passei de alguns acordes. Logo entendi que não tinha a tal vocação. Parei, frustrei-me.
    Abraço
    Vfm

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  18. "Quem roubou minha sanfona foi Mané, foi Rufino, foi Romão
    Quem roubou minha sanfona eu bem sei foi alguém sem coração" O roubo de sanfona já inspirou Luiz Gonzaga e agora inspira o amigo cronista. Achei o final meio melancólico, o que não diminui a grandeza do texto. Não sei nada de Filosofia, nem de Édipo ou Freud, mas o autor não pode se culpar por não realizar os sonhos dos pais. Cada um tem seu tempo, sua vida e suas escolhas. Mesmo que pudéssemos, será que seriamos felizes em viver os sonhos de outrem? E nossos próprios sonhos, repassaríamos pra nossos descendentes? Talvez se criasse uma cadeia de sonhos não realizados e vidas incompletas, talvez infelizes... Não sei, bem. É complexo... Pra desanuviar, fico com o excelente comentário do amigo @Oceano Salvador ( que é um cronista dos bons, só que pensa que não é: " Alguns sonhos imperfeitos podem ser refeitos, principalmente aqueles roubados de forma não intencional, a exemplo de amor e expectativas não correspondidas nas diversas modalidades de relacionamento, apesar de terem sido calados nas dobras do tempo. "

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  19. Poxa, com um nome tão simpático, o sujeito deveria ser perdoado! Ainda mais que não roubava queijos! Isso, sim, seria inqualificável.
    Agora fico pensando mesmo é no quanto perdemos ao não termos um “Mario Zan da Paraíba e adjacências”!

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  20. Sua crônica, caro Hayton, emociona ao transformar uma lembrança pessoal em reflexão universal sobre os sonhos dos pais. Relembra, com sensibilidade, a sanfona que recebeu do seu pai, comprada com sacrifício e carregada de esperança. Ao não conseguir aprender o instrumento, sente-se como se tivesse frustrado o sonho paterno — uma espécie de “roubo” simbólico, parecido com as frustrações ocasionadas pelo Zé do
    Queijo.

    Valorizou sobremaneira a relação entre pai e filho, mostrando como o afeto se manifesta nos gestos mais simples e nos desejos não realizados. Mesmo sem tocar sanfona, voce devolveu ao seu pai, com palavras, a homenagem que não conseguiu fazer com música. Parabéns uma vez mais!

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  21. Tive uma experiência semelhante com o violino... mas, não houve indução pela escolha do instrumento. Foi escolha própria, o que deu muita alegria à minha mãe, amante de música clássica (eu idem). No entanto, não vingou... como violinista sou um ótimo "escutador" de orquestra. E só! Obs.: Tenho pena de quem tem estudante inicial de violino dentro de casa. Só não deve ser pior do que estudante de bateria! rsrs

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  22. “Cada roubo foi sequestro de um punhado de sonhos.”

    “Ao roubar sanfonas, ... silenciou músicos e sepultou esperanças.”

    “ ... a gente nem percebe quando vira ladrão dos sonhos alheios.”

    Belas frases de mais uma bela crônica!

    Luiz Andreola

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  23. Eu também roubei o sonho do meu pai, de ocupar uma posição do meio para frente no Vasco da Gama. Infelizmente não tive talento nem aptidão física para realizar esse sonho. Mais tarde, tentei fazer com que meu filho se apaixonasse pelo Vasco, mas a má fase do time, que já dura muitos anos, e a concorrência com eletrônicos e games digitais acabaram levando embora esse meu sonho herdado.

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  24. ADEMAR RAFAEL FERREIRA14 de maio de 2025 às 09:57

    Neste texto além da comparação entre o roubo premeditado no caso de Zé de Queijo e o "furto" do sonho do investidor no músico mirim é possível identificar a capacidade que o autor tem em dar leveza a assuntos pesados. É muita criatividade em um nordestino só.

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Ladrão de sanfona

Ilustração:  Dedé Dwight Ano passado, um ladrão espalhou luto musical debaixo de muitos telhados mineiros. Um especialista — desses que não ...