agosto 20, 2025

Meia dúzia de diamantes

 

MEIA DÚZIA DE DIAMANTES

Hayton Rocha

 

O Vasco alcançou no último domingo uma vitória daquelas que não cabem apenas nas estatísticas, mas se alojam na memória como retrato inesperado da vida. Em pleno Morumbis, diante de mais de 54 mil testemunhas, o time carioca atropelou o Santos de Neymar por 6 a 0 – cinco gols em 16 minutos –, lavando a alma de uma torcida acostumada mais com o fel dos fracassos que com o mel das conquistas.

 


Em algum canto do firmamento, Pelé e Roberto Dinamite devem ter se entreolhado, incrédulos, como dois semideuses apanhados de surpresa pelo improviso dos mortais.

 

O primeiro tempo já trazia presságios de tsunami. Lucas Piton abriu o placar aos 17 minutos e, a partir dali, o Vasco tratou os contra-ataques como um cronista que descobre a palavra certa a encaixar: repetiu, insistiu, até se dar por satisfeito com o enredo. O Santos ainda ensaiou esperança com um pênalti, mas o VAR — essa praga eletrônica que anda matando de ansiedade o torcedor e transformando comemoração em gagueira — anulou o lance por impedimento na origem.

 

Na segunda etapa, não houve piedade. David acertou um voleio de cartilha, Coutinho ampliou com a serenidade de quem assovia um sambinha, Rayan converteu um pênalti que ele mesmo cavou, Coutinho voltou a marcar e Tchê Tchê fechou a conta abrindo um sorriso largo. Foi um massacre com direito a nota de rodapé na história.

 

A torcida santista, ferida na própria honra, virou-se de costas para o espetáculo. Gesto silencioso e ensurdecedor. Não era só protesto: era luto público por um time que, no segundo tempo, assistiu ao adversário dançar sem jamais encontrar o compasso. No fim do jogo, Neymar, chorando e sendo consolado por Fernando Diniz — treinador vascaíno — parecia a encarnação do improvável: a estrela mundial, reduzida a criança perdida no recreio, amparado pelo professor.

 

Confesso: fazia muito tempo que não via um nocaute tão impiedoso numa luta entre dois gigantes. Lembro de quando, aos 14 anos, vi pela TV o Botafogo aplicar uma indigesta meia dúzia no Flamengo, presente de aniversário de 77 anos do rubro-negro. Jairzinho, que marcou três vezes, fez um deles de letra que mereceu uma manchete inesquecível: “Na década da alfabetização, o Furacão mete um gol de letra no Flamengo.”

 

Nove anos depois, em 1981, o Flamengo de Zico devolveria a fatura: 6 a 0 no Botafogo, no “Jogo da Vingança”. Eram tempos em que a rivalidade ainda tinha certo romantismo — o ódio ficava restrito às arquibancadas, e a vingança podia esperar nove anos. Desde então, raras vezes vi um gigante machucar o outro com tamanha crueldade. Até o último domingo.

 

Porém o que mais me chamou atenção não foi o placar, e sim uma coincidência pessoal. Naquela tarde, recusei o convite de minha neta para acompanhá-la na compra de material escolar, aqui no hemisfério Norte. Foi por ela que, onze anos atrás, acelerei a aposentadoria para ajudá-la nos primeiros meses de vida. Foi a ela também que ensinei a contar nos dedos ao som da cantiga infantil: “Mariana conta 1, é 1, é Ana, viva Mariana...” — até o 10, como se a vida coubesse inteira na soma desses números.

 

Expliquei que ficaria em casa para ver o Vasco jogar, mesmo temendo um castigo dos céus. Afinal, Neymar estava em campo, buscando provar que ainda tem querosene na lamparina para voltar à Seleção. O Morumbis lotado parecia palco ideal para sua apoteose, e eu já me preparava para o possível vexame. Mas quando minha neta voltou, feliz, trazendo cadernos e livros, eu, incrédulo, revia o placar de 6 a 0. Foi inevitável pensar numa paródia da cantiga: “E o Vascão já fez 1, é 1... E o Vascão já fez 2, é 2...” — até chegar ao 6. Não me atreveria a cantar até 10, pois aí já seria esculacho.

 

O bom de ser vascaíno ultimamente é não carregar mais a ilusão de levantar taças todo ano. Aprendemos a celebrar pequenas conquistas, como quem guarda conchinhas na beira da praia, sabendo que a maré mais cedo ou mais tarde levará tudo embora. Mas domingo não foi conchinha: foi pérola rara, reluzindo como meia dúzia de diamantes.

Quando minha neta voltou da papelaria, não fui eu a ensiná-la de novo a contar. Mas foi ela quem me fez lembrar: às vezes a vida também sabe somar seis, mesmo quando muitos só esperam zero. 

28 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA20 de agosto de 2025 às 05:52

    Um resultado que merece um texto de tamanho compatível. No caso de Botafogo X Flamengo tem um fato que somente a "ironia carioca" seria capaz de criar. Depois do primeiro jogo a torcida do Fogão sempre levava uma faixa escrita: "Nós 6ostamos de vocês." para o Maracanã em dias do clássico. Ao final do jogo que o Flamengo devolveu a goleada eis que surge uma faixa na torcida do Mengão: "Nós também 6ostamos de vocês ". O número "6" no lugar do "G" é coisa de "geraldino". Viva o futebol sem VAR e sem BET.

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  2. Gastou os gols do resto do campeonato nesse jogo

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  3. Olá, Hayton, acordei cedinho para me preparar pra sua Crônica da madrugada e, surprise, descobri um Cronista do Futebol ⚽️ Improvável! Como Rubro Negrão, morei no Recife ( Sport), em Salvador ( Vitória), no Rio( Flamengo), estou tentado a comparar ao Choro brasileiro do 7 x 1 germânico! Vendo o nosso Neymar chorando, fui consolado pelo conselho do Governador Major Luiz Cavalcante, que aprendeu com o ZeFogueteiro de Capela: “ se tudo que subisse não descesse, o Céu estaria cheio de taboca de foguete 🚀 “

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  4. Fico imaginando a cabeça do torcedor fanático num momento destes. Se o caboclo tiver problemas com hipertensão, melhor ficar longe da telinha.
    Era melhor você ter aceitado o convite para comprar material com a netinha. 🤣
    Pensei que o time gostava de testar as emoções perdendo por 6 gols a cada 20 anos.
    Corinthians 7x1 Santos - 2005 e agora Vasco 6 x 0 Santos - 2025; mas neste meio teve Internacional 7x1 Santos - em 2023.
    Simbora Hayton, e que o troco dos 6 a zero, para lavar a alma dos torcedores, possa ocorrer nos próximos 20 anos.🤣🎯🥂

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  5. Meu caro Amigo Parahyba - Muito Bom Dia 🤝
    .
    “lavando a alma de uma torcida acostumada mais com o fel dos fracassos que com o mel das conquistas”
    .
    Quando digo que você está ficando ótimo, não minto.
    Porque essa tirada - do acostumada com o fel… - é para quem já apeou há algum tempo, da arquibancada dos bons.
    Confesso, fez-me lembrar o Grande Nelson Rodrigues.
    Parabéns, acompanhado de apertadíssimo amplexo fraterno.
    Paz e bem 🤝🫶🤝
    .

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  6. Dizem que os momentos mais felizes da vida são inesperados. Surgem de repente, quando a gente está meio distraído pensando em outras coisas. Só bem mais tarde vamos nos dar conta.
    Uma vitória deste tamanho merecia uma crônica. Como sempre, muito bem escrita. Adorei a ideia de associar ao canto infantil!
    Eu tô esperando uma do meu Cruzeiro deste nível. Talvez por estar esperando é que ela não aconteça!

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    1. Sergio Riede, talvez sem querer( ou não), citou o mestre Guimaraes Rosa: " Felicidade se acha em horinhas de descuido..."

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  7. Eu gostava de assistir futebol no tempo em que jogavam pela camisa que vestiam e não pelo dinheiro que entra no bolso, pra mim, perdeu o encanto. Entendo qudd eu a carreira é curta e precisam assegurar o futuro, e é justo. Mas é desproporcional. Os jogadores viraram “objetos” nas mãos de empresários que os utilizam e descartam igual a papel higiênico usado. Perdi o entusiasmo de ser torcida. Nelza Martibs

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  8. ROBERTO SANTOS FERNANDES20 de agosto de 2025 às 06:43

    Duplo parabéns! Pelo Vasco e pela crônica.

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  9. Uma vitória gigantesca, dessas para serem emolduradas com fotos de cada gol e abaixo, para transcrição em texto, uma crônica à altura do feito, tal qual a registrada nesta quarta-feira! Bravo!!!

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  10. Só discordo qndo vc diz: "fazia tempo que não via um mocaute tão impiedoso entre dois gigantes" kkkkkk pq ano passado teve um 6x1 impiedoso que não faz tanto tempo assim kkk excelente crônica novamente, parabéns

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    1. 6x0 é muito diferente de 6x1. Ou você não enxerga a diferença entre o 1 e o nada? Aliás, parafraseando o grande Nelson Rodrigues, diria que o Vasco surgiu no coração de seus torcedores 40 minutos antes do nada.

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    2. Não falei do 6x0 e sim do nocaute impiedoso kkkk 6x1 tb é um nocaute impiedoso kkkk

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  11. Mesmo eu também sendo vascaíno, acho que uma frase ficou incompleta:

    "Confesso: fazia muito tempo que não via um nocaute tão impiedoso numa luta entre dois gigantes" do passado.
    🤣🤣

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    1. Gigantes são atemporais, eternos. Aliás, já dizia o filósofo Kierkegaard: “A vida somente pode ser compreendida olhando-se para trás, mas somente pode ser vivida olhando-se para frente”.

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  12. Em meio a tantos gols, o amigo repetiu Jairzinho: fez um de “letraS.” Texto delicioso e imune a qualquer gagueira: pode comemorar!

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  13. Roberto Rodrigues Leite Bezerra20 de agosto de 2025 às 07:20

    Caro Hayton, penso que paixão é algo de muito bom na vida. Seja qual for a natureza. Embala o coração. Enche o ânimo e grava momentos inesquecíveis. Sua fala deixa transparecer esse mais que amor. Uma devoção. Saiba que é um forte alimento para uma vida longeva e feliz -- ainda que, apenas, de quando em vez.

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  14. O bacalhau estava muito salgado, a baleia não resistiu. Segura o "chororô"! O manto sagrado do gigante da colina tem muita semelhança com o da seleção alemã.

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  15. Foi bom. 6 a 0
    O Andrada está vingado daquela humilhação do milésimo gol do Pelé, com um pênalti que não existiu.
    Abraço
    VFM

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  16. Foi um momento lindo até para quem não é vascaíno, como eu, Dedé Dwight

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  17. Merecia mesmo esse texto para o Vasco. O futebol é uma caixinha de surpresas. Temos que abstrair as derrotas, mas quando vem uma super vitória assim, o que conta é o "último jogo". Parabéns Hayton!

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  18. Amigo HAYTON , chorei com NEYMAR e imagino o quanto sofreu . .C’est la vie !!🍀

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  19. Parabéns Vascaíno. Brilhante como sempre e mais inspirado do que nunca, Esse foi um momento tão marcante e também incrédulo para nós, vascaínos sofredores, que precisava ser eternizado. Viva o Vascão.

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    1. Por dever de justiça, preciso registrar que foi você, meu caro Fernando, quem me desafiou a contar como vi o memorável feito de domingo passado. Eu ainda estava em transe.
      Valeu demais!

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    2. Uma emoção destas precisa ser vivida e compartilhada.👏

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  20. Mesmo com um braço na tipóia, vou 'catando milho' no teclado, procurando letras e palavras pra dizer: " Mas que beleza, é uma crônica de futebol"! O bom de ser torcedor Vascaino e do tricolor pernambucano é que aprendemos a celebrar pequenas conquistas! Ta certo! No meu caso, com 'asa quebrada" estou celebrando cada palavra digitada, cada camisa vestida, cada cadarço amarrado... parece pouco. Não é!

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