O BOTÃO SECRETO
Hayton Rocha
A notícia de que Lúcia e Zé Alípio celebraram Bodas de Ouro sábado passado deixou feliz uma legião de amigos. Meio século casados é prova de que a vida pede amor, cuidado, entrega, renúncia... e algum botão secreto de paciência.

Por falar no tal botão secreto, quando alguém não nos convence no grito, logo apela para uma pesquisa. De preferência com sobrenome estrangeiro de pronúncia enrolada e pronto: argumento vira verdade revelada em tábua de mandamentos. Como, por exemplo, “publicada na Computers in Human Behavior pela Universidade de Heidelberg”.
Outro dia, li sobre um estudo desses. Dizia que 25 jovens entre 18 e 30 anos toparam passar 72 horas sem criticar a cara-metade. O número ímpar sugeria relações mais... flexíveis entre alguns deles. Nada de resmungos sobre toalha molhada na cama, a gaveta que ficou aberta ou a demora para escolher roupa. Três dias inteiros de abstinência conjugal.
Segundo o relato, o resultado foi tão impressionante que o cérebro dos participantes parecia em lua de mel perpétua, disparando hormônios como fogos de réveillon. Havia até gráficos provando que reclamar menos equivale a viver mais e melhor.
Por alguns instantes, acreditei. Imaginei casais salvos de farpas verbais, do divórcio e até de cunhadas e sogras, apenas fechando a boca por 72 horas. O casamento deixaria de ser contrato civil para virar programa de reabilitação neuronal.
Mas veio o rodapé da notícia: “se você acreditou, lamento, nada disso aconteceu”. A tal pesquisa falava, na verdade, de abstinência de celulares. Não de resmungos conjugais. Coincidência ou não, justamente quando a Apple lançava o iPhone 17, anunciado como grande revolução depois de anos de mudanças discretas.
A decepção não foi tão grande. Trocar uma queixa diária por uma olhadinha no celular a cada dez minutos dá quase na mesma: ambos liberam dopamina e corroem lentamente a sanidade.
Os alemães de Heidelberg — sempre eles, que já nos deram Beethoven, Beckenbauer e cerveja — reuniram 25 adultos para um retiro tecnológico. Durante 72 horas, podiam usar o celular só para funções vitais: estudo, trabalho ou aquele telefonema rápido para saber se os pais estavam bem. Nada de Instagram, nada de TikTok, nada de “bom-dia, grupo” no WhatsApp.
Resultado: o cérebro reagiu como o de quem larga álcool ou cocaína. O mesmo vazio, o mesmo tremor nas mãos. E depois, a mesma euforia, como se o organismo tivesse descoberto uma nova religião.
Não se sabe se é pra rir ou chorar. A ciência comprova o que qualquer avó analógica já dizia entre uma peça de bordado e outra: “meu filho, larga isso e vai brincar lá fora”. Só que, vindo de Heidelberg e publicado em inglês, a bronca vira paper— e rende congresso em resort cinco estrelas.
Agora, pense comigo: se desligar o celular por 72 horas já faz o cérebro valsar ao som do Danúbio Azul, imagine se a criatura largasse também redes sociais e debates políticos no X. Seria capaz de atingir o nirvana em menos tempo que um monge tibetano.
Mas sejamos realistas: ninguém topa. A geração plugada no carregador não aguenta cinco minutos sem checar a tela. Um maluco qualquer pode apertar o botão da 3ª Guerra e, mesmo assim, a prioridade será atualizar o feed. Afinal, se não postar o apito do primeiro míssil, como provar aos “seguidores” que ele aconteceu?
Os pesquisadores já deram a sentença: celular não é hábito, é dependência. Em clínicas de reabilitação, seria fácil imaginar a cena:
— “Olá, meu nome é Uaifone da Silva e estou há três horas sem abrir o Instagram.”
— “Força, Uai, você chega lá!”
Noto que a pesquisa funciona mais como espelho que novidade. Descubro que somos ratinhos de laboratório clicando em botões luminosos à espera de migalhas. Só que, ao contrário dos roedores, pagamos caro pelo dispositivo que nos escraviza — e ainda brigamos na fila pelo modelo novo.
Enquanto isso, sigo intrigado com a mentira inicial. Porque, convenhamos, 72 horas sem reclamar da cara-metade também seria um experimento revolucionário. Aposto que o cérebro reagiria do mesmo jeito, talvez até melhor.
O tal botão não está escondido em nenhum chip. Está na paciência miúda que costura os dias: recolher a toalha, engolir a queixa, o dedo que busca a tela. Lúcia e Zé Alípio descobriram isso cedo e atravessaram meio século de mãos dadas.
Nós, órfãos dessa sabedoria, seguimos implorando que algum engenheiro nos entregue, dentro de uma caixinha branca, aquilo que já existe dentro de nós — e que faz dois corações dançarem juntos.
Quer saber mais? https://astraeditora.com.br/o-silencio-das-tartarugas

Brilhante crônica, nobre Hayton.
ResponderExcluirEnquanto a tecnologia avança a passos largos e desvalorizando o contato humano eu sigo caminhando e contemplando, saudoso dos tempos antigos.
Simbora, a vida é um sopro e precisamos de mais conexão humana.
Primeiro, os parabéns à Lúcia e ao Alipio!
ResponderExcluirSegundo, há casais que estão juntos há mais de 30 anos e moram em casas separadas. Eu faço parte de um deles. Não prego o modelo pra ninguém. Pra nós, está dando certo. Se não elimina as possibilidades de troca de farpas aleatórias, pelo menos diminui o número de focos de discórdia: cada um guarda a toalha como quer, usa o tempo mais ou menos livremente, fica em silêncio quando acha mais conveniente, escolhe sozinho o que assistir, etc.
Terceiro, não resolvemos o problema da dependência do celular!
Você e Márcia nasceram há 10 mil anos atrás e não tem nada nesse mundo que não saibam demais. Como diria aquele "sábio", cada caso é um caso e vice-versa.
ExcluirSó lembrando: Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir também moravam em casas separadas. Embora mantivessem uma relação intelectual e amorosa por mais de 50 anos, optaram por não se casar nem morar juntos, rejeitando as convenções burguesas da época.
O tema é atualíssimo e nos faz refletir.
ResponderExcluirE gostei muito de sua comparação com meu casamento longevo.
Muito obrigado pela bela homenagem, amigo Hayton.
Que coisa boa é ser imortalizado na sua crônica.
Vou mostrar prá Lúcia e prá todo mundo.
Abração.
E aí… veja só eu, nas cinco da matina já procurando suas pérolas no celular
ResponderExcluirEsse assunto, muito vezes tocado em tom de brincadeira, é sério e tem tirado o sono de muita gente. "Telas" é o inimigo visível. O reor da crônica é para ser levado às vias de fato. Pratico a ausência de relas regularmente em espaços temporais menores: 24 horas.
ResponderExcluirBela crônica-homenagem, Hayton! A reflexão nela trazida é importantíssima, além de necessária, em tempos d'hoje. Não muito longe disso, temos visto as proibições de uso de celulares - ou até mesmo porte deste - em escolas de ensino fundamental e/ou médio: verdadeira necessidade, convenhamos.
ResponderExcluirNo campo da convivência a dois, como casal, hoje bem mais moderno e eclético, há um ponto a considerar, principalmente, o amor iniciado, vivido e presente entre ambos, sem descuidar, obviamente do respeito e tolerância que devem nortear essa permanência.
Costumo dizer que casamento é renúncia; cada lado renuncia a uma ou outra querência pessoal em favor da querência compartilhada e a vida seguirá entre jardins floridos, sofrimentos divididos, rispidezes de parte a parte, recuos estratégicos, consensos merecidos e, acima de tudo, aceitação de um pelo outro, como cada qual o é, sem qualquer senso de ganhei ou perdi em cada discordância, esta inevitável. Sou, de certo modo, um pequeno exemplo disso. Numa convivência de mais de meio século, desta guardada uma década de namoro, ainda sobrevivemos, sob o olhar piedoso de Deus, e celebrando a cada manhã, já que, nesta altura, não há lugar para esperar doze meses para comemorar. Nunca se sabe o dia de amanhã, não é mesmo?!
Os parabéns para o casal homenageado e para o cronista que nos premia, toda quarta-feira, com textos ricos como o de hoje.
Que legal meu amigo, meu parabéns, por tocar de forma leve no tema do excesso dereclamações e críticas, que destroem qualquer perspectiva relacional e atitudinal mais positiva. Um texto que nos faz relfetir sobre a epidemia do vírus Critucus-Reclamus Seletivus Permanentis em nossas vidas. Para conosco mesmo, para com os outros e para com tudo que tem na vida, azedando relações. Este casal aprendeu a relevar, a dar um desconto, a focar nas convergências, e a contabilizar as sobras, no lugar das faltas. e isto é sabedoria e maturidade emocional. Ontem, gravei o 2. Prorama da série PositivaMente, e, por pura obra do acaso, falei sobre o tema. Teus leitores, caso tenham um tempinho e interesse, podem navegar no Programa sobre o novo Vírus Comportamntal em https://youtube.com/live/1uR0PaLOYTs
ResponderExcluirCasamentos longevidade tem passado por casas separadas, quartos diferentes e outros acordos. Eu não dou conta disso, tenho que abrir os olhos e ver minha Dona e poder fazer um carinho. Talvez porque nestes 40 anos tenham ocorrido 3 cofee-breaks kkk
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ResponderExcluirExcelente crônica.
Essa questão de tecnologias e mudanças de hábitos carrega a minha imaginação pela fumaça do tempo.
Já pensou quando o automóvel ganhou ruas e estradas…
Penso que foi tanto objeto de desejo quanto o IPhone de hoje.
Parabéns a Lúcia e Zé Alipio.
A minha satisfação é que eu e Satiko estamos, a passos “largos” caminhando felizes para esse sonhado “POHDIUM”!
Paz e bem 🤝
Parabéns aos homenageados e que alcancem as bodas de diamante com saúde e lucidez.
ResponderExcluirGenial a conexão entre as táticas para um casamento perfeito e o uso da tecnologia!!! Mas, como abrir mão do celular se todas as quartas-feiras já sou acordada por ele que me traz sempre uma crônica espetacular?
Nelza Martins
Como sempre,show de bola,👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluir...Excelente, caro HAYTON! - Sem muitas "rusgas" já fechei 57 anos ao lado de dona TEREZINHA. Mas, confesso, 72 horas longe do celular não seria tarefa tão fácil...kkk. José Luiz.
ResponderExcluirO que me chamou a atenção nesta ótima crônica foi ua arquitetura sutil, quase um truque de ilusionismo narrativo. Ela começa nos oferecendo a metáfora mais antiga e nobre — a paciência como o alicerce de um amor que dura meio século — e, em seguida, usa essa mesma metáfora para nos fisgar na armadilha da pesquisa falsa. É como se o autor dissesse: "Vocês, modernos, só acreditam no que é validado por Heidelberg, mesmo que seja sobre o tema mais íntimo e analógico da vida: o casamento." Essa inversão de expectativas é brilhante, pois nos faz rir de nossa própria credulidade e de nossa fé cega na chancela acadêmica para assuntos do coração. A crônica transcende a mera observação; é um diagnóstico muito apropriado para a nossa época.
ResponderExcluirConfesso que a crônica me levou a refletir sobre a elegância perdida da arte de desviar o olhar. Vivemos implorando por "novas caixinhas brancas" que resolvam problemas que são fundamentalmente existenciais. É o mesmo mecanismo que vejo, por exemplo, na obsessão moderna por hacks de produtividade. Buscamos um algoritmo que otimize o ato de viver, quando a crônica nos lembra que a vida não é um código a ser decifrado, mas sim uma tapeçaria a ser pacientemente tecida. O verdadeiro "botão secreto" não é algo que apertamos, mas sim algo que decidimos não apertar: o gatilho da queixa, da distração ou do julgamento. É um convite eloquente à renúncia voluntária em prol da paz e da conexão.
Parabéns, Hayton, por mais uma excelente crônica.
A tecnologia nos trouxe os celulares e, de repente, ficamos viciados neles. Será que realmente não conseguimos mais viver sem? O que vem depois disso? Ninguém sabe ao certo.
ResponderExcluirSe na experiência de 72 horas sem celular, acrescentassem tambem, sem reclamações ou críticas entre os 25 participantes, será que conseguiriam resgatar um convívio mais humano? Ou de repente não saberiam o que fazer ou falar ?
Como diz a música: “Quem espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco ou morrer na solidão... é preciso saber viver.”
Parabéns, Hayton, por mais uma crônica brilhante e instigante!
Cronica maravilhosa, na minhaopinião nada substituiu o contato humano. Veja voce e Magdala!!beijos Lena
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