novembro 12, 2025

João e Maria no Código Penal

JOÃO E MARIA NO CÓDIGO PENAL 
Hayton Rocha


Ontem, revi algumas fotos nas redes sociais onde um grande escritor levou sua emoção às últimas consequências ao conhecer Liam, seu primeiro neto. Imagino o tanto de histórias impagáveis que ele já costura enquanto embala o mais novo fio de esperança para o Planeta. 


As imagens me remeteram a outro amigo avô, a quem chamo de Chiquinho Caniggia, que um dia resolveu contar à neta pré-adolescente uma nova versão da história que marcou a infância dele no final dos anos 1960, quando ainda havia fartura de cabelos. 


Grave erro, segundo ele. A menina terminou a história olhando-o com aquele misto de desconfiança e pena que a gente costuma reservar aos que falam sozinhos na fila da farmácia ou do supermercado.

— Vô, isso aconteceu mesmo? — perguntou, com a sobrancelha arqueada e o celular já na mão, pronta pra mandar mensagem pra avó, alertando para o possível desarranjo mental do idoso.





Empolgado, Chiquinho contou que havia, antigamente, um pescador viúvo, muito pobre, morando perto de um lago — daqueles que hoje seriam loteados por empreendimentos de alto padrão com nomes estrangeiros, tipo Golden Fish Lake Residence.


Esse pescador tinha dois filhos, João e Maria, e uma nova esposa que podia ser tudo, menos batizada na fé cristã.


— Faltou comida — explicou ele — e a mulher, pragmática como só as vilãs dos contos são, sugeriu: “Vamos abandonar as crianças na floresta. Não temos condições de criá-las.”
— E o pai concordou? — indagou a neta, com o olhar de quem já ensaia argumentos pro futuro concurso do Ministério Público.


Chiquinho disse que o pai hesitou, mas a madrasta — que era bruxa — ameaçou transformar os filhos num casal de sapos. João, mais esperto que muito menino com tutorial no YouTube, ouviu tudo e bolou um plano: encheu os bolsos de pedrinhas para marcar o caminho de volta.


— E ninguém pensou em chamar o Conselho Tutelar? — interrompeu a neta, indignada.


Mas Chiquinho seguiu adiante, como todo contador de histórias teimoso. O casal deixou os irmãos na floresta com um pão na mão e uma promessa de retorno tão frágil quanto conexão de internet na mata. João espalhou as pedrinhas e os dois conseguiram voltar pra casa ilesos.


Na segunda tentativa, a madrasta trancou a porta para impedir o menino de catar mais pedras. João improvisou com migalhas de pão — que, como era de se esperar, foram devoradas pelos passarinhos. Resultado: perdidos novamente.


— Isso é abandono de incapaz com agravante! — protestou a neta, tão revoltada quanto no dia em que descobriu que Papai Noel terceirizava os presentes.


Depois de dias vagando, João e Maria encontraram uma casa feita de doces. Telhado de chocolate, janelas de cocada, paredes de biscoito recheado. Um verdadeiro paraíso glicêmico. Começaram a devorar tudo até que uma voz saiu de dentro:

— Quem está roendo minha casa?


A dona era uma velha rabugenta com alma de bicho de sete cabeças. Prendeu João num quartinho para engordá-lo e assá-lo depois num grande forno a lenha. Maria foi forçada a virar empregada doméstica, sem carteira assinada.


— Vô, isso é cárcere privado com exploração de trabalho infantil! — gritou a neta, já abrindo o aplicativo pra gravar um vídeo-denúncia com trilha sonora dramática.


Maria enganava a bruxa — quase cega de catarata — dizendo que o irmão ainda estava magro, até que a velha perdeu a paciência e mandou Maria testar o forno com a cabeça.

— E aí?
— Maria, num contragolpe certeiro, empurrou a bruxa pra dentro e trancou a portinhola do forno.
— E ninguém ouviu os gritos? Nem vizinho?
— Era floresta, filha. Floresta não tem testemunha.


Depois disso, Maria libertou João. Acharam uma maleta da bruxa abarrotada de dólares — “provavelmente lucros ilícitos jamais declarados à Receita”, observou a neta — e voltaram pra casa com os bolsos cheios.


Encontraram o pai sozinho, choroso, arrependido. A madrasta? Sumira do mapa. Segundo boatos, foi vista pela última vez nadando perto de uma pedra escorregadia.


— Então é isso, vô? Duas crianças cometem latrocínio, apropriação indébita e ocultação de cadáver e terminam felizes para sempre?
— É o que o livro diz... — admitiu Chiquinho.


A neta suspirou e chamou a avó, que zapeava nas redes sociais na mesma sala:
— Vó, leva o vô ao médico. Acho que ele tá misturando remédio de próstata com fábula dos irmãos Grimm.


Desde então, Chiquinho pensa duas vezes antes de abrir a boca. Os contos da sua infância parecem cada vez mais impróprios — pelo menos, para menores com senso crítico, acesso à internet e noções básicas de direito penal.


Talvez os contos de fadas estejam apenas virando boletins de ocorrência.




Agenda Pernambuco:








 

25 comentários:

  1. ADEMAR RAFAEL FERREIRA12 de novembro de 2025 às 04:38

    Nos "papos cabeça" com neta(o)s e nas escolas a criatividade está sendo esmagada pelo rolo compressor da IA e similares. Na luta entre humanos e robôs os últimos estão ganhando.

    ResponderExcluir
  2. Inevitável lembrar de conversas com minha netinha. Ela tem menos de três anos, mas tem versões próprias pra cada historinha que eu conto. Felizmente ela ainda está na fase em que transforma todos os persongens em “bonzinhos” e ajusta os roteiros. Pensando bem, amigo Hayton, parece que precisamos delegar mais coisas para as crianças. Acho que elas cuidarão melhor deste mundo.

    ResponderExcluir
  3. Caro Hayton,
    Você sempre surpreende com essa sua capacidade de costurar a nostalgia com a atualidade, hoje abordando os contos de fadas com um olhar implacável (e hilário) da geração Z. Genial. Essa neta do Chiquinho Caniggia tem um futuro brilhante pela frente, talvez até como juíza de direito, pois a forma como ela "desmontou" João e Maria, aplicando-lhes o Código Penal foi incrível.
    O que me divertiu muito, e me fez pensar na profissão de advogado, é como a lei transforma a fantasia em um drama bem real. Aquele simples ato de abandono na floresta, que nos contavam com um quê de melancolia na infância, hoje é, sem tirar nem pôr, abandono de Incapaz. A neta está certíssima! E a tal madrasta, que parecia apenas má, na verdade, estava cometendo crimes que, dependendo das consequências para as crianças, daria muita cadeia.
    Mas a coisa esquenta de verdade quando chegamos à casa da bruxa, feita de guloseimas.
    A bruxa era uma criminosa contumaz! Prender João para engordá-lo? Isso não é só maldade; é um claríssimo cárcere privado, seguido de uma tentativa de homicídio qualificado por meio cruel (o forno a lenha!). E a pobre Maria, obrigada a limpar a casa, sem carteira assinada, coitada. A neta, mais uma vez, acerta no alvo: exploração de trabalho infantil, ou talvez algo mais grave. E a cereja do bolo, que a jovem perspicaz capturou é a maleta de dólares não declarados. A bruxa, além de tudo, era uma notória sonegadora de tributos! Uma verdadeira transgressora das leis em todas as esferas.
    Sua crônica é um espelho que nos mostra como o mundo mudou. Onde víamos magia e moralidade, hoje as novas gerações veem processos e tribunais. É o fim da inocência narrativa, mas o nascimento de um senso crítico exagerado, talvez desnecessário que não tem contribuído para a felicidade das pessoas.
    Parabéns, meu amigo! Vou pensar dez vezes antes de contar uma história dos Grimm para meus netos.
    Izaias

    ResponderExcluir
  4. É, o mundo está mesmo mudado. Às vezes a gente nem se dá conta. Boa reflexão!

    ResponderExcluir
  5. Cantar “Atirei o pau no gato”, nem pensar. Além do Conselho Tutelar, teríamos também a ira ou a mira da Sociedade Protetora dos Animais, o que não seria inoportuno.
    Como se trata de fábulas, na minha santa ilusão e ingenuidade, fico com a sabedoria da canção João e Maria. “No tempo da maldade acho que nem tinha nascido. Pela minha lei, a gente era obrigado a ser feliz”.

    ResponderExcluir

  6. Fiquei com uma dúvida: se as novas gerações chegam cada vez mais geniais ou se a criatividade do autor fica a cada linha mais genial. Muito bom.

    ResponderExcluir
  7. É assim, com a crônica de hoje, todos voltamos a ser crianças por uns instantes . E aí apareceram na lembrança A Gata Borralheira, a Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho e até os Três Porquinhos, dentre outros.
    Você é mesmo um gênio! As professoras as vezes mandam as crianças recontarem
    O final da história, mas vc recontou a história com a crítica, através da percepção de uma criança bem sabida. Genial. Nelza Martins

    ResponderExcluir
  8. A literatura infantil muito contribui na formação das crianças. De Monteiro Lobato(O Sítio do Picapau Amarelo) a Ziraldo( O Menino Maluquinho). Apesar de ser favorável ao conhecimento de outras culturas, precisamos relembrar que os "nossos heróis", nem sempre eram "santos" ou exemplos para serem seguidos. Qualquer um da família que desviar a conduta, a "neta" levará ao tribunal, já que é dotada de grande saber jurídico.

    ResponderExcluir
  9. Enquanto isso a Branca de Neve segue impune mesmo corrompendo seus 7 anôes…

    ResponderExcluir
  10. ...Excelente, caro HAYTON! - Muita magia e criatividade. Ai de quem cair nas unhas da futura promotorazinha...kkk

    ResponderExcluir
  11. ...Excelente, caro HAYTON! - Muita magia e criatividade. Ai de quem cair nas unhas da futura promotorazinha...kkk

    ResponderExcluir
  12. As crianças de hoje parecem nascer já falando e cheias de opinião. Quando estou com meus netos, tenho a sensação que eles se deixam enganar, com minhas tentativas de mágico frustrado kkkk. Sua crônica Hayton, nos levam a refletir como a modernidade tem antecipado a maturidade e reduzido a ingenuidade das nossas crianças.

    ResponderExcluir
  13. É...hoje em dia tudo ficou mais chato. Não se pode nem contar uma singela e pura historinha da carochinha que logo vêm um monte de gente com o Código Penal na mão, kkkkkkk. Adorei.

    ResponderExcluir
  14. Ouvimos várias histórias dessa natureza, hoje até censuradas por alguns, inclusive músicas de ninar cantadas pela maioria de nós. Você vem e traz a interpretação da mesma história com o que temos hoje. Fantástico!

    ResponderExcluir
  15. Cleber Pinheiro Fonseca12 de novembro de 2025 às 09:43

    Foi-se o tempo do velho contador de estórias revivendo o encanto de João e Maria. Os nossos herdeiros, filhos do tempo da informação, já não se deixam levar pelo conto sem antes julgar cada ato. Com o olhar atento e o coração justo, transformam o faz-de-conta em tribunal, onde ninguém escapa à lei.
    Com habitual escrita tocante e instigante, você descreve com ironia e ternura, que o futuro já fala a linguagem da justiça e que o mundo do conto de fadas, assim como o real, necessitam aprender a responder por seus próprios atos.
    Bem-vinda a nova geração, mais consciente, mais informada e menos disposta a aceitar a violência ou a injustiça como naturais, pois já carrega consigo um forte senso de justiça e uma invejável sensibilidade social que promete um futuro mais justo e responsável. Que assim seja!

    ResponderExcluir
  16. Os "contos de fada" tinham que passar uma mensagem que, em tudo, havia personagem mau e, ao mesmo tempo, mostrar que, para vencer na vida, teria que ser esperto... Nessa época, a terapia das crianças era o castigo físico e o respeito às opiniões dos mais velhos, às vezes à força. As canções infantis, então, induziam que "atirar o pau no gato" era algo normal... Mas, a televisão se encarregou de mostrar outras "maldades" e, no mundo atual, "direito penal" e outros direitos viraram instrumentos de coação... Será que é isso mesmo?

    ResponderExcluir
  17. Aplausos, mestre Hayton. Crônica no tempo e do tempo certo, creia!
    Estamos, nesse mundão de meu deus, sujeitos aos olhos atentos de todos quantos sejam e queiram; e, tudo isso, graças àquela senhora chamada Internet, que fora acusada de que "deu voz aos imbecis" - olha o Código! -, e que, junto com as redes sociais fizeram um estrago enorme nas comunicações humanas, como viera a cunhar o escritor Humberto Eco, em que as redes sociais deram e dão o direito à palavra a uma "legião de imbecis”.....
    Não custa lembrar, no entanto, que correntes de pensamento da área social fizeram oposição a livros do nosso Monteiro Lobato, que tanto nos alegrou com suas histórias do seu tempo, no que respeita a personagens amados e queridos por nós na nossa infância, tudo em defesa do "politicamente correto".
    Quando escrevo contos e/ou causos, tenho me policiado ao faltar forças para não criar personagens que possam ser identificados como alguém do convívio do lugar de fala, por exemplo.
    Vejamos pois, que tudo isso deve-se a sua excelência Dona Internet, posto que, infelizmente, a leitura física (livro de papel) está quase em desuso, ao menos por boa parte da sociedade celularizada ou computadorizada.
    tonhodopaiaia.org

    ResponderExcluir
  18. É informação demais e filtro de menos…
    Muito gostoso ver a fluidez e criatividade da crônica, que nos leva aos sentimentos leves da infância e nos mostra o peso inadequado sobre as fases da vida das novas gerações

    ResponderExcluir
  19. Muito interessante essa visão crítica atualizada da história de João e Maria.

    Sabemos da importância dos contos de fadas e histórias nas nossas formações e deformações de visão de mundo.

    Como ex educadora de EJA, usei alguns contos clássicos para abordar alguns temas de cidadania. Se tivesse lido sua crônica anteriormente, certamente a usaria numa das aulas.
    Usei a história de Branca de Neve para discutirmos alguns temas como competição entre mulheres, etarismo, sororidade, racismo, machismo e o grande sonho do resgate social.

    A madrasta de Branca de Neve encomendou sua morte por pura vaidade e competição. Não era pobre como a madrasta de João e Maria, mas competia por inveja pela beleza e juventude da menina linda porque era Branca como a neve. A madrasta temia envelhecer e perder a beleza da juventude da jovem e bela herdeira.
    Abandonada na floresta, chega à casa bagunçada e suja dos 7 pequenos marmanjos mineradores, rabugentos e preguiçosos.
    Ao chegar, decide ser útil desempenhando o único papel que poderia caber a uma mulher, ser empregada, cuidar da casa. Os mini marmanjos chegam e ficam felizes em encontrar a casa nos trincs, sopa feita e quentinha na panela, sem pagar um vintém. E os dias se repetem e ela nunca nem cogitou sair para a mina, aprender a nova profissão e ganhar seu próprio dinheiro. Segue no papel que definiram como o de mulher.
    Vivia só e contava apenas com a ajuda e companhia dos passarinhos (esses trabalhavam de graça também).
    Na solidão, encontra na bruxa, uma faísca malévola disfarçada de sororidade. Cai na lábia e no sono.
    A salvação e o resgate só podem acontecer montado num cavalo branco, belo, nobre e rico. Sem o milagre do beijo abusivo de amor, roubado de uma vulnerável, sem permissao nem consciência, mas que garante um final feliz para sempre, como se isso fosse possível.

    E assim formamos na cabeça das meninas o papel que deveriam cumprir e deformamos o sonho de independência e liberdade.

    E aí, me aparece uma deputada de tiara de florzinhas na cabeça, demonizando a chata galinha pintadinha por abordar questões de lutas de classes e gêneros e tentando resgatar as versões originais dos contos deformantes.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Comentário fantástico!! 👏👏👏

      Excluir
  20. Nova geração está com a criticidade na ponta da língua. O choque entre as gerações leva às novas interpretações dos contos de fadas. Sua crônica, Hayton, mostra com maestria um diálogo entre um avô e sua neta, onde desconstrói "João e Maria" e trazendo para os contextos atuais e com uma análise jurídica, onde o cárcere privado e o latrocínio assume pontos na história, substituindo a fantasia por uma análise moderna. E viva as novas gerações.
    Simbora rumo à próxima quarta-feira.🤝🎯👏

    ResponderExcluir
  21. Não basta ter uma ideia maravilhosa, como a sacada que Hayton teve.
    É preciso tecer a crônica dando vida, sentido, coerência, ritmo e ludicidade à escrita. Tudo isso tem no texto do Hayton.
    Já fiquei imaginando ele recontando Os Três Porquinhos, Branca de Neve e os Sete Anões, Chapeuzinho Vermelho e outras histórias com o olhar crítico da netinha do Chiquinho Caniggia.
    Pena que a consciência que ela apresentou não seja tão comum assim no mundo da internet. Evitaria a gente ter que ler pessoas afirmando com convicção nas redes que o tornado de Rio Bonito do Iguaçu foi armação do governo federal pra impressionar a COP30!
    PS: fiquei sabendo que o avô do Liam ficou envaidecido com a citação, meio encabulado com o “grande” escritor!

    ResponderExcluir
  22. Hahahahahaha
    Delícia de texto!
    Genial!

    ResponderExcluir

João e Maria no Código Penal

JOÃO E MARIA NO CÓDIGO PENAL  Hayton Rocha Ontem, revi algumas fotos nas redes sociais onde um grande escritor levou sua emoção às últimas c...