novembro 26, 2025

Árvore é avó



Imagens: M.E. Ateliê da Fotografia



ÁRVORE É AVÓ 
Hayton Rocha


Vem de São Paulo uma notícia dessas que chegam como vento quente jogando poeira nos olhos: a Prefeitura autorizou o corte de 384 árvores na Avenida Guilherme Dumont Villares, na Vila Sônia. Entre elas, 128 nativas, herdeiras legítimas daquele pedaço de chão que um dia foi sítio do próprio engenheiro Villares. Hoje, o nome virou avenida, empreendimento, promessa de “viver bem” com espaço para quase tudo, menos para raízes.

O terreno, comprado por uma construtora, ganhará quatro torres de nove andares, 708 apartamentos de 30 metros quadrados. Imagino esse tamanho como o espaço vital de um ipê-amarelo antes de aprender a conversar com o sol. Para compensar o estrago, virão 221 mudas novas, miúdas como desculpa de adulto, além de 2,5 milhões de reais repassados ao Fundo Especial do Meio Ambiente. Dinheiro, afinal, costuma brotar mais rápido que semente.

No tapume da obra, um banner azul proclama o empreendimento, vida “moderna”, “conectada”, “otimizada”. Quase escondido entre galhos que ainda resistem, um cartaz vermelho informa o manejo arbóreo autorizado, como quem pede perdão por um crime inevitável.

A lista de remoções inclui nativas, exóticas, invasoras e até árvores já mortas. A burocracia tem sua própria taxonomia da devastação. Cada tronco com sua etiqueta, sua sentença. E embora a ciência insista que plantas não sentem dor como nós, falta explicar aquele silêncio vegetal que se encolhe quando a motoserra começa a tossir por perto.

Há quem diga que as plantas não sentem, mas respondem. Reagem à luz, à secura, ao som, ao toque. A Mimosa pudica — Dormideira, Não-me-toques — encolhe as folhas feito criança que se esconde atrás da mãe na porta da escola. Para o professor Jack Schultz, plantas são “animais muito lentos”: cheiram, ouvem, veem, se defendem. Competem, dialogam, lutam pela sobrevivência.

Olivier Hamant, cientista francês de fala mansa, lembra que basta um timelapse para enxergar a verdade em sua plenitude: plantas se movem como bichos, só que devagar, com humildade, sem a soberba de querer erguer nove andares.

Foi pensando nisso que me perguntei o que diria Manoel de Barros, pajé das insignificâncias e inventor da sabedoria vegetal. Ele, que tirava poemas de latas amassadas e conversava com rãs sem fazer alarde, certamente ouviria cada tronco cair como se fosse um amigo desmontando devagar. Para ele, as folhas ensinavam a cair sem barulho, e olhos sujos de civilização aprendiam a desejar árvore por dentro. E talvez sorrisse ao notar que, para humanos, sabedoria virou aceitar com naturalidade um condomínio no lugar do talo.

Enquanto eu ainda ruminava essas miudezas, percebi que talvez fosse o caso de consultar não botânicos, engenheiros ou secretários municipais, mas crianças. São elas que realmente entendem de futuro, apenas vivem, e por isso mesmo enxergam mais longe. Talvez só elas tenham autoridade moral para decidir quantas árvores podem tombar sem que o bairro, a cidade, o mundo tombe junto.

Imaginem uma roda de crianças sentadas no chão, aquelas que fazem perguntas impossíveis nas horas mais impróprias. Aposto que resolveriam a equação com mais precisão que qualquer parecer técnico.

O engenheiro, prancheta na mão, perguntaria quantas árvores poderiam derrubar. A menina de rabo de cavalo responderia que nenhuma, porque árvores são como avós que moram de pé. Algum adulto lembraria da necessidade dos apartamentos. Um menino talvez sugerisse fazê-los menores. Outro proporia construir menos. Uma quarta criança, chupando pirulito, lembraria que dá para fazer tudo isso “em outro lugar”. Antes que alguém risse, a mais tímida de todas diria que gente grande acha que árvore é só decoração, que se troca quando atrapalha.

E estaria resolvido. Criança não calcula impacto ambiental. Ela sente. Como planta.

Na impossibilidade de ouvir Manoel de Barros — que já conversa com lesmas celestes em algum quintal infinito —, talvez devêssemos escutar essas criaturas lentas e luminosas: as árvores e as crianças. Ambas guardam conhecimentos que o adulto desaprende. Uma entende de raízes; a outra, de futuro — e de presente.

São Paulo sobreviverá a mais esse corte, como sobreviveu a tantos outros. Mas, se me fosse dado pedir algo, seria simples: antes de derrubarem a próxima árvore, que os adultos esperem um instante — o tempo exato de uma planta se mover num timelapse.

Talvez, nesse intervalo quase imperceptível, a planta diga alguma coisa. E uma criança escute, proteste. Talvez Saramago, sentado ao lado de Manoel de Barros no alpendre da eternidade, lembre sorrindo do que um dia escreveu por aqui: “tentei não fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui.”

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