A rainha Vitória, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda – tataravó da atual monarca –, cujo reinado duraria 63 anos, tomou uma decisão em 1861 pra lá de radical. Com a morte de seu marido, o príncipe Albert, resolveu guardar luto pelo resto de sua vida usando roupas pretas nos 40 anos seguintes, isto é, até 1901, ano em que faleceu.
No começo do século 20, com a morte da rainha Vitória, aos poucos o luto tornou-se mais flexível. Nem por isso o antigo costume deixaria de ser observado até aqui no Brasil. A diferença é que, hoje, já não é preciso entulhar o guarda-roupas com peças escuras por tanto tempo após a morte de um ente querido.
Em 1972, no dia seguinte à morte de meu pai, minha mãe – registre-se, ainda hoje soberana no reino dos Juremas que migrou da Paraíba para Alagoas no final da década de 1960 – também adotou medida drástica ao jogar no caldeirão e tingir de preto todas as roupas dela e dos nove filhos, inclusive minhas camisas coloridas e uma calça boca-de-sino com gravuras de marcas de cigarros que, para mim, fazia enorme sucesso junto à namorada.
Eu já cogitava voltar às cores habituais logo depois da missa de sétimo dia, embora não fosse possível adquirir novas peças de vestuário. Aos 14 anos, estudar e trabalhar ao mesmo tempo não passava de um desejo que só se realizaria dois anos mais tarde.
Vasculhei então as roupas deixadas por meu pai e descobri algumas camisas coloridas de mangas curtas que me caíram bem. Para mim, luto não era casca; era caroço. Haveria expressão maior de sentimento do que usar o que lhe pertencera, inclusive o relógio?

Disse-lhe então que não deveria preocupar-se com os mortos; que eles teriam mais o que fazer onde estivessem e não perderiam tempo com os vivos; que não dão a mínima para o destino de roupas, livros, escovas, sapatos e sandálias que deixam.
Balançando-se numa rede, no terraço, a mãe dela entrou na conversa que ouvira “por alto” e passou a contar uma breve história de família sobre o destino de coisas pertencentes aos mortos. Queria ajudar-me a convencer a sua filha de que camisas eram apenas camisas, nada mais. Conseguimos.
Dizia ela que, em 1941, dois de seus irmãos, ainda crianças na cidade alagoana de União dos Palmares, foram testemunhas de uma das piores enchentes do rio Mundaú, por conta do excesso de chuvas na cabeceira de seus afluentes. O mais velho dos meninos, beirando os 10 anos e criado solto feito garrincha (ou corrupião, rouxinol etc.), saíra logo cedo para assistir à correnteza de águas barrentas arrastando o que encontrava nas margens.
O nível do rio subiu de forma rápida e barulhenta, ameaçando a única ponte da cidade. Passava de duas da tarde e nada de o menino chegar para o almoço. Não faltavam transeuntes na calçada a comentar que vira mais um corpo a descer boiando. Angústia e ansiedade instaladas, a família perdeu a fome, desabou no choro e acendeu velas suplicando a intervenção de Santa Maria Madalena, padroeira palmarina, junto aos céus.
Foi quando um dos irmãos do desaparecido, um ano mais novo que ele e que mais tarde se tornaria respeitável frei capuchinho na região, irrompeu na sala e habilitou-se sem qualquer pudor perante os demais membros da família quase enlutada: “Vou logo avisando a todos: se ele morrer, a camisa vermelha é minha!”
No fim da tarde, o menino sumido reapareceu descalço, nu cintura acima – camisa suja, enrolada no pulso –, suor descendo no espinhaço, a chupar um caroço de manga. De barriga cheia, resolveu tomar banho de caneco no quintal enquanto o sol morno desbotava a paisagem, que se vestiu de luto como as águas do rio à espera das cores do dia seguinte.