O menino não tardou a perceber que as palavras impressas nos livros tinham o poder de guardar histórias, emoções e personagens. Aprendeu a escrever movido pela curiosidade de ler desde rótulos de latas até letreiros de rua. Mais tarde, por necessidade profissional, descobriu que aquilo seria caminho, vinho, vício desde o início.
Um dia, cresceu e se deu conta de que tudo o que construiu na vida estava ligado à palavra escrita. Dessa relação de amor e amizade nasceram cartas, memorandos, relatórios, pareceres, notas técnicas e, mais recentemente, crônicas – desde pequenas confissões até poemas em prosa ou reflexões sobre as miudezas da hora.
Velho amigo dele, vejo que o menino de ontem, hoje surfando num oceano de histórias vividas, possui agora outros olhos, outros ouvidos e, por assim dizer, outro modo de falar e escrever. Um jeito novo de enxergar o mundo, inclusive o universo empresarial.
A crítica que ele fez outro dia a um texto que circulou entre os funcionários da firma em que trabalhava (continha expressões como "estartar processos", "penetração na base", "segmentação de clientes" etc.) é sintoma dessa metamorfose. Por isso, suponho, veio até aqui conversar comigo e, mesmo sem que lhe dissesse uma única palavra, refletiu sobre o "antes" e o "agora" de si mesmo.
Ontem, o menino era capaz de jurar que quem morresse carbonizado seria sepultado em duas vias, no mínimo. E não compreendia como clipes — pequenas peças metálicas cuja única finalidade era impedir que vento levasse as folhas de papel sobre as mesas — desapareciam misteriosamente.
Hoje, claro, ele sabe que todos morrem em via única, pessoal e intransferível, supostamente na hora exata — nem antes, nem depois. Também sabe que nunca será desvendado o mistério do sumiço dos clipes, embora se diga que a decomposição do aço na natureza leve mais de 100 anos.
Ontem, ele queria ter um carimbo com almofada para chamar de seu. Treinar uma assinatura inimitável até fazer calos para, com caneta de peso na mão, com o logotipo da firma, fazer história mexendo nos processos de trabalho e no roteiro de viagem das pessoas sob seu raio de influência.
Hoje, tem dó de quem ainda precisa assinar sob carimbo identificador para, no dizer de uns, conferir plausibilidade jurídica — seja lá o que isso queira dizer! Também de quem rabisca apressados garranchos sobre documentos, mesmo tendo o resto da vida para escrever por extenso nome e sobrenome, tantas vezes quantas forem necessárias.
Ontem, um pouco mais maduro, ele se deleitava ao ouvir o barulho da trituradora destruindo papéis confidenciais — um psicanalista explicaria o fenômeno. Era a forma mais prazerosa que havia de reduzir a lixo pecados inconfessáveis que escrevera (ou dos quais tomara conhecimento) ao desgostoso sabor das circunstâncias.
Hoje, dorme sem tarja preta. Não guarda em cofre ou gaveta qualquer documento reservado, nem mesmo os espasmos poéticos sofridos durante a ebulição hormonal. Mas tem pesadelos com o tombo de heróis como Aldir Blanc, Nicette Bruno, por overdose viral, enquanto inimigos, no poder, negavam a eficácia das vacinas arrotando sandices.
Ontem, parecia importante trabalhar de gravata, paletó e sapatos engraxados. Dizia-se que continente e conteúdo sempre andariam de mãos dadas; que o único método infalível para conhecer alguém seria julgá-lo pelas repetidas aparências; que desde que o mundo é mundo os seres humanos se comparam e se esfolam sem piedade num vale de lágrimas.
Hoje, bermuda, cueca (de vez em quando) e sandálias são o bastante. Quando necessário (festas, despedidas de amigos ou missas de 7º dia), nada adicionalmente além de jeans, alpercatas e camiseta branca ou preta, de algodão. E sem uma gota de inveja do que vestem os que passam apressados, inseguros e infelizes, a escorrer incertezas nos vincos da testa.
Ontem, ele era capaz de convencer plateias com fingida humildade, ainda que se tratasse de qualidade abundante e desejável por quem não conseguia ter outra. Enquanto isso, comprava e vendia promessas alheias de olhos apenas na última linha dos balanços dos donos do negócio, condição inescapável do mundo corporativo.
Hoje, prefere silêncios duradouros e reflexivos, convicto de que faz o que precisa ser feito para alcançar o penúltimo degrau de seu bem-estar. E nem que se esforce para agir diferente, já não consegue desconectar as palavras do rio que flui do coração, passa pelo cérebro até desaguar em suas mãos. A paz de que precisa não é mais a de fazer o que quer, mas a de não fazer o que não quer.
Ontem, ele gostava que lhe reconhecessem méritos pelos ditos e feitos (ou até pelo que deixou de dizer ou fazer). Queria ser apontado como exemplo a ser seguido pelos mais novos ou visto como alguém que, entre acertos e desacertos, ganhos e perdas, deu o melhor de si, dentro das circunstâncias.
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Ilustração: UMOR |
Hoje, percebo que ainda tem algum interesse nisso. Mas já não é vaidade que o leva a me procurar, e sim o espanto de descobrir-se cada vez mais refletido em mim, espelho diante do qual se barbeia duas vezes por semana. E me conta quase tudo.