Soube outro dia que a jornalista norte-americana Pamela Paul, 50 anos, editora da seção de livros do The New York Times, acaba de publicar um ensaio intitulado 100 things we’ve lost to the internet, com reflexões acerca de objetos e sentimentos que se perderam com a chegada da rede mundial de computadores a partir de 1991.
Parece uma dessas obras melancólicas sobre um mundo que não existe mais e que não voltará. Mas a autora garante que o livro não foi escrito apenas para lamentar o que desapareceu. Ela se diz nostálgica, sentimental e pessimista, mas tem consciência de que alguns desses desdobramentos foram bons. “O que teríamos feito durante o confinamento sem a internet?”, pergunta.
Diz também que a tecnologia – que nos roubou ou limitou coisas que eram boas – não é algo natural, nem inevitável. Para ela, somos enganados, o tempo todo, por uma falsa mensagem da indústria segundo a qual quando não adotamos certa novidade tecnológica o problema está conosco, e não com o produto em si.
Ilustração: extraída do Facebook |
E questiona, de forma implacável: “Será que a internet foi criada para tornar o mundo melhor? Não. Temos a ingenuidade de que a tecnologia existe para nos servir. Absolutamente não! Ela está aqui para nos vender coisas”.
Deitado eternamente em rede esplêndida (de algodão, no caso!), no pleno usufruto de minha conexão planetária, lembro-me de como era complicado conseguir certas coisas antes da internet. Mas que fique bem claro para todos: já existia civilização e o mundo girava muito bem, obrigado!
Antes dos serviços de streaming e downloads, se a gente quisesse curtir a banda Eagles executando o seu "hino" Hotel California, ou Tim Maia soltando o vozeirão com a inesquecível Você, tinha que telefonar para a emissora de rádio sugerindo a canção, depois esperar o programa inteiro para gravá-la, correndo o risco de uma inserção inoportuna de propaganda ou de vinheta.
Como não havia Netflix, a vídeolocadora era o destino natural, nas manhãs de sábado, de cinéfilos desidratados pela ressaca da noite anterior. Alugavam três ou quatro fitas para assistir no final de semana (com direito a pit stop para pipoca ou xixi, em ocasiões distintas, diga-se) para devolução apenas na segunda-feira, devidamente rebobinadas, sob risco de multa.
Com meu salário rigorosamente ajustado às necessidades inadiáveis, e sem a bengala de Google ou Wikipedia, tive que resistir bravamente ao assédio de vendedores de enciclopédias, os quais me torturavam oferecendo as melhores fontes de pesquisa para trabalhos escolares de filhos. Um desses vendedores quebrou em múltiplos pedaços a minha resistência de forma inapelável: “a prestação não é nada para um pai como você... É menos que um maço de Hollywood ou uma Coca-Cola por dia”, argumentou.
Trabalhos escolares, aliás, que evoluíram de folhas manuscritas de papel almaço e passaram a ser elaborados na máquina de datilografia. Quem nunca resmungou ao cometer um erro e ter que usar corretivo ou reescrever tudo, às vezes espremido pelo tempo? Óbvio, nem se cogitava ainda o “copie e cole” que embrutece muitas cabeças de hoje.
E qualquer calendário de bolso ou de borracharia continha carga erótica de altíssima voltagem. Quando um moleque espalhava na turma do colégio que trouxera escondido do pai a nova Playboy para deleite coletivo no recreio, não havia um que não desse asas à imaginação, mesmo sem beber uma gota do famoso energético, que sequer existia.
Quanto a outras revistas e jornais, confesso que o cheiro de tinta que exalava das páginas recém-impressas sobrevive intacto em minhas narinas como uma fragrância dos deuses. Sim, reconheço, a internet me roubou o direito a essa embriaguez ao tornar dispensáveis as bancas que passaram em minha vida e o meu coração se deixou levar.
Antes, com a chegada das férias, tinha-se que procurar uma agência de viagens – se sobrasse algum após a cobertura do saldo devedor do cheque especial –, pegar fila e pagar preços muitas vezes abusivos pelas passagens, e sem poder pesquisar junto à concorrência para não perder as últimas vagas disponíveis, segundo ameaçava a representante da agência.
Tinha-se, enfim, antes de tudo o que me vem à memória, o direito de ficar sozinho, de desaparecer por algumas horas sem vestígios do paradeiro. Nada de celular ou de aplicativos de busca pela internet. Bastava sair por aí vagando entre esquinas, calçadas e praças, em busca da quietude do nada. Ou ficar em casa, nu cintura acima, no balouçar indolente de uma rede, fingindo-se de mouco para o telefone fixo.
Sim, já existia civilização e o mundo girava muito bem, obrigado! Mas se você, hoje, acha possível negar a tecnologia (aquilo que, para a jornalista norte-americana, serve apenas para nos vender coisas!), experimente passar duas semanas longe da internet e do celular, sem alterações de frequência cardíaca e pressão arterial, sudorese, tremores, diarreia e outros sinais de abstinência.
Se puder, claro! Depois me conte o resultado, por favor.