O grande Graciliano Ramos (1892 – 1953) pisou na bola em sua crônica “Traços a esmo”, de 1921, publicada em “O Índio”, jornal do Agreste alagoano, ao profetizar: “... O futebol é uma moda fugaz; vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha que não durará um mês...”
Monstros sagrados que surgiram por aqui na segunda metade do século passado – Pelé, Garrincha, Didi, Tostão, Carlos Alberto, Gérson, Rivellino, Ademir da Guia, Dirceu Lopes, Zico e outros – destruíram sem dó a profecia de Mestre Graça e me fizeram até sonhar ser como Roberto Dinamite, maior artilheiro da história do Vasco da Gama. Mas uma miopia acentuada, o início do curso científico (2º grau do ensino secundário) e o primeiro emprego, aos 16 anos, cuidaram de sepultar na origem o meu delírio.
Minha cabeça, no entanto, já havia sido feita pelas transmissões esportivas da "Rádio Globo", da TV Bandeirantes e TV Educativa, e pelas matérias da revista "Placar" e do "Jornal dos Sports". O futebol – diria o poeta – era meu vício desde o início, meu bálsamo benigno, paixão e carnaval, meu zen, meu bem, meu mal.
Dos 10 anos de idade em diante, quase todo dia curtia rachas (peladas, babas) em campinhos de terra batida, gramados, quadras de cimento ou na areia das praias da Avenida ou de Paripueira, em Alagoas, até o anoitecer. E ainda cuidava com zelo e carinho de meu "bicho de estimação": um rádio “Phillips” com que seguia o CSA, em minha “aldeia”; e o Vasco, no resto do mundo.
Mesmo depois de casado, com filhos para criar, permanecia horas em transe quase hipnótico ouvindo rádio, vendo TV ou lendo jornais e revistas, quando não estava no meio do mundo jogando bola com os amigos. Longe do que pensava Mestre Graça, comigo essa paixão sem limites por futebol nunca foi fogo de palha.
Diferente de mim, nada fazia com que minha mulher relaxasse e se desligasse totalmente do que estava acontecendo com o resto de nossa família. Só sossegava quando dormia ou alimentava nossos filhos. Mas até nessa hora era capaz de olhar o que estava escrito na palma da mão e lembrar que precisava estudar para uma prova, aguar o jardim, concluir um laudo no trabalho ou ir ao supermercado.
Aprendi há muito tempo que não existe nada nesse mundo que consiga fazê-la se concentrar numa única coisa. Se está com os filhos, pensa no marido; se está com o marido, pensa nos netos, e sempre com algum remorso, claro. Tudo me leva a crer que já nasceu com o chip da culpa instalado no cérebro.
Quando trabalhava fora, preferia estar viajando; se ficava em casa, tinha acessos nostálgicos relembrando os bons tempos em que, àquela hora, poderia estar tomando uma caipirosca com polvo ao vinagrete na Praia de Ipioca, em Maceió, a negociar com o sol o bronzeamento com o mínimo de manchas a serem eliminadas pelo dermatologista.
Isso acontece porque a imaginação feminina é bem mais fértil do que a de qualquer marmanjo. A maioria das mulheres é inquieta e falante. Não consegue jamais ficar horas vendo alguns bípedes esbaforidos a correrem atrás de uma bola, esgoelando-se em palavrões, a trocarem pontapés para, no fim do racha, discutirem sobre o que poderia ter acontecido ou não.
Deve ser difícil para qualquer mulher compreender como alguém consegue criar teias de aranha nos sovacos diante de uma TV, principalmente depois do apito final de um jogo, a ouvir desculpas esfarrapadas dos perdedores e ver a arrogância desmedida dos vencedores. Já não perco meu tempo com isso, mas ainda me flagro lendo o que disseram os "experts" em engenharia de obras feitas.
Fato é que, apesar de conformada com minhas manias, Magdala, minha mulher, nunca engoliu me ver deitado na sala, com um punhado de pipocas na mão e os olhos na tela, sacrificando nossas tardes de domingo. Tanto mais porque já não contava comigo nas noites de terça e quinta-feira, além das tardes de sábado, dedicadas aos rachas até o pôr do sol.
Mesmo depois de deixar as peladas há mais de 20 anos, ela insiste em dizer que para mim nada existe a não ser o futebol em suas variadas nuances. Chega a dizer que se houver plantão do JN dando conta de que há tsunami se formando no Atlântico, ou que vem aí um terremoto de oito graus na escala Richter, com epicentro no quintal de nossa casa, é provável que eu nada perceba se estiver vendo meu time jogar.
É capaz de jurar que se o telefone tocar e for minha mãe, eu lhe pedirei: "veja o que está acontecendo ou diz pra ligar mais tarde." Não passará pela minha cabeça, lógico, que minha mãe possa estar com um pico de pressão ou uma crise de labirintite, pelo menos antes do jogo acabar.
É capaz de jurar que se o telefone tocar e for minha mãe, eu lhe pedirei: "veja o que está acontecendo ou diz pra ligar mais tarde." Não passará pela minha cabeça, lógico, que minha mãe possa estar com um pico de pressão ou uma crise de labirintite, pelo menos antes do jogo acabar.
E se por acaso, só de brincadeira comigo, resolver fazer um teste e passar na frente da TV, diz que, no mínimo, correrá o risco de ouvir algo indelicado como: “Minha filha, saia da frente senão dá azar... Desse jeito meu goleiro vai acabar sofrendo um gol”.
Exageros à parte, melhorei bastante. Ela também. Talvez até peça daqui a pouco a um de nossos netos para lhe explicar o que é “jogar sem a bola”, “cruzar no segundo pau”, “acertar chute de três dedos” ou "fazer gol do meio da rua". Pode até passar a gostar de ler Armando Nogueira (1927 – 2010): “No futebol, matar a bola é um ato de amor”.
Depois de quase meio século de convivência, ela sabe que desfruta de cadeira cativa com estofo de pena de ganso em "meu estádio". Sabe também que, a esta altura do campeonato, no jogo da vida o placar é o que menos importa: 1 a 0, duas vezes por mês, é goleada. Sem direito a replay.