Muita coisa no mundo é estranha demais para acreditar, mas nada é tão estranho que não possa ter acontecido. É ficção parte da história que conto aqui, mas que fique bem claro: a semelhança com a realidade não pode nem deve ser encarada como simples coincidência.
Esse amigo trabalhava no Banco do Brasil e o hospital pretendia financiar a importação de alguns equipamentos de ressonância magnética. Dias depois, passaria a prestar serviços à Cassi, operadora de planos de saúde hoje com mais de 680 mil assistidos e 75 anos de experiência no mercado. Mudava pro outro lado do balcão.
Metas do tipo: de 100 pacientes que buscassem socorro, no mínimo 40 teriam necessariamente que se submeter a exames mais complexos e, desses, uns 10 precisariam de algum tipo de internação. Daí para frente, quatro ou cinco seriam direcionados para a UTI. Com chuva ou sol.
Falava que não havia como os planos de saúde negarem autorização para determinados exames ou procedimentos numa hora crítica. Segundo Dr. Jacinto Boa Morte, familiares de pacientes poderiam ser orientados sobre como obter uma decisão liminar judicial se a operadora questionasse a necessidade de alguma demanda.
Eram reflexos dos vícios incrustados em um modelo obsoleto de negócio — o tal do “fee for service” — que ainda hoje prevalece no país, onde as operadoras de planos de saúde, ao autorizarem qualquer internação, não fazem a mínima ideia do tamanho da conta que terá que pagar mais adiante.
Quantas diárias serão necessárias? Quais equipamentos serão utilizados? A que preços? A cada internação, as operadoras são obrigadas a colocar um cheque "em branco” nas mãos de gente sem nenhum escrúpulo — com honrosas exceções, é claro! — para que desenhe com as tintas que quiser o futuro dos planos de saúde.
Esse desequilíbrio nessa relação puramente comercial, agravado por uma ganância em doses industriais, transforma numa briga de foice no escuro quando, em um lado do ringue, estão planos que amparam empregados de empresas mais estruturadas que sabem fazer contas, como: Banco do Brasil, Petrobrás e Caixa Econômica.
Alguns mercadores da saúde raciocinam que se as operadoras quebrarem serão prontamente socorridas pelas empresas patrocinadoras, sem qualquer participação dos demais responsáveis pelo custeio dos planos (os associados). "O governo não deixa falir", argumentam, por ignorância, má-fé ou quem sabe as duas hipóteses combinadas.
Mas como evitar que essa autêntica queda-de-braço acabe em fraturas expostas dos dois lados do ringue? No caso brasileiro, talvez a saída mais óbvia seja a integração de toda a cadeia entre operadoras de planos, hospitais, laboratórios e serviços especializados. Negociação caso a caso não funciona, principalmente quando envolve pequenas operadoras de planos de saúde.
É claro que integrar esses interesses envolve recursos financeiros expressivos. Por isso, a chamada verticalização — quando as operadoras de planos detém participação acionária em hospitais, laboratórios e serviços especializados de oncologia, cardiologia, ortopedia etc. — pode ser algo interessante inclusive para grandes investidores como os fundos de pensão.
Há quem diga ser arriscado investir na indústria da saúde no Brasil, principalmente para quem precisa assegurar benefícios a longo prazo. Mas um único dado destrói esse argumento na origem: o tamanho da demanda reprimida. Hoje, de 210 milhões de brasileiros, menos de 25% possui planos de saúde, segundo dados da Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Desde a carta de Pero Vaz de Caminha a Manuel I, "o venturoso" rei de Portugal e Algarves, que se diz que o Brasil é o país do futuro. Já passou da hora de esse futuro dar as caras e, quando acontecer, a demanda prioritária de qualquer sociedade emergente — aqui, na África ou na América do Norte — serão cuidados com saúde e bem-estar.
Óbvio que esses serviços precisam ser tratados como negócio, provendo justa remuneração aos profissionais da área e aos investidores. Seria muito ruim para todas as partes interessadas uma postura de criminalização, que inibiria investimentos e levaria a caos ainda maior do que o atual.
O que não se admite é que isso se faça fora de limites minimamente aceitáveis. Garantir esse freio é papel da regulação exercida pelo estado, sob vigilância das partes interessadas, com destaque para a razão de ser do sistema: o consumidor, seu beneficiário final.
Quando se passa dos 60 anos, cada um encara de um jeito o declínio de status social e profissional, a sensação de que o fim está próximo, o luto dos amigos que estão desaparecendo de modo cada vez mais acelerado e, sobretudo, os problemas com a saúde, seja por conta de doenças crônicas, seja porque, feito carro velho de segunda mão, é um problema atrás do outro.
Uma década depois, reencontrei meu velho amigo. Ele jura que o remédio para esse mal, como ponto de partida, é juntar quem paga aposentadorias com quem cuida dos planos de saúde dos mesmos assistidos. Pelo menos no caso de Previ, Petros e Funcef, maiores fundos de pensão do Brasil.
Os três juntos, em nome dos planos de saúde e de seus assistidos, com os necessários ajustes estatutários e regulamentares, cuidariam de ter uma conversa estruturada, de gente grande, com quem anda tirando o sono de seus participantes, discussão que certamente poderá trazer desdobramentos para a indústria da saúde como um todo.
Para meu velho e bom amigo, é bom que isso ocorra antes que as luzes apaguem e muita gente adormeça. Profundamente.