Ao retornar à Bahia, em maio de 1999, na largada quis provocar os colegas ao recorrer à canção de Caetano Veloso quando me dirigi pela primeira vez a centenas de administradores do Banco do Brasil: "Existirmos... a que será que se destina?" Parece que foi ontem que assumi a superintendência estadual.
Jaime, executivo que viera da sede da empresa, em Brasília, prestigiar a cerimônia de posse, no final entregou-me uma folha de papel com breve comentário: “Excelente discurso. Emoção e razão”. Guardei no bolso sem perceber que havia algo a mais escrito no verso. Na hora em que eu falava, ele usara o mesmo papel para comentar com Robertão, seu parceiro de trabalho, o que lhe chamara à atenção na primeira fila do auditório: “Belas pernas!”
Robertão era terrível. Do alto de seus quase dois metros de altura, sempre bem vestido, cabelos aparados, qualquer mulher que passasse diante dele era vítima do seu olhar de lascívia e sedução. E ai de quem desse algum sinal de retorno, por menor que fosse. Jaime, sabendo disso, ainda atiçava o instinto predador da fera.
Não demorou uma semana e minha mulher, Magdala, ao arrumar nosso guarda-roupas, encontrou no bolso do paletó que usei na posse a tal folha de papel. Cuidadosa e desconfiada a vida toda, quis na hora saber a quem pertenciam as “belas pernas”. Dias depois, ao encontrar conosco num evento, Robertão morria de rir ao confirmar a versão do fato que contei.
De humor contagiante, inteligente, onde estivesse só se ouvia a voz dele a declamar poemas, cantar suas canções prediletas ou a narrar as mais insólitas aventuras em que se metera. Mas nunca deixou de reconhecer em Ana, mãe de seus filhos Rafael e Robertinho, uma espécie de santa, retrato da resiliência ao fazer-se de cega, surda e muda, para poder viver em paz. Era como Nara Leão a cantar Chico:
“Com açúcar, com afeto
Fiz seu doce predileto
Pra você parar em casa
Qual o quê
Com seu terno mais bonito você sai, não acredito
Quando diz que não se atrasa (...)
Parece que foi ontem. Em 1996, trabalhávamos no Nordeste, ele no Ceará e eu, em Pernambuco, e por duas ou três vezes viajamos juntos para a Capital Federal, para participar de reuniões com a diretoria da empresa. Se algo me dava a tal inveja do bem era ver de perto a recepção calorosa de Seu Pelópidas e de Dona Carmelita ao filho amado, aos beijos e abraços na área de desembarque do Aeroporto JK.
Dez anos depois, na última sexta-feira de setembro de 2006, Robertão já morava em Brasília quando o destino lhe cravou no peito uma flecha que mutilou seu coração. Aconteceu um choque entre duas aeronaves, uma delas da Gol, que fazia o voo 1907. Saíra de Manaus e deveria ter chegado em Brasília às seis da tarde. Não chegou. A Força Aérea Brasileira já deslocara helicópteros para buscas na região da Serra do Cachimbo, no sul do Pará, na Floresta Amazônica.
Havia 154 pessoas a bordo, inclusive Rafael, 28 anos, graduado em Ciências da Computação, primogênito de Robertão. E a área de desembarque do Aeroporto JK, em Brasília, palco de tantas cenas explícitas de amor e carinho, nunca mais seria a mesma.
Naqueles dias de chumbo e profunda dor, por mais que amasse a vida — música e poesia no meio —, Robertão não conseguia ouvir Zizi Possi cantar Chico:
“(...) Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi (...)”
Parece que foi ontem, Robertão, meu velho parceiro de tantas jornadas.
Parece que foi ontem, Robertão, meu velho parceiro de tantas jornadas.