O rosto de Chico que guardei
Tem gente que é como cana-de-açúcar: mesmo esmagada, reduzida a bagaço, é doce, não consegue ser amarga. A cabeça está sempre fria, o coração quente e as mãos estendidas. Chico Gonçalves, que conheci na Bahia há quase três décadas, era assim. Nunca mais nos encontramos, mas guardei na memória sua imagem de companheirismo e generosidade.
Chico Gonçalves |
Julho de 1990. Tudo começou com um telex da direção geral do Banco do Brasil comunicando minha promoção, da pequena agência em Porto Calvo, interior alagoano, para o segundo escalão na hierarquia da empresa no maior estado do Nordeste.
– Ele bebeu ou ficou doido de vez... – comentara, dois dias antes, ao chegar em casa para o almoço, sobre consulta feita por Nivaldo Alencar, novo superintendente estadual da Bahia.
– O que aconteceu? – quis saber minha mulher, desconfiada de que pudesse estar a caminho uma nova mudança.
– Me ligou perguntando o que achava de ser indicado para o cargo de superintendente adjunto. Claro que topei na hora, mas pode ser trote!
Não era. O País ainda curava a ressaca das primeiras medidas da chamada Era Collor (1990 – 1992). E o banco havia decidido implantar projeto que chamara de Novo Rosto. Pretendia mudar radicalmente a cara para melhorar sua imagem no mercado global. Só se falava em reengenharia, downsising, outsoursing e outros remédios para os problemas da organização.
Centenas de agências tiveram seus quadros reduzidos, gerando enorme quantidade de pessoas sem localização definida. A histórica estabilidade do emprego entrava em turbulência. Sem parâmetros de avaliação claros, da noite para o dia gerentes foram rebaixados de nível ou simplesmente coagidos a aposentar, enquanto outros eram promovidos a unidades melhores, com ganhos maiores, alguns sustentados apenas no compadrio que sempre existiu nas relações corporativas.
Ao desembarcar em Salvador, aos 32 anos de idade, evidente que fazia ideia do peso da cruz que recairia sobre meus ombros. “É preciso ter dúvidas. Só os estúpidos têm uma confiança absoluta em si mesmos.” (Orson Welles). Mesmo assim, arregacei as mangas e fui à luta. Primeiro ato: procurar apartamento para morar.
Dia seguinte, já no novo ambiente de trabalho, era apresentado a Chico Gonçalves, a quem iria substituir e que fora afastado do cargo sem motivos concretos para a troca. Falou-se na sede do banco em “falta de perfil ”, “já deu o que tinha pra dar” e outras tolices sem nexo. Conversamos longamente, desde as circunstâncias de sua saída até a transição no trabalho.
Uma hora depois, se muito, ouvi dele algo inesperado e marcante: ao supor que eu teria dificuldades em conseguir fiador para o contrato de locação do imóvel que iria alugar, Chico prontificou-se a afiançar dizendo que fazia questão de dar a mão a qualquer colega que estivesse chegando à capital baiana sem conhecer ninguém.
Notei que acreditara quando lhe disse que, para mim, a indicação de meu nome teria sido para preencher cargo vago. Pensei: o que leva um homem, ainda sangrando, sentindo-se injustiçado, a não esmorecer em sua prontidão para servir ao próximo? De quantos “chicos” precisávamos para mudar o mundo?
Nem foi necessária a fiança. Mas perdeu completamente o sentido o velho conceito que dizia que as pessoas passam e as instituições ficam. Nenhuma instituição é eterna; todas desaparecem com o tempo. As pessoas, sim, perpetuam-se – em pensamentos, palavras, atos e omissões –, na tapeçaria de ambições e frustrações de que é feita qualquer grande empresa.
Em menos de um ano o vento sopraria noutra direção e as velas do barco foram reposicionadas. Foram trocados os dirigentes que implantavam no banco o Novo Rosto e Chico Gonçalves resgataria o cargo que ocupava.
Eu voltaria para Alagoas pouco tempo depois para administrar uma pequena agência na periferia de Maceió, no bairro Tabuleiro dos Martins. Na viagem pela BR-101, lembro de ter ouvido no toca-fitas, dentre outras canções, Disparada, do paraibano Gerado Vandré. “... mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo, e nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando até que um dia acordei...”
Eu voltaria para Alagoas pouco tempo depois para administrar uma pequena agência na periferia de Maceió, no bairro Tabuleiro dos Martins. Na viagem pela BR-101, lembro de ter ouvido no toca-fitas, dentre outras canções, Disparada, do paraibano Gerado Vandré. “... mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo, e nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando até que um dia acordei...”
Passados nove anos, retornei à Bahia em junho de 1999, agora nomeado superintendente estadual. E logo no primeiro mês fui convidado a participar de um almoço com funcionários aposentados, onde reencontraria o semblante fraterno, o novo rosto de paz e bem-estar de Chico Gonçalves, em seu merecido “dolce far niente”.
Pude então resgatar o que acontecera naqueles dias de incerteza e agradecê-lo de novo pela generosidade quando ali cheguei pela primeira vez. E me veio à cabeça outra vez os versos de Vandré: “... porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente...”
Tive o prazer de conhecer Chico Gonçalves. Trata-se de um grande exemplo de ser humano, uma alma nobre de gestos simples e marcantes.
ResponderExcluirPois é, Galego. O Chico é diferente. Paraense, sob a benção do Círio de Nazaré, veio morar na Bahia justamente quando Irmã Dulce ainda peregrinava pelas calçadas de Salvador, espalhando paz e bem. Não poderia ter sido diferente.
ExcluirO pai dele era funcionário do Banco. A irmã, minha amiga até hoje. Nesse ano da crônica ele soube do HIV e lançou quatro estações, álbum de “pais e filhos”, onde tem a frase que você cita.
ExcluirCada um de nós tem sua própria estrada de damasco
Tempos sombrios.
ResponderExcluirGrande Chico Gonsalves!
Foram esses "Chicos" que deram a cara ao Banco do Brasil. Gratidão é a marca dos nobres.
ResponderExcluirPois é, eu tb ainda acredito nas pessoas.Quem planta o bem,só colhe o bem.
ResponderExcluirMaravilhosa história, meu caro amigo. Que bom que a gente pode contar na vida, com vários "Chicos". E que bom que já tive oportunidades de ser um "Chico" para colegas do BB e fora dele também.
ResponderExcluirAs pessoas sempre fizeram e continuarão fazendo a diferença, Hayton!
ResponderExcluirPessoas de Deus!
ResponderExcluirEu tive a oportunidade de conviver com ele e sua mulher, pessoas que inspiram generosidade.
ResponderExcluirCurioso como foi (e está sendo) difícil organizar minhas lembranças de onde eu estava nessa época. Talvez por ter sido uma época de infelicidades e cheiro de enxofre no ar. Tudo passa. O amor fica.
ResponderExcluir
ExcluirNa época, Dedé, apesar do cheiro de enxofre a que você se refere, havia também um tal de Renato Russo em Brasília pregando que era “preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. Alguns escutavam.
Faltam chicos no mundo. A fraternidade entre colegas do BB é um fenômeno que não se encontra mais. O mundo mudou. Infelizmente para pior.
ResponderExcluirNão são muitas as pessoas que são lembradas com carinho por ex colegas de trabalho. Certamente deve ser uma pessoa muito especial, que não se deixou contaminar pelo " poder ". Recordando aquela máxima " Quer conhecer um homem..."
ResponderExcluirO projeto Novo Rosto trouxe uma overdose de mudanças numa comunidade bancária formada na estabilidade, no conservadorismo e da lenta ascensão profissional. Tudo planejado e com apoio do corpo funcional. Hoje todos têm no mínimo u s 2 exemplos de injustiçados que foram rebaixados, perderam cargos, forçados a se aposentar, transferidos a revelia etc. Para esses, o mundo caiu.
ResponderExcluirTambém fui um desses injustiçados; fui promovido.
O meu sonho era pequeno, modesto e factível: deixar a pequena Porto Calvo e ser nomeado supervisor de agência em Maceió. Talvez esse seja um caso clássico de contentar-se com pouco. Sucumbi ao padrão Novo Rosto de ascensão profissional.
ACCampos.
Infelizmente o BB mudou muito. Não vejo mais pessoas como o Chico. Até velhos amigos, quando em cargos de direção, se tornaram estranhos. Parecem o avesso da música de Vandré. Mas Chico é uma esperança para a humanidade. Essa crônica me estristeceu, hoje.
ResponderExcluirCrônicas são assim, Marcão: ora enternece, ora entristece. Pior dos mundos é não despertar sentimento algum, como certas pessoas que passam por nossas vidas e nada deixam de si. Nem tampouco levam de nós.
ExcluirQue texto lindo Hayton, mais lindo ainda o ser humano que vc nos apresenta. Nesta época eu chegava p estagiar no antigo Desed e presenciava o trauma que o tal novo rosto havia espalhado no Bancão.
ResponderExcluirHayton,
ResponderExcluirChicos permiti a construção de um mundo melhor, é a serenidade nos momentos de turbulência.
Um bela reflexão, retrato do que foi o BB, vamos que vamos.
Grande Chico Gonçalves. Depois de aposentado só o encontrei uma vez mais. Alma pura, como poucos.
ResponderExcluirO texto nos remete a um período turbulento na história do BB e em nosso País, marcado por toda sorte de acontecimentos, rebaixamentos, promoções, desafios, aprendizagens e etc. Pinçar um episódio, em que realça sentimentos, em especial a generosidade, nos confirma que os relacionamentos são o que importam, o resto é periférico. Mandou bem, em mais uma. Abs
ResponderExcluirBela história! Os verdadeiramente grandes não fazem questão de propalar isso: seus gestos bastam.
ResponderExcluirParabéns pelo resgate dessas passagens marcantes da (nossa) vida profissional!
Para mim, que não tive a honra de conhecer o Chico, mas tive o prazer de trabalhar com um dos seus discípulos, mais que um chefe, um eterno amigo, chamado Hayton Rocha.
ResponderExcluirMeu caro e bom Hayton, mais uma leve e agradável leitura.
ResponderExcluirAs instituições passam (percebo que aquela e tantas outras que a substituíram já não existem mais, exceto pelo nome que sempre se manteve), enquanto as pessoas ficam e vivem ainda hoje no presente de nossas memórias. Forte abraço e obrigado por nos brindar com doses homeopáticas de boas histórias.
Belo texto, irmão. Creio mesmo que o papa Francisco lembrou de canonizar a irmã Dulce, Santa Dulce dos Pobres, mas esqueceu o Chico da Bahia.
ResponderExcluirAgostinho Torres da Richa Filho
Pessoas... sempre são as pessoas que realmente importam! E algumas deixam marcas profundas e positivas. Como o Chico!
ResponderExcluirPoderia muito bem ser conhecido pelo nome de São Francisco da Bahia.
ResponderExcluirTenho certeza, Agostinho, de que Chico não iria gostar. Como disse Zé Maria Rabelo mais acima, “os verdadeiramente grandes não fazem questão de propalar isso: seus gestos bastam.”
ExcluirÉ uma situação interessante. Como se diz, amigo a gente não faz, não cria, a gente ganha. E os verdadeiros, aqueles que veneramos, às vezes aparecem por linhas tortas, mas muito retas... nosso coração sabe explicar isso, talvez a razão não... amigo é uma honra!
ResponderExcluirPois é! Foram momento difíceis no BB! Muito admirável a atitude do Chico! Certamente, uma pessoa muito espiritualizada!
ResponderExcluirBela crônica meu amigo. É muito bom que tenhamos pessoas como você, que se dispõe a contar sobre pessoas como o Chico, a final as pessoas é que fazem as instituições, sem elas as empresas não existiriam.
ResponderExcluirÀs vezes, Deus se disfarça de "Chicos" para que não percamos a esperança no ser humano e nos mostrar que o mundo ainda tem jeito.
ResponderExcluirMeu caro Hayton, aplausos para o maravilhoso texto. Relembrando... Vem-me a recordação da família Satélite, assim conhecida, na qual conviviamos numa perfeita união com colegas. Túnel do tempo.
ResponderExcluirOutro belo texto! Muito bom lembrar de pessoas que fizeram diferença em nossas vidas. Infelizmente temos poucos Chicos neste mundo.
ResponderExcluirMais um ensinamento para todos nós! Esta história nos mostra claramente quando o poder e dinheiro são meros coadjuvantes! Na vida, na maior parte das vezes, basta um gesto, uma atitude, um exemplo, um Chico!
ResponderExcluirDisse tudo, Beto.
ExcluirAchei interessante um comentário feito hoje à tarde, via WhatsApp, pelo cronista baiano Marcelo Torres, que aqui reproduzo: “No deserto de almas que é o BB (como qualquer negócio de poder e dinheiro), no curral de máquinas de uma organização, Chico era um coração, uma flor no asfalto”.
Mais uma bela crônica, parabéns !!
ResponderExcluirO mundo está precisando de muitos Chicos ’ e feliz daquele que encontra um em seu caminho.
Linda crônica, primeiro pelo reconhecimento que você teve ao grande Chico, e segundo pela forma humana com que você se apresentou ao Chico, pois tenho certeza, como se tratava de duas almas boas, o resultado só poderia ser harmonioso.
ResponderExcluir"Fica sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas."
Amigo Hayton, vc é um craque ! Adorei a crônica !
ResponderExcluirParabéns ! Realmente no projeto: “ser humano”, alguns se salvam, entre eles o grande Chico !
Trabalhei na Superintendência e tive o privilégio de conviver com essa pessoa de elevada generosidade e caráter, que é o Chico Gonçalves. O tempo de fato é o senhor da razão e nos faz ver o que realmente tem valor nessa vida. Parabéns, amigo Hayton. Bela homenagem. Nassib
ResponderExcluirComo sempre, uma blz, mestre Hayton! E bela analogia que nunca havia pensado...tem gente que é como cana-de-açúcar... é verdade!!!
ResponderExcluirtiberio
Realmente tempos difíceis aqueles. Pena que algumas injustiças não puderam ser reparadas. Mas vida que segue ...
ResponderExcluirLindo texto, Hayton! Passei por tudo isso no Banco, justiças e injustiças.
ResponderExcluirMas, felizmente encontrei vários Chicos e, dentre eles, você. Fui feliz no BB.
Amigo, eu conheci o Chico, realmente uma figura leve e doce.
ResponderExcluirConheci também o Nivaldo, um executivo tido como duro, mas, extremamente profissional e que dava o exemplo. E me é grata a recordação dele pois, no pouco tempo dele na Bahia, comigo foi não só cordato, mas, até inspirador.
Depois, sua sensibilidade definitiva e inquestionavelmente comprovada - trazer para a BAHIA um cara como você. Nivaldo parecia ser um digital quando ainda não se tinha noção do que era um analógico, mas sua trajetória mostra o quanto ele era inteligente e sensível.
Afinal,não fosse ele, não teríamos o privilégio de ter conhecido você.
Fico à vontade pra dizer isso, pois hoje somos iguais - dois "semi-novos" que nada podem fazer, um pelo outro -, então não posso ser confundido com um puxa-saco.
Quanto à crônica, tem hora que acho que você gosta de sacanear, fica guardando o momento pra narrar uma história que derruba a gente.
Como você já deixou de reconhecer minha "caligrafia ", aqui é Volney, futuro presidente de seu fã clube.
Grande abraço...
Belo texto, Jurema!
ResponderExcluirNão tive o privilégio de conhecer o Chico Gonçalves, mas nutria uma curiosidade desde quando ouvi você relatando as condições de sua primeira passagem pela Super BA.
A crônica já começou bem com a frase: "Tem gente que é como cana-de-açúcar: mesmo esmagada, reduzida a bagaço, é doce, não consegue ser amarga." Outras frases para se guardar foram surgindo ao longo do texto, muito bem estruturado e de um belo conteúdo com todos que o autor escreve. Fanzão!
ResponderExcluirAdmiro profundamente as pessoas com essa natureza, que você definiu com tanta sensibilidade: " mesmo esmagada, reduzida a bagaço, é doce". São raros, mas felizmente os "Chicos" existem, estão por aí, e de vez em quando temos o privilégio de nos depararmos com um deles.
ResponderExcluirEsse período foi muito complicado, criação dos Cesec (suporte zero nas ags) - Eu estava na Agência Brasília Central e tive a felicidade de conhecer pessoas como o Chico.
ResponderExcluirBela história Hayton.
Abraços
Marcos Tadeu
Caro Hayton, fiquei deveras lisonjeado e surpreso com as palavras de estima e apreço a mim dirigidos. Nada fiz de especial senão praticar o que aprendi no seio familiar e no convívio diário com os colegas do BB: - A SOLIDARIEDADE -, e com você não poderia ser diferente Abs.do amigo e agradecimentos a todos que se manifestaram. Francisco Gonçalves
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