quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Eu confesso. E você?

Para quem trabalhou por mais de quatro décadas numa mesma empresa — hoje em dia, algo visto como falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, não chega a ser tão difícil listar algumas figuras especiais que encontrou pelo caminho. Pensei nisso e logo me veio à cabeça uma dezena delas.

Lembrei da "Arrogante", que sempre fazia questão de encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só via os outros de cima para baixo e tinha sempre um sorriso de deboche para qualquer comentário mais simplório numa reunião.

Também recordei da "Bocão". Falava sem parar de si própria (o que já era péssimo) e dos outros (inaceitável). Mesmo porque quem se enfeitiça com o som da própria voz pode até parecer interessante por alguns minutos, mas soa ridículo daqui a pouco e insuportável meia hora depois. 

 "Curiosa" chegava cedo e antes mesmo do “bom dia” cuidava de remexer papéis em minha mesa de trabalho; em seguida, bisbilhotava a tela do computador em busca de alguma coisa, convicta de que fofoca vestida de informação lhe tornaria poderosa.

E o que dizer da "Franca"? Via-se acima do bem e do mal por ser sincera “demais” (sic) e orgulhava-se de falar tudo o que lhe vinha à cabeça despreocupada se machucava ou não aos outros com suas palavras duras e frias.

"Gaveta" empurrava tudo com a barriga para o dia seguinte ou para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Não se dava conta de que uma máquina lenta era até tolerável, mas um ser humano, nunca!

E a "Inconveniente" era capaz de interromper pelo menos uma reunião por semana, entrar na sala sem ser convidada, fazer dois ou três comentários fora do contexto, despertar alguma compaixão no começo e, logo depois, rejeição ampla, geral e irrestrita. 

Lembrei da "Medrosa"avessa a qualquer novidade porque valorizava o que “sempre deu certo”. Não queria saber de nada que provocasse algum distúrbio em sua insuportável rotina, mas se roía de inveja quando alguém ousava e se dava bem.

Tinha ainda a "Mouca". Muitas vezes não escutava nem aqueles que concordavam com seus argumentos. Esquecia de que mesmo sendo obrigada a filtrar bobagens, se não soubesse ouvir perderia por completo a capacidade de conviver com colegas de trabalho.

"Rígida" era cruel. Não sabia perdoar aos outros nem a si própria pelos erros que cometia, tampouco era capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceitava um “não” porque se achava determinada, perseverante. Nem por um minuto se enxergava teimosa ou chata.

Já a "Tediosa" era de morte! Se enxergava a rolha do vinho servido na última ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vivia pelos corredores a repetir piadas sem graça, rindo não se sabia de quê. 

E havia ainda a "Dissimulada", a "Mentirosa", a "Otimista", a "Pessimista"... Agora é fácil falar sobre elas com alguma pilhéria e a distância crítica que a maturidade permite. Se você me leu até aqui, é provável que tenha reconhecido muita gente que cruzou o seu caminho. Quem sabe até você mesmo, numa circunstancia qualquer. 

No palco de minha vida profissional, não posso negar, confesso que também usei essas máscaras. Como qualquer pessoa  —  exceto as perfeitas, que nunca as encontrei mas devem existir —, era mais uma naquele teatro absurdo e grotesco em que ora nos vestíamos de fantoches ou marionetes, ora de cordéis manipuladores.

Aos amigos e amigas que me aturaram por lealdade e respeito; e mesmo àqueles que me engoliram por conta das cadeiras em que sentei por acaso, confesso que cometi meus pecados e por isso mesmo lhes peço perdão. Peço ainda que rogai por todos nós aos céus  — de novo, afora os perfeitos — para que nunca mais necessitemos de máscaras para contracenar, por dinheiro nenhum nesse mundo! 

Depois que me aposentei, juro de mãos juntas que trouxe comigo apenas uma máscara que todo dia revejo no espelho, cada vez mais serena e desassombrada, com algumas rugas a lembrar as histórias que conto aqui. Enquanto as cortinas não fecham.

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

Zé de Brito


O velho José de Brito Jurema, quase um clone matuto e carrancudo do genial dramaturgo, palestrante e romancista paraibano Ariano Suassuna (1927 – 2014), desmontou de sua égua em frente à única agência bancária da cidade de Itabaiana-PB, dirigiu-se ao balcão de atendimento, chamou no canto um baixinho franzino que orientava alguns clientes e foi direto ao ponto:
— Vosmecê pode me dizer qual é sua intenção com minha filha?
— Calma, seu José, vamos conversar... — ponderou Agostinho, que, quatro anos mais tarde, se tornaria meu pai.
— Me disseram que vosmecê tá se enxerindo pro lado da menina. Ela só tem 16 anos, viu?
— Seu José, eu já iria mesmo procurar o senhor lá no sítio Jacaré para pedir a mão de Eudócia. Nós vamos nos casar assim que correrem os papéis no cartório.

Meu avô andava bravo com as conversas de comadres que ouvia no sítio "Jacaré", a oito léguas da cidade, dando conta de que sua filha, balconista numa loja de tecidos, namorava um bancário forasteiro (sete anos mais velho do que ela) que chegara havia pouco tempo para trabalhar com mais três amigos solteiros. 

Naquele dia, ordenhou suas duas vacas antes do sol nascer, bebeu uma caneca de leite quente direto das tetas e partiu disposto a tirar a limpo inclusive o boato de que o rapaz que arrodeava sua filha era casado.

Em 1954, pouco antes de mudar para a Paraíba, Agostinho se envolvera com uma moça em Caxias-MA, cujo cunhado, delegado de polícia, ao tomar conhecimento de que ele fora aprovado em concurso público para ingresso no Banco do Brasil, praticamente o obrigou a casar. Nem que o matrimônio se desse apenas diante do padre, para que sua cunhada não ficasse “na boca do povo”. 

Eu e meus irmãos mais velhos (Haydeé e Agostinho, filho) só soubemos desse episódio dali a 18 anos, em Maceió-AL, após a morte de nosso pai. Eudócia, nossa mãe, casada “de papel passado em cartório e tudo”, nos contou que
 poucas semanas depois de seu casamento apareceu em Itabaiana-PB uma mulher morena, bonita, dizendo a todo o mundo que Agostinho “já era dela”. 

Uma tia nossa, furiosa como uma gata parida quando tem cachorro por perto, de pavio curto feito seu pai Zé de Brito, procurou a moça na pensão em que se hospedara cuspindo maribondos:
— Desapareça daqui, sua cabrita, senão eu vou lhe dar uma surra com uma correia de máquina de costura que você nunca mais vai esquecer!

Mais tarde a moça foi vista embarcando na estação ferroviária. Disseram que partiu para os lados de Pernambuco, primeira escala antes de seguir no rumo da Bahia. E dela não mais se ouviu falar na Paraíba.

Embora meu avô fosse um pequeno ruralista inculto e tosco, de quem nunca se viu um gesto de carinho sequer para com os netos  exceto com meu irmão Agostinho Filho, no dizer dele o calmo “Neninha” —, é possível que eu tenha sido o único que lhe fez perder a paciência e sacar o cinturão de couro em duas oportunidades. 

Na primeira, meus pais haviam viajado até a capital paraibana, João Pessoa, deixando os filhos sob os cuidados dos avós. Curioso, enquanto meus tios escutavam pelo rádio a transmissão de Brasil e Bulgária, direto da Inglaterra, na abertura da Copa do Mundo 1966, achei de testar qual seria a reação de um peru caso inalasse a fumaça de um retalho de pano em chamas preso a uma vareta que amarrei em seu pescoço. 

Ao ver o "teste", o velho Zé de Brito correu atrás de mim em torno da casa-sede de taipa do sítio "Jacaré" na inútil tentativa de me dar uma surra. Quando sentou ofegante no alpendre, eu não parava de rir de sua falta de ar, certamente reflexo do cigarro de palha que vivia no canto da boca.

Na segunda vez, meu avô já estava sob tratamento médico em Patos-PB procurando resolver sérios problemas cárdio-pulmonares. No seu jeito naturalmente descortês, pediu água num dialeto estranho para quem, como eu, já lia e escrevia com alguma desenvoltura:
 Ô minino, vigie um caneco d’água mode matar minha sede!

De novo, caí na gargalhada e ele por pouco não me ensinou a respeitar os mais velhos da forma que aprendeu a educar seus filhos. Mas não aguentou a falta de ar, tossiu e voltou resmungando para a sua rede. Morreria alguns meses depois, já de volta ao “Jacaré”, torrão natal onde sempre viveu.

A vida seguiu e, com o passar do tempo, percebi que Dona Eudócia esquecera por completo que havia compartilhado com alguns filhos a história do casório no religioso por parte de meu pai. 

Eu já morava na Bahia, no começo dos anos 90, quando, em férias, ao visitá-la em Alagoas, provoquei:
— A senhora não vai acreditar no que me aconteceu! Outro dia fui procurado em Salvador, no trabalho, por uma mulher bonita, bronzeada, cabelos grisalhos, que jurava ser minha mãe. Tomei um susto danado! Não é que me achei parecido com ela...
— É mentira daquela sem-vergonha! Você é meu filho e nasceu um ano depois de Haydeé — atalhou Dona Eudócia. 
— Calma, mamãe, é gaiatice minha! Esqueceu que nos contou que papai era casado no religioso quando se mudou para a Paraíba?

Ela ainda quis pegar no cabo da vassoura para me botar pra correr da sala de jantar, mas, digamos assim, percebeu que tinha agora diante de si um pai de família sério, trabalhador, que já contribuía com sua parte para o nosso belo quadro social. 

Do moleque de antigamente restara apenas o que minha avó, Dona Carmelita, “Mãe de Jacaré”, questionava nos meus primeiros anos de vida: 
— Repare mesmo, Doça, esse menino é cheio de marmota! A quem ele puxou? 
— Não sei, só sei que ele é assim... — diria Chicó, personagem de O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, se visse a cena. 



quarta-feira, 30 de outubro de 2019

A arte de viver da fé

A banda Os Paralamas do Sucesso apresentou-se no começo de outubro de 2019, pela quarta vez, no Rock in Rio. Com 37 anos de estrada, o grupo ganhou visibilidade ao participar da primeira edição do festival, em 1985, e segue até hoje com sua formação original (Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone) encantando velhas e novas gerações com uma mistura bem balanceada de rockreggae e outros ritmos latinos. 

Conheci Herbert Vianna, vocalista e líder do grupo, no final do ano 2000, depois de um espetáculo maravilhoso realizado em Salvador. Elegante e bem-humorado, tinha nas mãos quando nos recebeu (minha filha e eu) uma taça de champanhe e um acarajé, em perfeita harmonia com uma noite morna na Bahia de todos os santos “e de quase todos os pecados”, como diz um velho amigo meu. 

Acabara de lembrar à plateia que “... a cidade, que tem braços abertos num cartão-postal, com os punhos fechados da vida real nos nega oportunidades e mostra a face dura do mal: Alagados, Trenchtown, Favela da Maré. A esperança não vem do mar nem das antenas de tevê: é a arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê...”

Nem sabia que Trenchtown é uma favela jamaicana na periferia de Kingston, capital da Jamaica, onde nasceu e cresceu Bob Marley, maior ícone do reggae. Mas já conhecia bem de perto o forte cheiro de esgoto de Alagados, lugar escolhido por Irmã Dulce para iniciar seus trabalhos assistenciais.

Naquela noite, a música pulsante sacudiu de quarentões a adolescentes, tocados com ritmos e letras de canções como: “Aonde quer que eu vá”, “Alagados”, “Caleidoscópio”, “Ela disse adeus”, “Lanterna dos afogados”, “Meu erro”, “Óculos”, “Tendo a lua”, “Vital e sua moto”, entre outras.

Em menos de seis meses, numa tarde de domingo no começo de 2001, fiquei chocado com a notícia de que Herbert e sua mulher, Lucy Needhan-Vianna, haviam sofrido grave acidente com um ultraleve em Angra dos Reis, litoral sul do Rio. Ele teria perdido o controle da aeronave ao tentar executar uma manobra simples para quem era expert no assunto. Na queda, ficou paraplégico e Lucy, presa no cinto de segurança, morreu afogada.

Fui reencontrá-lo 13 anos depois, em Brasília. O semblante triste deixava nítido que as perdas ainda doíam muito. Só a desmedida paixão pelo que sabia fazer como poucos o mantinha conectado à vida. 

Traduziu bem essa conexão ao declarar numa entrevista algum tempo depois: “na música você consegue canalizar com igual intensidade alegrias e tristezas profundas. Um exemplo disso é quando eu, através de uma canção que a gente tem, digo: ‘Olhos fechados pra te encontrar, não estou ao seu lado, mas posso sonhar. Aonde quer que eu vá, levo você, no olhar’. 

Lucy, o grande amor de sua vida, deve ressuscitar nessas horas e o encoraja a sonhar, seguir adiante. É a arte a viver da fé, da crença de que ela está bem ali, só não vê quem não quer.

Toda tragédia como a que vitimou Herbert e sua mulher nos leva a pensar sobre quão fugaz é a vida. E mesmo assim, é praticamente impossível a qualquer um de nós viver apenas o presente, sem trazer os fardos pesados de ontem para a sala de estar de hoje e sem criar a falsa ilusão de que amanhã tudo poderá ser mais leve.

Penso nessas coisas e noto que pouco aprendi sobre a arte de viver da fé. Nunca me convenci, por exemplo,  de que  “querer é poder”. Para mim, isso não passa de um clichê surrado. Perguntem aos filhos da agonia que sobrevivem em Alagados, Trenchtown ou na Favela da Maré se querer é suficiente.

Eu bem queria nunca mais acordar de mau humor. Ser mais tolerante com quem pensa diferente de mim. Viajar sem pensar, desde a partida, no dia da volta. Ou discordar de quem diz que a morte nada mais é do que cair num sono profundo e não acordar nunca mais. 

Eu bem queria acreditar que o céu e o inferno não são aqui e agora, a partir do que faço ou deixo de fazer a cada momento, desde que acordo e decido se vou ao banheiro descalço ou de sandálias. Se vou caminhar logo cedo com o que trago dentro de mim da noite anterior ou se me empanturro de novas notícias na internet ou tevê.
 
Na arte de viver da fé, querer é pouco. Quase nada. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Asas cortadas no ninho

Meus irmãos não me deixam mentir e podem confirmar que um dia fui eleito prefeito da rua em que morávamos. Coisa de criança. Isso aconteceu em 1966, em Patos, Sertão paraibano, pouco depois da intensa cobertura das eleições estaduais, envolvendo João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (PSD), realizada pela Rádio Espinharas.

A apertada disputa voto a voto – João Agripino venceria com menos de 1% de vantagem – no final de 1965 empolgou o município e tocou fogo na meninada da Rua Bossuet Wanderley, a disputar quem juntaria mais “santinhos” dos dois candidatos. Mais tarde, parte desses papelotes serviriam de cédulas na votação para prefeito da rua. Para fazer o quê? Não sei. O que fazer depois de eleito nunca foi importante no universo político deste país.

Ninguém queria enfrentar Lindomar, chamado de “Lindo”, moleque dentuço, brigão, metido a intimidar crianças menores, filho caçula de Seu João da perfumaria. Seria derrota líquida e certa de quem se atrevesse a encará-lo em todos os sentidos. Vivia a imitar o lutador de luta-livre Ted Boy Marino (1939 – 2012), fazendo das esquinas ringues de brigas de rua no auge do “telecatch” na tevê.

Mas se não houvesse disputa não teria graça alguma. Alguém cogitou minha candidatura e a vaidade, por certo, me fez entrar na brincadeira. Acho que só não queria perder de goleada, porque a derrota era quase inevitável. De cerca de 21 moleques eleitores, na largada uns 15 declararam apoio a Lindo.

Zé Augusto, vizinho meu, estava quieto no seu canto a observar a paisagem, sentado no meio-fio junto a um poste de madeira. Era respeitado por ser mais velho, estudioso, um líder pré-adolescente. Foi o primeiro a quem procurei. Mas dele logo ouvi que não poderia pedir votos aos amigos porque não queria encrenca com Lindo. 

Ao pé do ouvido, porém, cochichou que me ajudaria no que pudesse. Lembrava, certamente, de que eu o flagrara alguns dias antes, por cima do muro do quintal, se esfregando numa cozinheira que trabalhava em sua casa. Se sua mãe soubesse disso a encrenca seria outra. E vejam que nem existiam smartphones para registrar a ocorrência. 

Já com os irmãos Cleto e Flávio, filhos de um conhecido advogado na cidade e amigos de Lindo, com quem partilhavam o hábito de fumar tocos de cigarro atirados ao chão que encontravam pelas ruas, devo ter sido mais explícito. Vira os dois aprendendo safadezas com o vigia de uma obra numa esquina nos fundos do Colégio Cristo Rei. Devo ter dito algo assim: 
– Votem em mim e podem dizer que votaram nele; fica só entre a gente...

Júnior, filho de um dos empresários mais ricos da cidade – dono da concessionária Willys nos anos dourados da Rural, Pick-Up, Jeep e Aero-Willis – foi outro que acabou trocando de lado depois que levou uns murros de Elpídio, irmão mais velho de meu adversário. Não tive nada com a briga mas confesso que podia separá-los e cruzei os braços, a pressentir que lucraria com a troca de sopapos. 

No dia da abertura da caixa de papelão improvisada como urna para votação secreta, veio a surpresa: fui eleito por um mísero voto de diferença, para desespero de Lindo, que chegou a exigir a recontagem dos votos. Era tarde. 

No final da apuração, uns gritavam aqui e outros acolá quando  surgiu na janela Dona Eudócia, minha mãe, bastante aborrecida com a algazarra: 
– Hayton, venha já pra casa! Saia do meio desses moleques senão vou contar pro seu pai que você só quer viver no olho da rua! – esbravejou. Chorei de raiva e constrangimento mas tive que renunciar ao cargo sem tomar posse. 

Mudaria com minha família para Alagoas no começo de 1968, acompanhando meu pai em sua vida cigana como funcionário do Banco do Brasil. Nunca mais ouviria falar daquela turma até voltar a Patos, 35 anos depois, quando soube que alguns dos meninos também haviam partido... para sempre. Envolvidos com arruaças e drogas, morreram em conflitos entre quadrilhas ou com a polícia.

Ao passar na praça Getúlio Vargas, onde fica o Hotel JK, lembrei que fora ali, numa escapulida de casa na boca da noite, enquanto todos jantavam, que os amigos de rua me convenceram a "ser macho" e beber pela primeira vez uns goles de ”cuba-libre“, mistura de rum Bacardi, Coca-cola e gelo que me dá ânsia de vômito até hoje.

Disse outro dia, e repito neste instante, que estaria até agora sob penitência se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão. Dei sorte. Pais farejam no ar certas coisas – como cheiro de terra molhada em plena estiagem – e tratam de cortar as asas de seus filhotes ainda no ninho. Parecem bruxos.


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

O rosto de Chico que guardei

Tem gente que é como cana-de-açúcar: mesmo esmagada, reduzida a bagaço, é doce, não consegue ser amarga. A cabeça está sempre fria, o coração quente e as mãos estendidas. Chico Gonçalves, que conheci na Bahia há quase três décadas, era assim. Nunca mais nos encontramos, mas guardei na memória sua imagem de companheirismo e generosidade.

Chico Gonçalves 
Julho de 1990. Tudo começou com um telex da direção geral do Banco do Brasil comunicando minha promoção, da pequena agência em Porto Calvo, interior alagoano, para o segundo escalão na hierarquia da empresa no maior estado do Nordeste.
– Ele bebeu ou ficou doido de vez... – comentara, dois dias antes, ao chegar em casa para o almoço, sobre consulta feita por Nivaldo Alencar, novo superintendente estadual da Bahia.
– O que aconteceu? – quis saber minha mulher, desconfiada de que pudesse estar a caminho uma nova mudança.
– Me ligou perguntando o que achava de ser indicado para o cargo de superintendente adjunto. Claro que topei na hora, mas pode ser trote!

Não era. O País ainda curava a ressaca das primeiras medidas da chamada Era Collor (1990 – 1992). E o banco havia decidido implantar projeto que chamara de Novo Rosto. Pretendia mudar radicalmente a cara para melhorar sua imagem no mercado global. Só se falava em reengenharia, downsising, outsoursing e outros remédios para os problemas  da organização.

Centenas de agências tiveram seus quadros reduzidos, gerando enorme quantidade de pessoas sem localização definida. A histórica estabilidade do emprego entrava em turbulência. Sem parâmetros de avaliação claros, da noite para o dia gerentes foram rebaixados de nível ou simplesmente coagidos a aposentar, enquanto outros eram promovidos a unidades melhores, com ganhos maiores, alguns sustentados apenas no compadrio que sempre existiu nas relações corporativas. 

Ao desembarcar em Salvador, aos 32 anos de idade, evidente que fazia ideia do peso da cruz que recairia sobre meus ombros. “É preciso ter dúvidas. Só os estúpidos têm uma confiança absoluta em si mesmos.” (Orson Welles). Mesmo assim, arregacei as mangas e fui à luta. Primeiro ato: procurar apartamento para morar.

Dia seguinte, já no novo ambiente de trabalho, era apresentado a Chico Gonçalves, a quem iria substituir e que fora afastado do cargo sem motivos concretos para a troca. Falou-se na sede do banco em “falta de perfil ”, “já deu o que tinha pra dar” e outras tolices sem nexo. Conversamos longamente, desde as circunstâncias de sua saída até a transição no trabalho.

Uma hora depois, se muito, ouvi dele algo inesperado e marcante: ao supor que eu teria dificuldades em conseguir fiador para o contrato de locação do imóvel que iria alugar, Chico prontificou-se a afiançar dizendo que fazia questão de dar a mão a qualquer colega que estivesse chegando à capital baiana sem conhecer ninguém.

Notei que acreditara quando lhe disse que, para mim, a indicação de meu nome teria sido para preencher cargo vago. Pensei: o que leva um homem, ainda sangrando, sentindo-se injustiçado, a não esmorecer em sua prontidão para servir ao próximo? De quantos “chicos” precisávamos para mudar o mundo?

Nem foi necessária a fiança. Mas perdeu completamente o sentido o velho conceito que dizia que as pessoas passam e as instituições ficam. Nenhuma instituição é eterna; todas desaparecem com o tempo. As pessoas, sim, perpetuam-se – em pensamentos, palavras, atos e omissões –, na tapeçaria de ambições e frustrações de que é feita qualquer grande empresa.

Em menos de um ano o vento sopraria noutra direção e as velas do barco foram reposicionadas. Foram trocados os dirigentes que implantavam no banco o Novo Rosto e Chico Gonçalves resgataria o cargo que ocupava.

Eu voltaria para Alagoas pouco tempo depois para administrar uma pequena agência na periferia de Maceió, no bairro Tabuleiro dos Martins. Na viagem pela BR-101, lembro de ter ouvido no toca-fitas, dentre outras canções,  Disparada, do paraibano Gerado Vandré. “... mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo, e nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando até que um dia acordei...”

Passados nove anos, retornei à Bahia em junho de 1999, agora nomeado superintendente estadual. E logo no primeiro mês fui convidado a participar de um almoço com funcionários aposentados, onde reencontraria o semblante fraterno, o novo rosto de paz e bem-estar de Chico Gonçalves, em seu merecido “dolce far niente”.

Pude então resgatar o que acontecera naqueles dias de incerteza e agradecê-lo de novo pela generosidade quando ali cheguei pela primeira vez. E me veio à cabeça outra vez os versos de Vandré: “... porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente...”

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Cocorotes

Sei que fui um menino arteiro, buliçoso, gaiato e outros adjetivos que quisessem dar, apesar de nunca ter preocupado meus pais em termos escolares. Sei também que eles não souberam metade do que aprontei quando criança e que nem devo contar agora para não servir de mau exemplo para os netinhos.

Estaria até hoje sob penitencia se tivesse contado ao padre todos os meus pecados antes da primeira e única comunhão na capela do Colégio Cristo Rei, em Patos(PB). Mas tudo me leva a crer que os cocorotes que colecionei em minha agitada cabeça purgaram todos os pecados, veniais e mortais, até a terceira geração de meus descendentes diretos.

Para quem desconhece o termo, cocorote (cascudo ou croque) é aquela pancada seca no cocuruto, com o dedo médio saliente da mão fechada de quem bate. Provoca uma dor lancinante, capaz de escurecer a vista e fazer o moleque gemer por uns cinco minutos. Dói mais do que topada no dedo mindinho. E, no meu caso, havia agravante: cocorote quase sempre vinha “com sobremesa” – beliscão ou puxão na orelhas, a depender da natureza do delito.

Cocorote, beliscão e puxão de orelhas eram considerados pequenos castigos para traquinagens de menor relevância como arengar com um irmão e ser alvo de delação premiada por parte de outro, fazer algazarra e acordar o pai no cochilo após o almoço ou não parar quieto um minuto sequer enquanto os cabelos eram penteados pela mãe, coitada, esbaforida em seus múltiplos afazeres.

Por falar em cabelos, a tolerância doméstica com castigos aparentemente brandos estimulava excessos até de pessoas alheias à casa, feito certos barbeiros. Como se não bastasse o corte militar, algumas vezes o cangote ardeu por conta da navalha passada às pressas, enquanto meus outros três irmãos (Nena, Lica e Dula) aguardavam o martírio mensal. Deve ser por isso que nunca esqueci a marca “Ferrante”, cunhada no pedal das cadeiras da barbearia.

De dentistas, cruz-credo, nem tolero lembrar. Desconheço sessentão que tenha passado a infância no interior e que ainda possua a dentição original em perfeitas condições. Já fomos a nação dos desdentados. O número de pessoas que não possuía sequer um dente da boca era enorme, talvez porque não se tinha a exata noção daquilo que mais provocava pânico na criançada: doido na rua a jogar pedras, “papa-figo” e dentista com a broca na mão, sorrindo, a dizer que não iria doer nada.

Ainda bem que, em 1964, ano em que comecei a cursar a escola primária, já havia sido abolido o uso da palmatória – exceto em algumas delegacias, claro! – introduzido no País pelos jesuítas como forma de doutrinar os índios resistentes à aculturação. A prática continuou durante a escravidão como um dos castigos aplicados aos desobedientes. Quando a educação por aqui ainda engatinhava, no século XIX, a palmatória ganhou sobrevida na escola, pelo menos até o final dos anos 50.

Sobrevivi a cocorotes, beliscões, puxões de orelhas, navalhadas no cangote, doidos de pedra de tudo que era jeito, mas continuo sob o miserável risco de tortura da infeliz da broca dental. Fico calado para não parecer um velho covarde, porém toda vez que vou ao dentista, mesmo que seja apenas para fazer uma limpeza de rotina, penso numa anestesia geral.

Vai que durante a assepsia resolve cutucar os caquinhos e descobre que precisa refazer alguma obturação antiga. Sem anestesia geral, juro que prefiro um cocorote com “sobremesa”. Sei que também escurece a vista, mas dói menos.

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

As coisas se arranjam

Na última frase da carta que deixou para sua mulher, Eudócia, antes de tirar a própria vida em maio de 1972, Agostinho lhe fez um compreensível e derradeiro apelo: “...Se puder viver sem outra companhia que não nossos filhos, faça-o.”

Não pôde. Aos 33 anos de idade, nove filhos para criar – aos quais, a bem da verdade, não deixaria nada faltar –, seria injusto negar àquela mãe o direito inerente ao “se”, exigindo-lhe que também renunciasse à vida. 


Se fosse comadre de Clarice Lispector (1920 – 1977), talvez tivesse ouvido algo assim: "A gente tem o direito de deixar o barco correr. As coisas se arranjam, não é preciso empurrar com tanta força..." 



Meses adiante conheceria Manelito, 36 anos, desenhista e publicitário, com quem viveria por 14 anos. Como se não bastassem os filhos que tinha para criar, trouxe da Paraíba para Alagoas sobrinho que fora abandonado pela mãe – clássico “toma que o filho é teu!" ocorrido com seu irmão Olívio. O instinto maternal ainda pulsava firme, apesar da ligadura de trompas.

Ciúmes e cerveja em excesso, por parte de Manelito, esgarçaram a relação. Acabaram separados. Ele até tentou reatar mas viu que não dava mais. Pouco antes de morrer, com diabetes descontrolada, pediu para revê-la mais uma vez e conseguiu. Já não havia paixão, mas compaixão. 


Quando seu filho Hélio (Lica) faleceu, em 1991, vítima do rompimento de um aneurisma cerebral, achei que ela, aos 53 anos, desabaria. Para mim, até hoje não sei como uma mãe aguenta sepultar um pedaço de si sem enlouquecer, com a alma dilacerada.


Ela ficaria viúva mais duas vezes. De Francisco, com quem conviveu apenas 12 meses, até ele sofrer infarto irreversível. E de Jailton, romance que não durou mais que seis meses. “O coitado já andava com o coração bem fraquinho”, ela disse. 


Se fosse vizinha de Cora Coralina (1889 – 1985), dela poderia ter ouvido: "Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras. E faz doces. Recomeça." 

Este mês completa 81 anos. Mora sozinha por opção, próximo à orla de Jatiúca, em Maceió, onde cuida de sua própria alimentação e faz caminhadas ao entardecer de três a quatro vezes por semana. Vaidosa desde menina, não vai nem à portaria do prédio sem antes retocar o batom e ajeitar os cabelos.

Não bebe nem fuma, mas adora ouvir e dançar boleros, sambas e valsas. Se existe algo que lhe chateia é gripar e não poder pegar seu carro e sair aos sábados e domingos a passear com Haydeé, filha mais velha. 

Do futuro, não espera muita coisa. Nada além de continuar a receber sua pensão todo dia 20 e ser bem assistida pelo plano de saúde que Agostinho lhe deixou. Espera ainda usar um vestido bem bonito e ser porta-alianças no casamento de Marina, 13 anos, primeira de 23 bisnetos.


Se fosse amiga de Cecília Meireles (1901 – 1964), eu diria que andaram orando juntas: "Senhor, fazei de mim como as ondas do mar, que fazem de cada recuo um impulso para ir mais adiante." 

Nunca leu Cecília, Clarice ou Cora Coralina. Nem precisou para ser feliz. Aprendeu cedo com o rio Paraiba a contornar pedras e seguir no rumo do mar. Livrou-se de uma vida sem graça, feita de amargura e ressentimento.
 

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Por um prato de sopa


Quinta-feira, 12 de junho de 2014. Sobravam ansiedade e medo no quarto do hotel em São Paulo onde minha mulher e eu assistíamos pela tevê a estreia do Brasil na Copa do Mundo contra a Croácia. Nem a vitória brasileira por 3x1 afastou a nuvem escura que havia sobre nós.

Naquela noite, Magdala seria internada no Hospital do Coração (HCor) para, na manhã seguinte, submeter-se a procedimento com o qual tentaria corrigir arritmia de altíssima frequência – irregularidade no ritmo cardíaco capaz de levar a colapso a qualquer momento.

Vivia sob tensão permanente e chegara até a fazer insuficiência cardíaca. Como médica, tinha consciência de que tudo poderia terminar sem aviso prévio. Eu mesmo havia visto em 2004, pela TV, o zagueiro Serginho ser fulminado dentro de campo numa partida entre São Caetano e São Paulo, vítima desse tipo de problema.

O que lhe dava esperança era estar sob os cuidados do Dr. José Carlos Pachón Mateos, um dos nomes mais respeitados na eletrofisiologia mundial. Fora do Brasil, inclusive, é conhecido por criar técnicas para curar arritmias graves com métodos pouco invasivos, que devolvem o paciente à vida normal com três dias de repouso. 

Na consulta pré-operatória, Dr. Pachón achou engraçado quando escutou da colega aflita algo mais ou menos assim: “Por favor, faça a minha cirurgia! Depois de tanta luta, não posso morrer agora e ver o 'véio' tomando um prato de sopa com outra mulher!”

Foram cinco horas de espera que mais pareceram uma semana. Tomei um susto medonho quando o interfone tocou e me orientaram a descer até uma sala reservada no andar do hospital onde ficava o necrotério, a dizerem que o Dr. Pachón gostaria de falar pessoalmente comigo.


Chegaria após 20 ou 25 minutos, transpirando, voz excitada, e contou que ele e sua equipe conseguiram corrigir cinco focos anômalos de arritmias, inclusive fora do músculo cardíaco (na artéria pulmonar). O coração, enfim, batia no ritmo normal.

Voltaríamos a Brasília dias depois, onde comemoramos o aniversário dela no domingo que antecedeu 8 de julho de 2014, data que ficou marcada para sempre na memória do povo brasileiro.

Naquele dia, a Seleção Brasileira, comandada pelo técnico Luiz Felipe Scolari, foi atropelada pelo time da Alemanha, que impôs o vexatório placar de 7x1 nas semifinais da Copa do Mundo.

Para nós, no entanto, haviam coisas em jogo muito mais importantes do que uma partida de futebol. Como, numa noite fria qualquer, poder de novo compartilhar um prato de sopa antes do sono chegar. Faz bem para o coração.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Sim, elas amadurecem antes


Andei lendo outro dia sobre diferenças de maturidade entre sexos numa pesquisa realizada no Reino Unido. Em resumo, conclui-se que o homem permanece emocionalmente imaturo até 43 anos de idade e a mulher atinge a maturidade emocional bem antes: aos 32. O trabalho revela ainda que 80% das mulheres acreditam que os homens “nunca deixam de ser crianças”. 

Cá entre nós, algumas atitudes de certos homens não deixam nenhuma dúvida sobre a lerdeza dessa maturidaderecontar as mesmas piadas e achar graça de novo, não se interessar por tarefas domésticas, confundir masculinidade com grosseria, arrotar em público, exibir bíceps e tríceps para demonstrar como são fortes, dentre outras tolices.

Desde que o mundo é mundo que as mães percebem logo cedo essa diferença entre suas crias, sobretudo nas famílias mais numerosas como a minha, com pais, cinco filhos e quatro filhas. Vi isso bem de perto quando Haydeé, irmã um ano mais velha, tornou-se adolescente pelo menos meio século – com exagero e tudo! – antes de mim.


Explico-me: no início dos anos 70, entre 12 e 13 anos, quando eu não estava comendo, dormindo ou na escola, queria mais era jogar bola à beira-mar ou nos campinhos de terra batida, jogar botões (futebol de mesa), ler a revista Placar ou mexer com os irmãos mais novos. Enquanto isso, Haydeé já suspirava ao ouvir Dio come ti amo ou quando assistia aos requebros de Elvis Presley. Lia muito fotonovelas e até desenhava suas próprias "novelas em quadrinhos", em meio a namoricos movidos a doses generosas de estrogênio e progesterona de ovários fresquinhos.

Nessa época, fazia enorme sucesso em Alagoas a banda LSD – Luz, Som & Dimensão, sob a liderança do talentoso Djavan, a embalar as noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida, com os hits do momento. Haydeé, claro, queria ir à boate toda sexta-feira. Mas Seu Agostinho, nosso pai e então secretário do clube, nesse particular era inflexível feito porta de cofre: “só vai se Hayton lhe acompanhar!”.

Como conseguiria me convencer se, todo dia, no máximo às 10 horas da noite, eu já estava morto de sono? E se fosse à boate, cadê coragem pra convidar uma menina qualquer para dançar? Ir apenas para dormir no desconforto de uma cadeira dura, sob o barulho ensurdecedor da banda, a inalar fumaça de cigarros até a hora de voltar para casa? Seria martírio demais.

Estudávamos no Colégio Benedito de Moraes, na Ponta da Terra. Não deve ter sido muito difícil para ela armar uma arapuca e me pegar feito um filhote de canário-da-terra. Sabia que eu também gostava de fazer meus rabiscos e, numa manhã de sexta-feira, pediu a um colega de turma que me desafiasse a desenhar uma cena de sexo explícito daquelas de revistinhas suecas, fonte inesgotável de curiosidade e deleite da molecada nos banheiros encardidos. 

Em pouco tempo o besta aqui rabiscou algo com toda carga erótica possível, assinou no rodapé e o escroque ainda inflou meu ego a dizer que nunca vira nada igual a não ser nos "catecismos" de Carlos Zéfiro (1921 – 1992). Meia hora depois minha irmã apareceria triunfante com a "obra de arte" nas mãos: "Como é, vai ou não vai à AABB hoje à noite?"

Caiu a ficha do retardado! Se me atrevesse a responder “não”, meu pai saberia o que eu andava "estudando" na escola e possivelmente me inspiraria com seu velho cinturão de couro a escrever mais tarde um parágrafo a mais na crônica “Memória de minhas surras tristes”.

Engoli seco e ali aprendi, na prática, o que era a tal da chantagem emocional, pelo menos durante as quatro semanas seguintes. 

Enquanto isso, vasculhava cada centímetro da casa em que morávamos à procura do desenho. Até que um dia, folheando “Grande Hotel”, revista de fotonovelas favorita de Haydeé, vi numa história que a protagonista escondera uma carta comprometedora num quadro de parede, entre o tampo traseiro e a gravura. 


Ao encontrar o danado do desenho, nem cogitei guardá-lo em lugar alternativo, seguro. Picotei-o, joguei os pedaços no vaso sanitário e acionei a descarga para ter certeza de que o sofrimento chegara ao fim. Ainda bem que na época não existiam fotocópias. E a digitalização de papéis não havia nem nas revistinhas de "Flash Gordon".

À noite, vestida e maquiada, pronta para sair, minha irmã espantou-se quando lhe disse que não iria mais à boate. Correu então ao local onde escondera o desenho e ficou furiosa ao descobrir que já não possuía "argumento" para me convencer. 

Penso que nosso pai, mesmo sem desconfiar de que o filho estava sendo vítima de "condução coercitiva", gostou da decisão e reconheceu que eu vinha sendo um bom irmão naquelas últimas semanas. Para ele, não precisava sairmos toda sexta-feira, deixando-o preocupado até alta madrugada.

Sim, elas amadurecem antes. A astúcia de minha irmã só confirmava a velha tese que se arrasta desde os tempos de Adão e Eva: mulheres conhecem bem mais de estratégias de manipulação e camuflagem de sentimentos do que homens.

Homens, como elas mesmo dizem, “nunca deixam de ser crianças”. 
Deve haver um anjo da guarda de plantão a protegê-los. Se não, viver fica perigoso demais. 
  

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Quando a vida pede passagem



Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “… O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco…”

Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.


Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.

Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.

Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.

Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.

Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.

Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”

Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.

A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no esplendor da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

Semana passada toquei no assunto com Zé. Indaguei se, após tanto tempo, ainda recordava de nossa conversa, ao que respondeu que lembrava sim, perfeitamente. Disse ainda que cada vez que vê fotografia dos gêmeos, conscientiza-se do “milagre”, como que reafirmando a força e os mistérios da vida, insondáveis para nós.

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!

"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).

Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “...o tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão...”

Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “...Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar...”

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Menino Maluquinho


Mineiro de Caratinga, 86 anos, cartunista, desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista e pintor, conheci o grande Ziraldo pouco antes do Natal de 2004, em Brasília, na entrega de uma decoração bem tupiniquim que havia preparado para a fachada da principal agência do Banco do Brasil. 

Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil. 

Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão. 

No meio daquela tarde, confesso que tive pena de Fonseca, meu velho e bom parceiro de tantas lutas, que por algum motivo besta – trabalho, por exemplo – não pôde ir ao evento comigo ver de perto, em carne e osso, um de nosso ídolos. Nunca mais teríamos outra oportunidade.

Ziraldo também é "pai" de outro personagem maravilhoso, bem urbano, criado na metade dos anos 60: Jeremias, o bom. Diferente do famoso Amigo da Onça, de O Cruzeiro – revista semanal de cabeceira de meu pai –, era generoso, humilde, solidário, e suas tiras me encantavam, ainda que não tivesse maturidade suficiente para entender o conteúdo político delas. 

Assim que pude, puxei conversa perguntando se recordava uma tira em que Jeremias, sensibilizado com tantas crianças a vender confeitos na porta do cinema, comprara o estoque geral da molecada e acabou diabético. Ele sorriu, respondeu "sim" e quis saber como eu lembrava daquilo. Aí a conversa pegou pressão de vez.

Havia lido em algum lugar que os nomes do casal Zizinha e Geraldo deram origem ao nome do filho.  Talvez por isso, achava que o personagem fosse inspirado no "velho". Mas Ziraldo esclareceu que nunca se inspirava numa única pessoa: "...todos nós conhecemos alguém daquele jeito... tanto que na época em que foi criado, muita gente ganhou apelido de Jeremias...”. Coisa de gênio. Recordei na hora de almas boas que cruzaram meu caminho – Albanise, Arnaldo, Cristiano, Tania Santos, entre outras – e me ensinaram a seguir em frente com mais leveza.

Conversamos também sobre a crise que acabou fechando as portas da editora Codecri, cujo carro-chefe era O Pasquim, o semanário mais bem-humorado do Brasil que, no início dos anos 70, chegou a vender 250 mil exemplares por semana.

Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros , faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras. 

Da editora Codecri – acrônimo de "Comissão de Defesa do Crioléu", inventado pelo magistral cartunista Henfil , além de uma dívida enorme, impagável, restou o legado de O Pasquim, que se tornaria símbolo do jornalismo irreverente e contestador ao regime militar. 

Ziraldo passaria a escrever livros infantis e, em 1980, lançou O Menino Maluquinho, um dos maiores fenômenos editoriais brasileiros de todos os tempos. Obra que já foi adaptada para cinema, teatro, ópera infantil e até videogame, já ultrapassou a 100ª edição, com mais de 2,5 milhões de exemplares vendidos, em 11 idiomas e 21 países. Além do papel, tem versão digital e é o terceiro e-book mais baixado do país.


Dia desses correu o boato nas redes sociais da morte de Ziraldo. Ele mesmo desmentiu ao postar foto no Instagram,  vivo e brincalhão como sempre. Andava sumido desde que sofreu derrame em 2018, quando foi internado em estado grave mas conseguiu recuperar-se, recebendo alta um mês depois.


Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.