Menino Maluquinho
Mineiro de Caratinga, 86 anos, cartunista, desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista e pintor, conheci o grande Ziraldo pouco antes do Natal de 2004, em Brasília, na entrega de uma decoração bem tupiniquim que havia preparado para a fachada da principal agência do Banco do Brasil.
Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil.
Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão.
Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil.
Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão.
No meio daquela tarde, confesso que tive pena de Fonseca, meu velho e bom parceiro de tantas lutas, que por algum motivo besta – trabalho, por exemplo – não pôde ir ao evento comigo ver de perto, em carne e osso, um de nosso ídolos. Nunca mais teríamos outra oportunidade.
Ziraldo também é "pai" de outro personagem maravilhoso, bem urbano, criado na metade dos anos 60: Jeremias, o bom. Diferente do famoso Amigo da Onça, de O Cruzeiro – revista semanal de cabeceira de meu pai –, era generoso, humilde, solidário, e suas tiras me encantavam, ainda que não tivesse maturidade suficiente para entender o conteúdo político delas.
Ziraldo também é "pai" de outro personagem maravilhoso, bem urbano, criado na metade dos anos 60: Jeremias, o bom. Diferente do famoso Amigo da Onça, de O Cruzeiro – revista semanal de cabeceira de meu pai –, era generoso, humilde, solidário, e suas tiras me encantavam, ainda que não tivesse maturidade suficiente para entender o conteúdo político delas.
Assim que pude, puxei conversa perguntando se recordava uma tira em que Jeremias, sensibilizado com tantas crianças a vender confeitos na porta do cinema, comprara o estoque geral da molecada e acabou diabético. Ele sorriu, respondeu "sim" e quis saber como eu lembrava daquilo. Aí a conversa pegou pressão de vez.
Havia lido em algum lugar que os nomes do casal Zizinha e Geraldo deram origem ao nome do filho. Talvez por isso, achava que o personagem fosse inspirado no "velho". Mas Ziraldo esclareceu que nunca se inspirava numa única pessoa: "...todos nós conhecemos alguém daquele jeito... tanto que na época em que foi criado, muita gente ganhou apelido de Jeremias...”. Coisa de gênio. Recordei na hora de almas boas que cruzaram meu caminho – Albanise, Arnaldo, Cristiano, Tania Santos, entre outras – e me ensinaram a seguir em frente com mais leveza.
Conversamos também sobre a crise que acabou fechando as portas da editora Codecri, cujo carro-chefe era O Pasquim, o semanário mais bem-humorado do Brasil que, no início dos anos 70, chegou a vender 250 mil exemplares por semana.
Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros –, faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras.
Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros –, faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras.
Da editora Codecri – acrônimo de "Comissão de Defesa do Crioléu", inventado pelo magistral cartunista Henfil –, além de uma dívida enorme, impagável, restou o legado de O Pasquim, que se tornaria símbolo do jornalismo irreverente e contestador ao regime militar.
Ziraldo passaria a escrever livros infantis e, em 1980, lançou O Menino Maluquinho, um dos maiores fenômenos editoriais brasileiros de todos os tempos. Obra que já foi adaptada para cinema, teatro, ópera infantil e até videogame, já ultrapassou a 100ª edição, com mais de 2,5 milhões de exemplares vendidos, em 11 idiomas e 21 países. Além do papel, tem versão digital e é o terceiro e-book mais baixado do país.
Dia desses correu o boato nas redes sociais da morte de Ziraldo. Ele mesmo desmentiu ao postar foto no Instagram, vivo e brincalhão como sempre. Andava sumido desde que sofreu derrame em 2018, quando foi internado em estado grave mas conseguiu recuperar-se, recebendo alta um mês depois.
Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.
Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.
Mais uma bela narrativa de um momento especial de tua vida, amigo. Lembro que uma das características das publicações do Ziraldo era a irreverência, o que as tornava muito interessantes e atrativas.
ResponderExcluirÉ atribuída a Ziraldo esta frase: “não fossem os amigos de infância e os espelhos, a gente não saberia que está ficando velho.” Resume o espírito do gênio, não é mesmo Jezrel?
ExcluirConcordo plenamente com ziraldo!
ExcluirNo período mais autoritário do país, surge sua fase mais criativa. O Pasquim e Ziraldo, seu líder criativo, foram o sopro de esperança e bom humor que confortam em meio ao arremedo de sombras que perturba a mente daquele que atualmente deveria nos liderar. Rir será sempre o melhor remédio.
ResponderExcluirÓtima crônica, meu caro Hayton. Vejo que além da Placar tínhamos outra devoção partilhada: O Pasquim. Forte abraço do Sidney.
ResponderExcluirLegal, Hayton!
ResponderExcluirPara aquele período de trevas, o Pasquim e sua turma bagunçada foi um “sopro” de luz para uma geração atônita.
Bom que você documente um pedacinho dessa história!
Maravilha relembrar a obra do Ziraldo! Talento artístico e cultural! Mais uma criação do Pasquim, apesar de já ter história anterior! Inesquecível Ziraldo!!!
ResponderExcluirMais uma maneira de gostar da esquerda festiva em tempos de ultra direita!!!
ResponderExcluirMuito bom. Ziraldo é daqueles que marcaram época e que é eterno em nossas lembranças com sua obra e incrível.
ResponderExcluirBela memória, excelente texto! O Menino Maluquinho foi uma das obras responsáveis pelo meu gosto pela leitura. Viva o mestre Ziraldo!
ResponderExcluirA primeira crônica que publiquei neste blog, Rodrigo, acaba assim: “A gente acaba convencido, mais cedo ou mais tarde, de que o velho que hoje nos olha no espelho do banheiro não passa da casca que envolve uma criança ainda bem viva dentro de nós, vestida para o espetáculo da vida com seus novos brinquedos que surgem a cada amanhecer.” Acho que a obra de Ziraldo nos remete a tudo isso, não?
ExcluirAmei
ExcluirLeveza de texto. Que privilégio conhecer uma parte da história deste País. Porque Ziraldo é isso, como os demais citados na crônica. Saboreei.
ResponderExcluirHayton, parabéns pelo excelente texto. Justa homenagem ao velho Ziraldo, criador de personagens memoráveis como 'Jeremias, o bom', antítese dos representantes da ditadura militar.
ResponderExcluirAgostinho Torres
Com certeza. Parabéns pelo belo artigo. Do amigo Fernando Miranda
ResponderExcluirHayton, mais uma excelente crônica que além de dar gosto de ler , faz lembrar o menino maluquinho que cada um tem dentro da gente
ResponderExcluirAmigo Hayton,
ResponderExcluirExcelente narrativa, é a vida pulsando nas palavras e linhas do seu texto. Trazendo a satisfação por lê e viver a história.
Genial, Hayton. Ziraldo é um dos gênios do nosso Brasil, atualmente sem incentivo para a cultura. Tem momentos que eu penso que poderia ter poder para mudar alguma coisa no passado. Com certeza aquele seu encontro com o Ziraldo em frente ao Edifício sede I é um desses momentos. Como eu me arrependo não ter te acompanhado ......
ResponderExcluirComo tanta coisa nessa vida, Fonseca, a gente só tem uma oportunidade de vivenciar. E só se dá conta disso mais adiante. Aí é tarde. Um dia a gente aprende. Somos novos. Rsrsrs
ExcluirAmigo e Cronista Hayton, Bela homenagem ao Mestre Ziraldo. O texto agradável nos remete a boas lembranças da infância/adolescência. Ziraldo foi genial e um forte resistente em um período sombrio do nosso País.
ResponderExcluir"Ói" eu aqui de novo. Mais uma pérola, Hayton, e sempre mexendo com a gente ao nos proporcionar boas lembranças. Fui leitor asasíduo do Pasquim, única publicação que ousava cutucar a ditadura num tempo infeliz como aquele. Ziraldo é gênio, além de ser uma figura humana de uma sensibilidade singular. Aqui é mais um UNKNOWN, de apelido Volney.
ResponderExcluirJá estou conhecendo bem a sua “caligrafia”, meu amigo Volney. Nem se preocupe. Obrigado pela generosidade de sempre.
ExcluirO Pasquim marcou uma epoca
ResponderExcluir👏👏👏👏👏👏👏
ResponderExcluirO tempo passa pra todo mundo, mas o menino maluquinho - que ainda habita em cada um de nós - pode ser um gerador energias, se soubermos saborear as delícias que estão presentes na boa literatura, como a do mestre Ziraldo.
ResponderExcluirPrezado amigo Hayton,sua humildade não o deixa nem pensar coisa tal, mas vc também, ao molde do genial Ziraldo, consegue dar uma leveza admirável ao seu texto! Temos várias mostras aqui no blog. Este é mais um para curtirmos.
ResponderExcluirAmigo Hayton, que maravilha de texto, ainda mais pra falar de um mineirinho tao importante para a literatura brasileira. Abs Leo
ResponderExcluirDelícia de leitura!
ResponderExcluirAna Sofia já anda se divertindo com o filme... e eu tendo que assistir repetidas vezes!!😍😍
Se seguir seus passos, Nana, e do velho Avelar, a menina irá gostar do que é bom em termos de música, artes cênicas e plásticas.
ExcluirEsta crônica é uma bela moldura para o lindo quadro de Ziraldo e sua obra.
ResponderExcluirAmigo,
ResponderExcluirO texto está muito bem elaborado, pois retrata um momento da nossa historia contemporânea, onde as verdades eram suprimidas e o grande Ziraldo com humor e irreverência mostrava a realidade.
Esse é um ícone da literatura brasileira... difícil que não leu alguma coisa que ele tenha escrito. É imortal mesmo...
ResponderExcluirmuito legal. sou admirador de seus personagens.
ResponderExcluirInfelizmente Ziraldo não fez parte da minha realidade. Meu nível cultural nunca chegou a tanto, talvez por isso nunca tenha me interessado por suas publicações. Também faço parte daquele exército de ignorantes que achava que ele já tinha morrido. Mas se você está falando bem deve ser coisa boa.
ResponderExcluirAccampos.
Beleza de crônica, Hayton!
ResponderExcluirO Ziraldo é um ícone da nossa cultura, merecendo todas homenagens por tudo que criou e por seu posicionamento político nos anos de chumbo, junto com todo aquele grupo do Pasquim.
A frase atribuída a ele, "Não fossem os amigos de infância e os espelhos, a gente não saberia que estava ficando velho", realmente é espetacular.
A gente percebe a passagem do tempo, principalmente, quando encontra amigos de infância ou juventude que há muito não ver.
Isso aconteceu comigo. Fui a dois encontros no Rio de Janeiro: um na capital e outro em Cabo Frio. O primeiro, da Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil, o segundo, da minha turma de ginásio. Foi muito legal! A maioria, hoje, avôs e avós. A imagem que eu guardava de muitos, na batia, nem de longe, com aquela que eu estava vendo. O tempo tinha exercido sua ação impiedosamente. Com alguns, o tempo parece ser mais implacável. Mas ninguém fica imune.
É como diz Drummond em Versos à boca da noite:
Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva.
Há muito suspeitei o velho em mim.
Grande abraço.
Marival.
Parabéns Hayton, por mais uma belíssima crônica. É admirável como como você não perde em conhecimentos de qualquer assunto. Você é iluminado e eu fico só aplaudindo as suas estratégias de memória. Só tenho é que aplaudir é mandar o meu abraço. Cristina
ResponderExcluirO humor é uma das mais refinadas formas de inteligência e de redenção da humanidade. À sagacidade de Ziraldo juntam-se a fina ironia de Millôr e a irreverência do inigualável Apparício Torelly (Aporelly), o Barão de Itararé! Só para citar uma minina tríade de gênios dessa grande arte. Rir talvez seja o remédio último antes que o desespero nos consuma, em meio a um mundo de tantas dúvidas.
ResponderExcluirMais uma ótima crônica, meu caro Jurema!
ResponderExcluirNavegar por vários temas, tem sido, a cada sábado/domingo, bons momentos de reflexões.
Lembro bem desta campanha e quando este ícone da literatura brasileira ia na presidência do BB no sed III.
ResponderExcluirGenial Hayton! Precisamos de alguém que reavive em nós momentos de grande expressão artística que nossos gênios nos presentearam, como Ziraldo.
ResponderExcluirBom texto, ainda que se trate de dor. Dificilmente quem tem família não passe por esses tipos de apertos. O que precisamos sempre, quando eles acontecem, é ter fé, calma, não perder jamais a esperança, pois tudo na vida um dia passa, inclusive essas dores maiores.
ResponderExcluirParabéns, parabéns! Mais um texto fantástico. Naveguei na leitura.
ResponderExcluirA altura do mestre Ziraldo.
Acho que você escreveu premonitoriamente um doce e belo epitáfio do grande artista que foi Ziraldo. Deus o tenha! Diniz.
ResponderExcluirConheci um dos personagens reais de Ziraldo. O ADÃO JACARÉ, nosso colega do BB
ResponderExcluirGrande personagem brasileira
ResponderExcluirAh, Hayton, fiquei muito triste com essa partida do Pai do Menino Maluquinho. Mas estou encantada com essa sua crônica, com tantas informações que não sabia de Ziraldo. Como é bom não perdermos as oportunidades que a vida nos oferece: inovar na decoração natalina de uma agência, ousar realizar um sonho de estar com uma celebridade do bem e, sobretudo, dar um testemunho da grandeza de uma pessoa quando ela ainda está viva e lúcida. Parabéns a você e que Ziraldo possa reencontrar a inesquecível turma do Pasquim para movimentar a eterna paz celestial.
ResponderExcluirCaro Hayton! Aqui é o seu amigo Miltinho! Fiquei emocionado ao ler sua homenagem ao grande Mestre Ziraldo! Que Jesus o ilumine sempre! 👏👏👏👏🥇🏆
ResponderExcluirQue Deus receba o Menino Maluquinho e dê juízo a tantos Velhinhos Malucões que aqui ficaram.
ResponderExcluirEspero que meus netos também leiam.
ResponderExcluirEu me identifiquei muito com o livro "O Menino Maluquinho", mas infelizmente as atuais e próximas gerações vão achar que as aventuras dele eram todas ficção. Que aquele mundo nunca existiu.
Mas ele existiu sim!
"...se, de repente,
ficasse muito vazio
ele inventava o abraço
pois sabia onde estavam
os braços que queria"
"E foi aí que
todo mundo descobriu
que ele
não tinha sido
um
menino
maluquinho
ele tinha sido um menino feliz!"
Ziraldo