Pouco antes das oito da manhã de sexta-feira passada, ele varria o calçadão da orla da Ponta Verde, em Maceió. Do peito e da garganta surgiram vibratos poderosos ao cantar um antigo sucesso de Roberto Carlos: “... Como vai você/ Eu preciso saber da sua vida...”
Imagem: arquivo pessoal |
Não sei o que o mexia com ele. Se a lembrança da mulher amada, que o teria largado em busca de novas emoções, ou estaria em casa à sua espera, cuidando das crianças. Se o time do coração, no sufoco para garantir a permanência na série B do Campeonato Brasileiro, ou se apenas jogava ao vento o seu canto vibrante.
Sei que sorria, e qualquer um sabe que a música é capaz de reproduzir, da forma mais perfeita e acabada, a dor que rasga a alma de alguém ou a magia de um sorriso que derrete em questão de minutos rancores incrustados.
Em dado momento, ele fez da vassoura um microfone de pedestal, como se o sol que atiçava o alaranjado de sua roupa fosse os refletores de um palco imaginário, diante de uma plateia apressada. Ainda assim, escorriam alegria e suor da testa às dobras do pescoço.
Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz.
Duvido que tenha tomado um café da manhã decente (quase certo de que não!), antes de pegar no cabo da vassoura e ir à luta. Ou se sabe a hora em que irá lavar as mãos e se sentar numa mesa para engolir a primeira colherada de arroz, feijão, farinha e uma improvável fonte proteica (um ovo quebra o galho nessas horas).
Pela leveza do semblante, duvido que viva magoando feridas de uma infância dura, de poucas letras e números, e quase nenhuma esperança. Ou que culpe os pais pelos dissabores da correria de hoje na busca por merecer o salário de fome, no desencontro entre o feijão e o sonho.
Duvido ainda que tenha consciência de que mais de 130 anos já se passaram desde a abolição da escravatura e, mesmo assim, o chão em que veio ao mundo continua longe de virar uma democracia racial.
Nem desconfia, imagino, de que as marcas da exploração que durou mais de três séculos e a falta de políticas públicas de reparo seguem refletidas no nível de mal-estar da maioria da população, composta por pretos e pardos (quase 60%).
Sei que o tema merece reflexão mais profunda. Mas hoje quero falar apenas de um alagoano que encontrei por acaso, sorrindo e cantando Roberto Carlos, quando talvez devesse cantar Belchior de meio século atrás: “... Quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês...”
Deste alagoano que, certamente, pouco entende do sistema democrático e de como funciona, da independência e autonomia entre os três poderes, da importância dos partidos políticos e do debate de projetos no Congresso Nacional. Isso deve ser coisa de brancos e ricos. Tenho dúvida, aliás, sobre se estes últimos de fato entenderiam, pois, antes de entender, é preciso querer.
Deste alagoano que, tudo indica, não é daqueles que apreciam o patriarcado secular existente por aqui, que vê como seres inferiores os membros pertencentes a outras "minorias" que não a sua. Daqueles que enxergam o desemprego dos outros, antes de tudo, como preguiça, falta de garra, indolência vocacional e hereditária.
Quem canta e sorri desse jeito não pode ser do mal, não pensa assim. Sei disso porque tenho o hábito de guardar a ferrolho e cadeado a primeira impressão sobre as pessoas que conheço, ainda que me frustre mais do que gostaria, sobretudo quando lido com algumas almas confusas, pertencentes às classes mais favorecidas.
Segui pelo calçadão, ruminando o meu saco de interrogações sobre a tolice que é me importar (e sofrer) com a opinião alheia sobre o que fiz ou deixei de fazer.
Na volta, não resisti e pedi ao “cantor” para fotografá-lo, como retrato do bem-estar. Parecia que a alma de Drummond estava ali, lembrando: “eu não avisei que ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade?”. Ou a de Verissimo, o pai, garantindo que “felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente.”
Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. Até um cabo de vassoura (inclusive de uma bruxa) e uma canção que se ouvia no rádio antigamente têm a magia de despertar coisas belas e adormecidas.
Leva tempo, mas uma hora a gente aprende que é estupidez achar que os outros têm o poder de nos fazer infelizes para sempre.