Eu sabia fazer botão de futebol de mesa de um jeito perigoso. Numa “panelinha” medidora de leite em pó, untada com sabão, misturava pedaços de material plástico rígido (tampas de frascos de remédios, restos de canos, de lanternas quebradas de automóveis etc.) que encontrava no lixo. Depois, derretia numa chama de lamparina ou vela, inalando alguma fumaça. Quando a temperatura diminuía, abaulava no chão de cimento as bordas, polia com folha de cajueiro bravo e, com uma flanela, esfregava pó de sobras de azulejo até brilhar.
Antes dessa "técnica", usava quengo (casca) de coco como matéria-prima. Mais tarde, aprendi a fazer botão de “vidro inquebrável” – era assim que chamávamos acrílico há pouco mais de meio século.
Desaprendi tudo. Duvido que hoje tivesse coragem de quebrar a janela de acrílico, rachada, do ônibus que fazia a linha entre os bairros de Ponta da Terra e Ponta Grossa, em Maceió, para, na Praça das Graças, escapar pela porta de entrada sem pagar a passagem, mesmo tendo no bolso o passe estudantil.
Duvido que fosse capaz de usar uma serra para tubos de PVC e cortar quadrinhos de acrílico de mais ou menos 4cm x 4cm, arredondando-lhes as quinas no batente do quintal da casa em que morávamos na rua da Vitória, próximo ao mercado, no bairro da Levada. Depois, colar entre dois discos quase perfeitos a imagem de um jogador de futebol, recortada da revista Placar. Ao lado dela, fixar nome ou apelido e o número da camisa que defendia. O rito de acabamento era o mesmo dos botões feitos na “panelinha” medidora de leite em pó.
Você que é mais novo – chega uma época em que quase todo mundo é mais novo do que a gente – pode não acreditar, mas houve um tempo em que não se tinha dúvidas sobre quem eram os donos das camisas nº 10 de Santos (Pelé), Palmeiras (Ademir da Guia), Corinthians (Rivellino), São Paulo (Pedro Rocha), Cruzeiro (Dirceu Lopes), Botafogo (Jairzinho), Fluminense (Samarone), Vasco (Silva) etc. Ídolos como Roberto Dinamite e Zico explodiriam um pouco mais tarde, em 1973.
E caprichávamos para que o nº 10 fosse o botão mais temido, quando, de palheta ou pente na mão, olhar fixo e respiração contida, dávamos o ultimato ao adversário: “coloque-se!”.
Restava ao oponente implorar aos deuses do futebol de botão para que o goleiro – caixa de fósforos revestida com as cores e o escudo de seu time, cheia de grãos de chumbo para não fraquejar ao menor esbarrão – defendesse o tiro, evitando que a bola acabasse no fundo da meta. Tanto mais se a partida estivesse empatada e o árbitro, de olho nos ponteiros do relógio, emitido o alerta: “10 segundos pra acabar... Último chute!”
Deuses, aliás, que devem guardar consigo uma boa desculpa para o fato de o meu nº 10 nunca ter sido lá essas coisas. Vivia perdendo gols “feitos”. Talvez porque Silva, o “Batuta”, tivesse vida pregressa suspeita, ligada ao Flamengo. Na vida supostamente real, ele só chegou ao Vasco aos 30 anos de idade, em fim de carreira, para participar da campanha vitoriosa do Campeonato Carioca de 1970.
Meu botão de “vidro inquebrável” quase perfeito, cruel, implacável com meus “inimigos” de rua ou de casa, era o nº 8: Buglê. Disparado o melhor deles, era capaz de façanhas memoráveis, como acertar 99% das finalizações em embates contra o São Paulo ou o Fluminense de meus irmãos Agostinho (Nena) e Hélio (Lica).
O “outro” Buglê (José Alberto Bougleaux), o das narrações inesquecíveis de Waldir Amaral, da Rádio Globo, é autor do primeiro gol da história do Mineirão, num jogo entre a Seleção Mineira e o River Plate, da Argentina, realizado em 5 de setembro de 1965. Começou sua carreira no Atlético-MG, depois defendeu o Santos, onde atuou ao lado de Pelé, Carlos Alberto, Clodoaldo etc., antes de, aos 24 anos, virar ídolo vascaíno, entre 1968 e 1974. Jogou até os 32 anos, aposentando-se em 1976, no América-MG.
E tocou sua vida na ladeira sem volta da meia-idade. “O tempo só anda de ida”, dizia o poeta Manoel de Barros, que via na infância um território de liberdade e defendia o "criançamento" das palavras. “Meu quintal é maior do que o mundo", dizia.
Fiquei sabendo bem depois que Buglê fixara residência em Brasília. Conheci-o no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, na abertura oficial da exposição “Brasil... um país, um mundo”, em dezembro de 2013. Quem me apresentou foi Clodoaldo, volante tricampeão mundial no México, em 1970, que também conheci naquela ocasião.
– E aí, Buglê, o que tem feito da vida? – puxei conversa.
– Nada muito sério. Depois que larguei o futebol, moro aqui numa chácara, cuido de umas cabeças de gado, pesco, tomo minha cervejinha, essas coisas...
– Você não vai acreditar... – e lhe contei esta história.
Descobri agora que ele convive com o Mal de Alzheimer desde 2014, ano seguinte àquele em que nos conhecemos. Havia um quê de lamento em suas palavras, talvez por não ter feito tanto quanto poderia depois que deixou de jogar futebol.