Postagens

Uma hora a gente aprende

Imagem
Pouco antes das oito da manhã de sexta-feira passada, ele varria o calçadão da orla da Ponta Verde, em Maceió. Do peito e da garganta surgiram vibratos poderosos ao cantar um antigo sucesso de Roberto Carlos: “... Como vai você/ Eu preciso saber da sua vida...”   Imagem: arquivo pessoal Não sei o que o mexia com ele. Se a lembrança da mulher amada, que o teria largado em busca de novas emoções, ou estaria em casa à sua espera, cuidando das crianças. Se o time do coração, no sufoco para garantir a permanência na série B do Campeonato Brasileiro, ou se apenas jogava ao vento o seu canto vibrante.   Sei que sorria, e qualquer um sabe que a música é capaz de reproduzir, da forma mais perfeita e acabada, a dor que rasga a alma de alguém ou a magia de um sorriso que derrete em questão de minutos rancores incrustados.    Em dado momento, ele fez da vassoura um microfone de pedestal, como se o sol que atiçava o alaranjado de sua roupa fosse os refletores de um palco imaginário, diante de uma p

Dever de casa

Imagem
Achei interessante uma tarefa escolar de Camilinha, filha adolescente de um amigo meu: entrevistar um idoso que não seja de sua família para saber quais seriam as “12 coisas mais desagradáveis da vida”. Na próxima semana, cada aluno da turma escolherá uma das respostas, para reflexão em sala de aula sobre como lidar com os mais velhos.   É incomum o estímulo à conversa entre jovens acerca do lado maçante da vida e suas múltiplas formas de atingir os mais próximos do desembarque. Se der certo, pode acelerar a maturidade deles com o exercício da empatia, de colocar-se no lugar dos outros.   Sem muito pensar, e para ajudar a menina linda e bem-educada a fazer, já na sexta-feira, o dever de casa previsto para o fim de semana, apontei “coisas” que me aborrecem bastante, aqui dispostas em ordem meramente alfabética porque troco uma pela outra e dispenso troco. São elas:    – Andar de bicicleta.  Existe uma incompatibilidade séria entre o selim e o último osso da minha coluna vertebral. Outro

Ajoelhou? Tem que orar!

Imagem
No calor das paixões que vêm de dentro, tem muita gente fazendo promessas ousadas para que seu clube alcance um objetivo como a conquista do título, o acesso à divisão superior ou a fuga do rebaixamento. A ansiedade é enorme. Conta-se, como na bela metáfora de Alceu Valença, que um novo tempo, mais brilhante, peito nu, cabelo ao vento, estaria por chegar.  "Um homem é um homem e um cascabulho de jaca é um cascabulho de jaca!", dizia um delegado de polícia que conheci em Pernambuco. E arrematava: "Um homem não tem que prometer nada a ninguém, mas se prometer, vai ter que cumprir".    Duas semanas atrás, o equatoriano Kevin Josué Mina Quiñónez, jogador de futebol que atua no Club Desportivo Real, de Santa Cruz de La Sierra, assumiu um picante compromisso quanto à situação de sua equipe no Campeonato Boliviano. Contratado para “pegar em armas, se preciso for” na guerra contra o rebaixamento no torneio, o bravo guerreiro prometeu aos torcedores que cortaria o pênis em c

Não ia dar certo

Imagem
Eu até me acho um sujeito decente e quase todo mundo também se enxerga assim. Reconheço, porém, que tenho certa facilidade em despertar antipatias: às vezes amanheço de mau humor, guardo fisionomias mas esqueço nomes, sou meio desatento (sobretudo quando estou na rua, “rascunhando” um texto na cabeça, sem lápis nem papel, e olho, mas não vejo, quem passa por mim).   Aconteceu há poucos meses, na área de embarque do aeroporto de Maceió. Vi um senhor de certa idade, nem alto nem baixo, barrigudo, cabelos de algodão, rosto largo. Lembrava um famoso médium dos anos 70, chamado Zé Arigó, mas com um bigodinho mais fino. Senti que o conhecia de algum lugar. Ele também deu sinais de me reconhecer. Parei para lhe cumprimentar, trocamos algumas palavras, enquanto eu me esforçava para localizá-lo nos desvãos da mente. "Lembrava... Zé Arigó" Fui ficando angustiado. Todo mundo que já viveu esse constrangimento sabe a que me refiro. Para disfarçar, tratei-o da maneira mais simpática que pu

A bem da mentira

Imagem
Quantas vezes você ouviu numa reunião qualquer alguém replicar outro participante começando por: “A bem da verdade...”? Parece que tudo que foi dito até ali era falso, não?  Fico encasquetado quando, numa troca de mensagens, alguém me responde assim: “Verdade!”. Nunca sei se é uma forma lacônica de abreviar a conversa ou apenas indicativo de preguiça mental, de falta de tempo.  Numa hipótese ainda menos otimista, pode ser que a pessoa queira apenas ser educada, evitando tascar, na minha cara: "Mentira!".   Se falta tempo, tudo bem. Cada um gasta o seu como lhe convém .  Tem quem  perca m inutos preciosos discutindo política, futebol ou religião com fanáticos (leia-se: aqueles que pensam diferente de nós), mesmo sabendo que isso não fará o outro mais tolerante, nem ninguém será convencido a trocar a cor do boné.    Se preguiça mental, característica estritamente humana, faz sentido. Pensar continua sendo tarefa das mais complexas que existem. Talvez por isso poucos se dediquem

O último trem para as estrelas

Imagem
Da varanda, vejo almas que desde cedo se arrastam cansadas a puxarem como podem seus carrinhos de espreguiçadeiras, guarda-sóis, água mineral, coco, milho e pastel, para deleite de turistas em Maceió. Vejo outras entretidas na esquina, debulhando suas telinhas em busca de notícias. E vejo a alma de Cazuza chegar de mansinho, cantando:    “São sete horas da manhã. Vejo Cristo da janela, O sol já apagou sua luz, E o povo lá embaixo espera Nas filas dos pontos de ônibus Procurando aonde ir. São todos seus cicerones. Correm pra não desistir Dos seus salários de fome. É a esperança que eles têm Neste filme, como extras, Todos querem se dar bem. Num trem pras estrelas... Depois dos navios negreiros Outras correntezas...”   Imagem: Dedé Dwight Outra correnteza chega pela TV e nos atropela a todos. Joga um pote de água fria sobre o sol que acaba de nascer e revela que quase 37% das famílias alagoanas passam fome. É o que mostra um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança

Sinuca de bico

Imagem
Mexeu com muita gente a notícia de que a rotina do influenciador digital Arturo Medeiros, 36, e de suas oito mulheres, teria mudado depois que a mansão onde moram, na Paraíba, foi alvo de vandalismo por causa do estilo de vida que experimentam.    Reprodução/Redes Sociais Para evitar novos ataques, Arthur, O Urso  –  como ele, que diz manter cerca de 30 relações sexuais por semana, se apresenta nas redes sociais e no  OnlyFans   –  mandou instalar câmeras e cerca elétrica no imóvel e contratou seguranças particulares.  Ao saber disso, Natália, 41, filha de um velho conhecido meu, confidenciou à sogra Dolores, 63, que nada ultimamente a abala mais do que essas histórias de pessoas que decidiram abrir seus relacionamentos a uma nova disposição geométrica. –  Você me entende, né?  –  indaga a nora. –  Claro, Nat! Tudo muda o tempo todo no mundo… –  Seu filho, machista que só, tá chateado comigo!   As duas de biquíni à beira-mar, pé na areia, caipirinha, água de coco e cervejinha, aguardav

O buraco é mais embaixo

Imagem
Não posso dizer que me abalou a notícia da morte do brasileiro conhecido como “Tanaru” ou “Índio do Buraco”, que disseram vivia em isolamento voluntário numa mata fechada e era monitorado há 26 anos na região de Guaporé, no estado de Rondônia. Para o movimento de proteção indígena  Survival International , a região se destaca como uma pequena ilha de floresta em um mar de pastagens para criação de gado.   Antes de tudo, fiquei encasquetado com isso de “isolamento voluntário”. Se nem chegaram a conhecer sua opinião, como saber se era mesmo espontâneo? Talvez só não quisesse o tipo de companhia que lhe aparecia (o que, aliás, seria bastante sábio). Feito o protesto, sigamos.    Reprodução/Redes Sociais O “Índio do Buraco” foi encontrado morto, no  mês  passado, por patrulheiros da Funai (Fundação Nacional do Índio) durante uma ronda pela área, dormindo para sempre no fundo de uma rede, numa das palhoças que utilizava de abrigo. Não havia sinais de violência na área, nem outras pessoas no