quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Por um prato de sopa
Quinta-feira, 12 de junho de 2014. Sobravam ansiedade e medo no quarto do hotel em São Paulo onde minha mulher e eu assistíamos pela tevê a estreia do Brasil na Copa do Mundo contra a Croácia. Nem a vitória brasileira por 3x1 afastou a nuvem escura que havia sobre nós.
Naquela noite, Magdala seria internada no Hospital do Coração (HCor) para, na manhã seguinte, submeter-se a procedimento com o qual tentaria corrigir arritmia de altíssima frequência – irregularidade no ritmo cardíaco capaz de levar a colapso a qualquer momento.
Vivia sob tensão permanente e chegara até a fazer insuficiência cardíaca. Como médica, tinha consciência de que tudo poderia terminar sem aviso prévio. Eu mesmo havia visto em 2004, pela TV, o zagueiro Serginho ser fulminado dentro de campo numa partida entre São Caetano e São Paulo, vítima desse tipo de problema.
O que lhe dava esperança era estar sob os cuidados do Dr. José Carlos Pachón Mateos, um dos nomes mais respeitados na eletrofisiologia mundial. Fora do Brasil, inclusive, é conhecido por criar técnicas para curar arritmias graves com métodos pouco invasivos, que devolvem o paciente à vida normal com três dias de repouso.
Na consulta pré-operatória, Dr. Pachón achou engraçado quando escutou da colega aflita algo mais ou menos assim: “Por favor, faça a minha cirurgia! Depois de tanta luta, não posso morrer agora e ver o 'véio' tomando um prato de sopa com outra mulher!”
Foram cinco horas de espera que mais pareceram uma semana. Tomei um susto medonho quando o interfone tocou e me orientaram a descer até uma sala reservada no andar do hospital onde ficava o necrotério, a dizerem que o Dr. Pachón gostaria de falar pessoalmente comigo.
Chegaria após 20 ou 25 minutos, transpirando, voz excitada, e contou que ele e sua equipe conseguiram corrigir cinco focos anômalos de arritmias, inclusive fora do músculo cardíaco (na artéria pulmonar). O coração, enfim, batia no ritmo normal.
Voltaríamos a Brasília dias depois, onde comemoramos o aniversário dela no domingo que antecedeu 8 de julho de 2014, data que ficou marcada para sempre na memória do povo brasileiro.
Naquele dia, a Seleção Brasileira, comandada pelo técnico Luiz Felipe Scolari, foi atropelada pelo time da Alemanha, que impôs o vexatório placar de 7x1 nas semifinais da Copa do Mundo.
Para nós, no entanto, haviam coisas em jogo muito mais importantes do que uma partida de futebol. Como, numa noite fria qualquer, poder de novo compartilhar um prato de sopa antes do sono chegar. Faz bem para o coração.
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Sim, elas amadurecem antes
Andei lendo outro dia sobre diferenças de maturidade entre sexos numa pesquisa realizada no Reino Unido. Em resumo, conclui-se que o homem permanece emocionalmente imaturo até 43 anos de idade e a mulher atinge a maturidade emocional bem antes: aos 32. O trabalho revela ainda que 80% das mulheres acreditam que os homens “nunca deixam de ser crianças”.
Cá entre nós, algumas atitudes de certos homens não deixam nenhuma dúvida sobre a lerdeza dessa maturidade: recontar as mesmas piadas e achar graça de novo, não se interessar por tarefas domésticas, confundir masculinidade com grosseria, arrotar em público, exibir bíceps e tríceps para demonstrar como são fortes, dentre outras tolices.


Nessa época, fazia enorme sucesso em Alagoas a banda LSD – Luz, Som & Dimensão, sob a liderança do talentoso Djavan, a embalar as noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida, com os hits do momento. Haydeé, claro, queria ir à boate toda sexta-feira. Mas Seu Agostinho, nosso pai e então secretário do clube, nesse particular era inflexível feito porta de cofre: “só vai se Hayton lhe acompanhar!”.

Estudávamos no Colégio Benedito de Moraes, na Ponta da Terra. Não deve ter sido muito difícil para ela armar uma arapuca e me pegar feito um filhote de canário-da-terra. Sabia que eu também gostava de fazer meus rabiscos e, numa manhã de sexta-feira, pediu a um colega de turma que me desafiasse a desenhar uma cena de sexo explícito daquelas de revistinhas suecas, fonte inesgotável de curiosidade e deleite da molecada nos banheiros encardidos.
Em pouco tempo o besta aqui rabiscou algo com toda carga erótica possível, assinou no rodapé e o escroque ainda inflou meu ego a dizer que nunca vira nada igual a não ser nos "catecismos" de Carlos Zéfiro (1921 – 1992). Meia hora depois minha irmã apareceria triunfante com a "obra de arte" nas mãos: "Como é, vai ou não vai à AABB hoje à noite?"
Caiu a ficha do retardado! Se me atrevesse a responder “não”, meu pai saberia o que eu andava "estudando" na escola e possivelmente me inspiraria com seu velho cinturão de couro a escrever mais tarde um parágrafo a mais na crônica “Memória de minhas surras tristes”.
Engoli seco e ali aprendi, na prática, o que era a tal da chantagem emocional, pelo menos durante as quatro semanas seguintes.
Enquanto isso, vasculhava cada centímetro da casa em que morávamos à procura do desenho. Até que um dia, folheando “Grande Hotel”, revista de fotonovelas favorita de Haydeé, vi numa história que a protagonista escondera uma carta comprometedora num quadro de parede, entre o tampo traseiro e a gravura.

Ao encontrar o danado do desenho, nem cogitei guardá-lo em lugar alternativo, seguro. Picotei-o, joguei os pedaços no vaso sanitário e acionei a descarga para ter certeza de que o sofrimento chegara ao fim. Ainda bem que na época não existiam fotocópias. E a digitalização de papéis não havia nem nas revistinhas de "Flash Gordon".
À noite, vestida e maquiada, pronta para sair, minha irmã espantou-se quando lhe disse que não iria mais à boate. Correu então ao local onde escondera o desenho e ficou furiosa ao descobrir que já não possuía "argumento" para me convencer.
Penso que nosso pai, mesmo sem desconfiar de que o filho estava sendo vítima de "condução coercitiva", gostou da decisão e reconheceu que eu vinha sendo um bom irmão naquelas últimas semanas. Para ele, não precisava sairmos toda sexta-feira, deixando-o preocupado até alta madrugada.
Sim, elas amadurecem antes. A astúcia de minha irmã só confirmava a velha tese que se arrasta desde os tempos de Adão e Eva: mulheres conhecem bem mais de estratégias de manipulação e camuflagem de sentimentos do que homens.
Homens, como elas mesmo dizem, “nunca deixam de ser crianças”. Deve haver um anjo da guarda de plantão a protegê-los. Se não, viver fica perigoso demais.
quarta-feira, 11 de setembro de 2019
Quando a vida pede passagem
Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “… O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco…”
Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.
Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.
Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.
Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.
Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.
Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.
Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”
Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.
A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no esplendor da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!
"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).
Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “...o tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão...”
Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “...Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar...”
quarta-feira, 4 de setembro de 2019
Menino Maluquinho
Mineiro de Caratinga, 86 anos, cartunista, desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista e pintor, conheci o grande Ziraldo pouco antes do Natal de 2004, em Brasília, na entrega de uma decoração bem tupiniquim que havia preparado para a fachada da principal agência do Banco do Brasil.
Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil.
Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão.
Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil.
Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão.

Ziraldo também é "pai" de outro personagem maravilhoso, bem urbano, criado na metade dos anos 60: Jeremias, o bom. Diferente do famoso Amigo da Onça, de O Cruzeiro – revista semanal de cabeceira de meu pai –, era generoso, humilde, solidário, e suas tiras me encantavam, ainda que não tivesse maturidade suficiente para entender o conteúdo político delas.
Assim que pude, puxei conversa perguntando se recordava uma tira em que Jeremias, sensibilizado com tantas crianças a vender confeitos na porta do cinema, comprara o estoque geral da molecada e acabou diabético. Ele sorriu, respondeu "sim" e quis saber como eu lembrava daquilo. Aí a conversa pegou pressão de vez.

Conversamos também sobre a crise que acabou fechando as portas da editora Codecri, cujo carro-chefe era O Pasquim, o semanário mais bem-humorado do Brasil que, no início dos anos 70, chegou a vender 250 mil exemplares por semana.
Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros –, faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras.
Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros –, faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras.
Da editora Codecri – acrônimo de "Comissão de Defesa do Crioléu", inventado pelo magistral cartunista Henfil –, além de uma dívida enorme, impagável, restou o legado de O Pasquim, que se tornaria símbolo do jornalismo irreverente e contestador ao regime militar.

Dia desses correu o boato nas redes sociais da morte de Ziraldo. Ele mesmo desmentiu ao postar foto no Instagram, vivo e brincalhão como sempre. Andava sumido desde que sofreu derrame em 2018, quando foi internado em estado grave mas conseguiu recuperar-se, recebendo alta um mês depois.
Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.
Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.
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