quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O coronel que gostava de flores

Às seis da manhã, pontualmente, lá estava ele no portão de sua casa a me esperar. Tinha nas mãos uma pequena flor branca:
— O senhor sabe que flor é esta?
— Não. Não conheço... 
— É um bugarim. Toda manhã, bem cedinho, venho aqui ao jardim colher um para oferecer à minha mulher... Seja bem-vindo, vamos entrar. 


Para mim, que mal distinguia uma rosa de uma orquídea ou de um girassol, o inusitado era ver a delicadeza com que o velho empresário e político dava a entender que seduzia a sua mulher. E para não dizer que não falei de flores, comentei apenas que o cheiro adocicado do bugarim (ou jasmim) talvez explicasse por que ele estava presente em tantos jardins no Sertão pernambucano. 

Petrolina é conhecida como a capital da “Califórnia” brasileira, o Vale do Rio São Francisco. Foi em torno do Velho Chico — apelido carinhoso de um dos maiores rios do País  que a cidade se desenvolveu e passou a produzir frutas em propriedades rurais irrigadas, com destaque para uva, manga, banana, coco-da-baía e goiaba.

Na noite anterior, após uma reunião com lideranças de classe tentando melhorar a relação estremecida entre produtores rurais, urbanos e o Banco do Brasil, fui abordado na saída do recinto:
— Eu gostaria de recebê-lo em minha casa para o café-da-manhã...
— Talvez não dê desta vez... Preciso viajar bem cedinho pro Recife.
— Você vai fazer uma desfeita dessas comigo?
— Não fale assim! A não ser que a gente se encontre às seis da manhã — ponderei, querendo desfazer o mal-estar e, a bem da verdade, contando que ele não acordaria tão cedo.
— Estarei esperando o senhor às seis.  Aqui está meu endereço — arrematou, com um cartão de visitas.

Poderia ser qualquer um dos filhos de Clementino de Souza Coelho (1885 — 1951), o mítico coronel Quelê, latifundiário e industrial tido como um dos responsáveis pela industrialização da região e um de seus maiores chefes políticos no século passado. 

Assim como outras oligarquias brasileiras, a família  Coelho, alinhada ao regime militar instaurado no país em 1964 e que durou até 1985, migrou dos negócios para a vida pública. Teve como expoentes cinco dos 13 filhos do coronel Quelê: Nilo, José, Geraldo, Paulo e Osvaldo. Nome não vem ao caso, mas foi um deles que me recebeu naquele dia. 

A mesa já estava posta. O anfitrião apresentou-me sua esposa enquanto a ela oferecia o pequeno bugarim que havia colhido.  Sentou-se na cabeceira e lhe serviram macaxeira com linguiça cuja gordura logo escorria no canto da boca e ameaçava, além da gravata, o paletó engomado de linho branco. Em seguida, pode parecer exagero meu, encarou uma tigela de coalhada, meia pamonha, uma tapioca, um pedaço de cuscuz, uma manga em cubinhos, uma fatia de bolo e uma caneca de café preto, onde pingou algumas gotinhas de adoçante  para manter o peso sob controle, esclareceu.

Ainda na mesa, com o suor escorrendo pela cara gorda e vermelha, sacou da algibeira o isqueiro e acendeu um cigarro que tragava com sofreguidão, esfumaçando o ambiente. Parecia cenário daqueles filmes antigos de Hollywood, que manteve ao longo de décadas contratos com a indústria de tabaco para inclusão de imagens em que os atores e atrizes fumassem.

Não demorou muito e foi direto ao ponto que o levou a me convidar na noite anterior: perguntou o porquê de eu não ter dado a devida atenção ao pedido que me fizera por telefone duas semanas antes, no sentido de refinanciar dívidas vencidas de um produtor rural de quem era compadre e avalista.

Esclareci que deveria haver algum engano, pois pedira para examinar o caso e, pessoalmente, havia comunicado o desfecho ao devedor, dizendo-o que não seria possível a renegociação da dívida na forma por ele pretendida. 

O anfitrião esfregou as mãos e contra-argumentou: 
— O “não” não é resposta. Só o “sim” constrói, ajuda quem precisa. O “sim” é como o dia; o “não” é como a noite, escurece tudo. Até as flores perdem a graça... 
— Entendo o que o senhor quer dizer, mas lá no banco a gente lida com o “sim”, com o “não” e com o “depende”. Se o rapaz quiser mesmo negociar de um jeito que fique bom para todo mundo... 
— Mas sei de alguns casos aqui na região em que vocês deram desconto no pagamento. Por que meu compadre, que tá passando um sufoco medonho, não merece?
— Banco é tudo igual, amigo. Não abre mão de um centavo...
— Como assim? 
— Só admite desconto quando não tem mais como receber todo o dinheiro que emprestou, inclusive os juros. Nem que tenha que recorrer à Justiça, se o devedor e o avalista possuírem bens.

E passamos a conversar sobre outros assuntos como o aumento das exportações de manga para os mercados asiáticos, a qualidade do vinho que já estava sendo produzido na "Califórnia" brasileira etc. 

Na despedida, foi gentil e pragmático comigo:
— Quero agradecer muito sua visita a nossa Petrolina. Pode deixar que vou convencer o compadre a melhorar a proposta. Onde já se viu achar que o banco vai dar desconto numa dívida avalizada por mim?

Tanto ele quanto os irmãos aqui citados já não se encontram neste mundo. Se a dívida foi paga, refinanciada ou seguiu para cobrança judicial, não sei dizer. Fui trabalhar na Bahia pouco tempo depois, em maio de 1999. 

Desde então, toda vez que vejo um bugarim branco ou alguém usando adoçante no café para controlar o peso, lembro-me do coronel que gostava de flores.

28 comentários:

  1. que descrição de filme, faz a gente tomar café junto é até sentir medo do coronel.kkk

    ResponderExcluir
  2. Muito bem. O coronelismo resiste. Lembrou-me Palmeiras doi Índios.

    ResponderExcluir
  3. Fiquei com um dúvida, será que o "coronel" mandava flores para o velório dos desafetos que porventura teve que tirar do caminho.

    ResponderExcluir
  4. Certamente o "Coronel" não deveria sê-lo - talvez um "coroné".
    Quanta continência não foi prestada Brasil a fora a tantos deles ?
    Como se viu, com bons argumentos até propostas podiam ser modificadas...
    Nem só de flores gostavam os "coroné". Uma mamatazinha, se concedida, também seria de seu agrado (lá dele, como se diz aqui na Bahia).
    Muito boa crônica, caro Hayton.
    Nasser.

    ResponderExcluir
  5. Ah, os coronéis! Os Coelhos, donos de Petrolina, mas sagazes, sabem conquistar, ou deixar uma impressão, e usou a perfumada flor de jasmim, acredito para disfarçar a dureza do coronelismo.

    ResponderExcluir
  6. Que relato interessante, até parece um roteiro de filme ou mini série. Parabéns!!

    ResponderExcluir
  7. Algum cineasta ainda vai fazer uma série do Netflix com seus causos rs. História do Brasil contada com cheiro e cores.

    ResponderExcluir
  8. Muito bom. Quantos coronéis mandaram e mandam nesse Brasil.

    ResponderExcluir
  9. Tiveste sorte de conhecer essas peças do nordeste brasileiro, brabos, valentes e folclóricos!!!!

    ResponderExcluir
  10. Que “cafezinho” indigesto!
    Eu teria muita dificuldade de metabolizar essa mistura de sensibilidade agreste...

    ResponderExcluir
  11. Você deleita minha mente e me ajuda com meu Alzaimer e amenizando minha alma!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu querido amigo Kemper, você não faz ideia do quanto de comove este seu comentário. Logo cedo, meu dia já está completo.

      Excluir
  12. Um coronel que usava a chave da felicidade: amargo no ambiente sócio-empresarial, mas um doce no ambiente familiar...
    Tive a honra de, mesmo por pouco tempo, prosear com um deles (Dr. Paulo), assíduo nas idas ao BB Petrolina, mas para conversas outras, bem mais amenas. Certamente já não mais usava os pinguinhos de adoçante no café.
    Mais poesia em nossa vida. Show!

    ResponderExcluir
  13. Que maravilha! Crônica muito bem escrita com características que lembram a novela "Velho Chico". Sensacional!!!

    ResponderExcluir
  14. Não basta contar a história, tem que saber retratala-las com fidelidade, e isso fizeste de forma esplendorosa.

    ResponderExcluir
  15. Esses personagens, que pareciam saídos de fita de cinema, enchem nossas memórias de experiências vividas! Conheci um que metia medo em todos os gerentes...inclusive fora acusado de mandar “apagar” alguns desafetos. Um dia apareceu cuspindo fogo e me ameaçando. Enfrentei-o por falta de opção rsrs- até o vigilante saiu do ambiente. Depois, a despeito da minha rótula do joelho q trepidava e ninguém via, o Coroné foi embora. Mas, dias depois, mandou dizer q tinha achado um cabra de coragem e respeito. Que ninguém iria mexer comigo enquanto lá estivesse... proteção dele! Kkk

    ResponderExcluir
  16. Um deles, da Zona da Mata, foi à cidade, aproveitou para falar com o Delegado. Chegando na delegacia, encontrou um sujeito sentado no bureau do Delegado, com os pés em cima, chapéu caído nós olhos, palito na boca e cigarro no bico. O Coronel perguntou:;"Cadê o Delegado?" O cara: " Tá no bar de Zé de Déjà tomando café. Vá lá falar com ele!". O Coronel: "Quem é vc para me mandar ir atrás do Delegado?" O cara: "Sou o prostituto do Delegado!" O Coronel: "Você tem cara disso mesmo! LEVANTE-SE E VÁ CHAMAR O DELEGADO.SOU CORONELFULANO!" O sujeito saiu fazendo com os calcanhares da bunda tarol! Essa é tbm verídica.

    ResponderExcluir
  17. Que bela crônica, seu conteúdo traz a Vida pulsando, acontecendo.
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  18. Boa... quantas vezes passamos por situações parecidas. Pode tudo, menos mexer no status da pessoa. Pedir desconto iria denegrir o avalista...rsrs. Não iria deixar que outros pensassem que ele estava em situação ruim...

    ResponderExcluir
  19. Já falei isso, mas repito, você é mesmo um contador de histórias. Acho que insuperável, mas é isso.
    Consegue narrar um momento embaraçador, quase constrangedor, em uma história deliciosa.
    Sugiro-lhe contar alguns episódios vividos em nosso BB de então - como você deve tê-los vividos(!!) -, onde os personagens tenham sido colegas.
    Afinal, como tinha gente complicada ali, pra o bem e pra o mal!!!
    Se eu vivi momentos marcantes e inesquecíveis, imagine você!!!
    Sobre o caso inspirador da crônica, consigo imaginar bem seu "sufoco ". Afinal, quando fui superintendente em Jacobina, conheci um pouco a "Coelhada" pois toda semana estava em Juazeiro, e Petrolina é irmã gêmea e unida "umbilicalmente a ela. E as histórias se espraiam.
    Haja parabéns pra você!!!

    ResponderExcluir
  20. De todos os comentários, interessantes na visão de cada leitor, descrevem muito bem sua destreza com a pena, digo, com o teclado. Sua linda crônica, fez-me voltar no tempo dos coroneis muito comuns na literatura dos nossos clássicos e inclusive lembrei-me das novelas antigas da Globo como Gabriela, Cravo e Canela do saudoso Jorge Amado, O Bem Amado, se não me engano do saudoso Dias Gomes ou Janete Clair, os Sertões e tantos outros clássicos que falam desses coroneis. Um abraço

    ResponderExcluir
  21. Essa vai para a segunda edição de "Só Eu Sei"! A história do coronel me lembrou de quando estive em Petrolina para acompanhar uma feira de agronegócio patrocinada pelo BB, há uns 11 anos. Na oportunidade, pude conhecer um já então famoso vinho da "Califórnia" brasileira, o Rio Sol. Contrariando os críticos de plantão, que duvidavam que vinhos de boa qualidade pudessem ser produzidos no clima semi-árido, na altura do paralelo 8, o Rio Sol foi o primeiro vinho brasileiro classificado pela Wine Spectator (83 pontos); foi um dos vinhos servidos ao Papa Bento XVI em sua visita ao Brasil e é o vinho brasileiro mais exportado atualmente. Sem falar que os vinhos produzidos próximos ao Equador, comprovadamente, têm 6x mais resveratrol que os demais. Neste link tem um breve registro da minha visita à Petrolina: https://youtu.be/VSKArvH_51o

    Um brinde a nosso cronista favorito!

    ResponderExcluir
  22. O CNPJ é sempre bom para afastar desentendimentos pessoais. Eu diria que é o jasmim das negociações .Gostei muito

    ResponderExcluir
  23. Mais uma história contada com a leveza que só Hayton sabe como contar

    ResponderExcluir
  24. Ah! os brutos também amam. Quem gosta de flor tem amor no coração.
    Parabéns pela bela crônica.

    ResponderExcluir
  25. Foi a famosa emboscada gastronômica. Este tipo de criatura de grande poder e influência na região não esteve, ou está, só presente no Nordeste. É um infeliz traço cultural que deriva em dois comportamentos, o personalismo e o patrimonialismo. No primeiro se cultua uma liderança, quase num processocde idolatria que a faz tornar-se mais forte ainda, seja por medo, seja por identificação. No segundo, o público e o privado se copulam numa erótica dança de interesses duvidosos. Orgulha-me tua postura que não botou panos quentes, nem prometeu algo indevido. Assim como os Coronéis, pessoas que a eles resistem, também são lendas vivas. Pois combatem o bom combate, e em condições bem desfavoráveis. Parabéns.

    ResponderExcluir
  26. A primeira vez que vi alguém entrar com uma ação contra o banco - discutia juros - li a seguinte definição de banqueiro: "O banqueiro é o sujeito que estende o guarda-chuva quando o tempo está bom, e retira-o quando chove". Mesmo assim, os coronéis sempre esperam que lhe abram o guarda-chuva. E o cofre também.

    ResponderExcluir