quarta-feira, 17 de junho de 2020

Sonho e ousadia

O menino passava horas observando a sombra de uma varinha enfiada no chão do quintal, a mudar de posição a cada instante, até o pôr-do-sol: 
— O que cê faz aí, hein? 
— Tô vendo o tempo passar, mãe...
No terreiro, além da cerca de avelós, do pé-de-manga e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive nas noites de lua cheia, até ouvirem o chamado da mãe:
— Tá na hora de lavar os pés e beber água pra dormir! 

Chico e Gracita, 7 e 8 anos, últimos dos sete filhos de Januário e Mariquinha, nasceram no sítio Muriqui, à margem do riacho Jundiá, distante seis léguas da cidade de Pedregulho. O sustento da família vinha da pesca, da criação de umas poucas cabeças de gado e do plantio de mandioca, milho e feijão.

Pais e filhos nunca haviam pisado numa escola. Nem desconfiavam de que nossos antepassados já conheciam as horas do dia muito antes de o relógio ser inventado no século 14. 

Sim, por volta de 5.000 a.C., os babilônios descobriram que em certo momento do dia não havia sombra no chão, o que chamaram de meio-dia. Daí dividiram a trajetória da sombra em 12 partes: seis antes do meio-dia (manhã) e seis, depois (tarde). Inventaram o relógio de sol que Chico recriaria no quintal de casa.

Um impulso misterioso leva algumas mães que vivem na zona rural a, de uma hora para outra, querer mudar para cidades maiores, na esperança de que os filhos descubram o mundo, aprendam a ler, a fazer contas, a se libertar da escuridão e experimentar sensações diferentes.

Foi assim que Mariquinha, no final dos anos 50, surpreendeu o marido com uma decisão de bate-pronto, inesperada: 
— Januário, nem pense que vou deixar esse menino ser criado aqui como Deus criou batatas, feito os mais velhos. Nem ele nem a irmã dele.
— Oxente, cê tá ficando doida, é? O que é isso?
— Se quiser ficar, fique, mas vou levar os dois pra estudar em Pedregulho.
— E vão viver de quê?
— Não sei... A gente dá um jeito.

A contragosto do marido, que permaneceu no Muriqui na companhia do primogênito, Mariquinha partiu no fim do mês carregando consigo, além dos filhos mais novos, sonho e ousadia. 

Ao chegar em Pedregulho, cuidou de alugar uma pequena casa na periferia e de arranjar emprego para os três filhos mais velhos, agora os principais responsáveis pelo sustento da família. Resolveu também que Chico e Gracita seriam alfabetizados a partir do começo do ano letivo.

As crianças teriam aulas o dia todo na escola profissionalizante Lar de São Judas Tadeu, sendo a tarde reservada para o aprendizado de um ofício: alfaiataria, bordado, carpintaria, costura, serralharia. Gracita não se animou muito, mas Chico ainda pensou em se tornar alfaiate para cortar aquelas roupas alinhadas que os mais abastados ostentavam na igreja.

Determinados a retribuir o esforço feito pela mãe e pelos irmãos mais velhos, durante todo o ano letivo os dois irmãos alcançaram os primeiros lugares nas avaliações  mensais. Por isso, Chico foi escolhido orador da turma para a festa de formatura. Gracita, integrante do coral que se apresentaria na cerimônia, de última hora foi substituída pela filha de um político local sem que a professora lhe desse uma explicação razoável para o fato.

Ela chorou dois dias e duas noites em seu quarto, escondida da mãe. A professora buscou contornar dizendo que lhe faria “declamadora” porque falava alto. E lhe ensinaria um poema, a ser recitado no palco.

Gracita engoliu sem mastigar a frustração mas decorou o texto, versando sobre as dificuldades de uma órfã num mundo hostil do pós-guerra. No dia do evento, com a mãe toda orgulhosa e perfumada na primeira fila da plateia, a filha declamou de forma tão intensa que comoveu a todos. Talvez ainda amargasse o travo na garganta por não ter sido possível realizar o sonho, acalentado durante meses, de cantar no coral. 

No auditório, inquieta sem saber o que ocorria com a filha, que continuava a declamar cada verso de forma enfática, com olhos úmidos e punhos cerrados, Mariquinha levantou-se e gritou: 
— Chore não, minha filha, cê tem mãe viva. Chegue pra cá... Óia eu aqui, bem na sua frente!

Padre Ariano, diretor da escola, quase caiu da cadeira, mas logo prestou os esclarecimentos à mãe aflita. Padre, aliás, que tinha um carinho todo especial por Chico, o orador que agora subia ao palco para proferir seu discurso e para quem o diretor, com suas mãos brancas, enormes e peludas, preparara um texto que começava assim: “O tempo pode ser medido pelas batidas de um relógio ou pode ser medido pelas batidas do coração...” E fechava inspirado no poema “O trabalho”, de Bilac: 
“(...) É preciso trabalhar.
Não nasce a planta perfeita
E nem nasce o fruto maduro
Para se ter a colheita
É preciso semear (...)”

Para quem assistiu à cerimônia, estava nascendo em Pedregulho uma grande atriz, como Bibi Ferreira e Fernanda Montenegro, capaz de, mais adiante, ganhar o Oscar, da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos. 

Nascia também, no espírito investigativo e obstinado de Chico, quem sabe um futuro cientista ou escritor de renome na vanguarda intelectual do País. Mal aprendera a ler e já devorava os livros de Monteiro Lobato, fascinado com as artes de Emília, uma boneca de pano com sentimentos e ideias libertárias, e do Visconde de Sabugosa, um sábio sabugo de milho com atitudes e manias de gente grande.

Mariquinha levitava àquela altura. Tanto mais porque seu velho Januário, morto de saudade, já se desfazia do pequeno patrimônio rural e voltaria a juntar a família no Ano Novo. Justamente quando da transição do Brasil antigo para o Brasil moderno, de acordo com Joaquim Ferreira dos Santos, no livro Feliz 1958 - o ano que não devia terminar.

O relógio do tempo foi ligeiro. Chico e Gracita, hoje aposentados e vizinhos de porta na Capital — reclusos, à espera da vacina para o mal que travou o mundo que ora se reseta —, até conseguiram chegar à universidade, mas não seguiram em frente. 

Gracita casou com um comerciante, virou dona-de-casa e tem três filhos, que lhe deram seis netos. Chico também casou, tem dois filhos e quatro netos, mas foi além e "pulou a cerca": manteve uma relação por mais de 30 anos com uma instituição pública — às vezes, jazigo de sonhos — que lhe remunerava bem e em dia, garantindo-lhe uma vida sem sustos.

Passarinho em gaiola limpa pode ter alpiste, painço, água e passador, até cantar bonito, mas não aprende a voar. 

O menino agora passa horas contando as batidas de um antigo relógio alemão Schwarzwald na parede da sala de casa, ao lado de uma gravura em bico-de-pena de Clarice Lispector onde se lê no rodapé: "O que nos impede na maioria das vezes de ter o que queremos, de ser o que sonhamos, de fazer o que pensamos e aceitar com o coração é a ousadia que não cultivamos".

33 comentários:

  1. Que história linda! Quantas D Mariquinha e Sr Januário , temos por aí, e Chicos e Gracitas, são muitos; e quantias conquistas e quantos sonhos. Essa história me fez lembrar meu interior, minhas tias e também meus pais .

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  2. Bonito conto. Conheço muitas histórias dessas aqui no meu sertão da Bahia. 👏👏👏👏👏

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  3. Como diria Virgílio, "sed fugit interea fugit irreparabile tempus"... "mas ele foge, irreversivelmente o tempo foge". E quanto mais foge o tempo, tanto mais o gosto em ler-te, meu amigo.

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  4. Lindo texto! O que fazemos de nós, com ou sem a ajuda dos outros, está escrito. Pena que aprendemos a ler mais tarde, como Chico e Gracita!

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  5. Bom levantar para trabalhar com texto tão inspirador.

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  6. Excelente texto Hayton! Parabéns para a narrativa de uma bela história de vida.

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  7. As narrativas que abordam os "pedregulhos" das estradas ferindo pés em função da sua dureza são envolventes. Este é o caso. Parabéns.

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  8. Gostei muito. Parabéns! "Todo dia o sol da manhã vem e lhe desafia..." Eis o dilema que norteia escolhas,motivações e sonhos.

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  9. Bela narrativa. Todos os méritos à D. Mariquinha, que, mesmo contrariando o marido, ousou mudar o futuro de sua família, através da educação que lhe fora negada pelas circunstâncias.

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  10. Uma boa história pra aquecer o tempo exageradamente chuvoso aqui na praia de Ipioca onde faço o meu isolamento.

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  11. Eta mulher arretada D.Mariquinha! Graças à sua coragem mudou a vida de uma família.

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  12. Belíssimo texto, Hayton! Gostei da pulada de cerca por um bocadinho de tempo: 30 anos!
    Já vi esse filme em algum lugar! Rsrs

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  13. Confesso que vi uma parte de minha vida bem contadinha... mãe é uma coisa inexplicável... quantos continuaram à sombra do analfabetismo porque não tiveram um empurrão ou oportunidade... maravilhoso conto.

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  14. A grande transformação se deu porque, como diz o título houve sonho "E" ousadia!

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  15. Que graça de história!
    Impossível ler apenas uma parte.
    Você está se superando, meu amigo!

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  16. Mais um texto em que somos inseridos dentro do contexto, caminhando passo a passo com cada personagem, tentando prever o que aconteceu com cada um. É nesse fio tênue que separa nossas escolhas, no "ser ou não ser", e suas consequências, que muitas vezes não temos coragem de rompê-lo e ficamos à mercê do que poderia ter sido e não o foi. Bela narrativa.

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  17. Linda história de coragem e ousadia de D. Mariquinha.

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  18. Agostinho Torres da Rocha Filho17 de junho de 2020 às 20:06

    Mais uma crônica de arrepiar. O texto retrata a vida de muita gente humilde que transformou sonhos em realidade, usando o combustível da determinação.

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  19. Hayton, apesar de minha realidade e contexto serem diferentes do ambiente descrito no seu belo texto, me senti uma personagem similar às Gracitas da vida; ainda que não se consiga realizar todos os nossos projetos, vale a pena tentar, querendo ou não, todos nós não só pensamos num futuro um dia próspero, quanto uma aposentadoria garantidaa na velhice. E quem diria, que um dia não conseguiríamos vencer, com determinação como os Chicos e as Gracitas da vida? Vale a pena ler e reler suas excelentes crônica, Hayton, nos faz dá uma viagem nos bons tempos de outrora. Continue a nos alimentar essa sede de leitura, pois só estão aqui, quem de fato ama ler. Uma pena para os preguiçosos, pois não sabem o que estão perdendo! Um forte abraço.

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  20. Linda história!
    Bela homenagem às D. Mariquinhas do nosso Brasil que não se conformam com seus destinos traçados na maternidade!

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  21. Hideraldo Dwight Leitão18 de junho de 2020 às 07:50

    Lembrei de Gonçalves Dias: “não chores, meu filho, não chores que a vida é luta renhida. Viver é lutar!”
    A capacidade de contar a história de todos e de cada um. Seus textos lavam a minha alma. Viva as Donas Mariquinhas.

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  22. Mais uma crônica brilhante. Parabéns Hayton

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  23. Meu comentário o tempo levou, entre um instante de um clique e um olhar pra tela. E aqui venho novamente pra te dizer que esta é uma das crônicas enrendo de documentário. Tão linda, tão sincera, tão nós que tivemos histórias parecidas. Nas quais nossos avós e pais subverteram a ordem reinante, e ousaram desafiar o tempo da natureza das coisas.

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  24. Amigo Hayton, uma das mais belas crônicas suas que já li!! Estou aqui com os olhos marejados... Muito obrigado por nos agraciar com tanta pureza e emoção! 👏👏👏
    Sandro

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  25. Mais um belíssimo texto, Hayton. Você me fez lembrar de minha mãe, que se chamava Felícia, mas que foi a Mariquinha da minha vida. Para minha sorte.

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  26. Não á toa, tenho grande tolerância - quem sabe uma inconfessada admiração - pelos rebeldes e transgressores, como até já coloquei aqui.
    Isto posto, minha reverência a Dona Mariquinha, não fosse gente como ela, entre os ancestrais, certamente estaríamos na caverna até hoje.
    Mas, ô Cara, uma história bonita de família, mas quase comum, igual à de tantos milhões por aí, tu consegue transformar em uma peça literária que nos leva a - "marejar os olhos" -, como bem colocado acima pelo Sandro, já é um pouco de sacanagem!!
    Um bom diretor e igual roteirista conseguiriam transformar isso aí em uma obra disputada do Cinema e ou do Teatro.
    Como meu amigo UNKNOWN não me despreza, aqui é Volney.

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  27. Nossa! Que bela história! Digna de uma sinopse para filme ou série! Das melhores do autor. Isso é que é talento. Recordei-me de Caxias do Maranhão e o sonho do sucesso nos grandes centros que milhões de famílias ainda almejam. Parabéns, primo!

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  28. Que beleza de história meu amigo. Viver é ousar. Como dizia João Guimaraens Rosa, viver é também muito perigoso. Pricipalmente se não ousamos.

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  29. Belíssima trajetória de Chico e Gracita, que iniciou-se graças à ousadia e atitude da mãe Mariquinha!

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  30. Linda história, retratando a firmeza e luta de uma mãe. Sabedora das dificuldades, buscou um mundo novo, criou oportunidades para seus Filhos. Isto vem do Coração.

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  31. Hayton, grandes atitudes mudam vidas.

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