quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Catita

Quinze anos atrás conheci Catita, copeiro vinculado a uma firma terceirizada, para mim um sábio na arte de arejar ambientes corporativos. 

Aos 35 anos, 1,65 m de altura, queimado feito um boi de barro ou O lavrador de café de Portinari, seu charme, segundo ele mesmo, estava nas sobrancelhas de taturanas e na gravata borboleta a lhe adornar os três dedos de pescoço.

Quando cheguei, já estava no local em que trabalhamos juntos por dois anos. Soube que um antecessor meu, que se queixava do excesso de pretendentes a determinado cargo, teria recebido de Catita uma ajuda importante para pré-selecionar os candidatos. 

No dia da entrevista, Catita entrou sorridente na sala de espera, com bandeja, bule, xícaras e copos, a perguntar em voz alta, repetindo o que havia decorado de véspera:
— Would you like some coffee? Do you like sugar?

Logo depois voltaria à área interna a espalhar que metade dos interessados desistiu porque seria complicado trabalhar num lugar onde até o cafezinho era servido em inglês. “A outra metade preferiu um copo d’água gelada”, dizia ele, lacrimejando de tanto rir.

Flamenguista abusado (pleonasmo?), Catita mexia com meio mundo de gente quando chegava eufórico com mais uma vitória de seu time. Perdia a noção do perigo a rebolar pelos corredores imitando Tetê Espíndola, querendo alcançar o timbre e a extensão vocal da cantora: Você pra mim foi o sol de uma noite sem fim...

De Brazlândia (cidade-satélite onde morava) ao Plano Piloto, eram quase duas horas de ônibus para chegar ao trabalho, mas nunca aparecia triste, calado. Numa quinta-feira em que chegou espirrando, a reclamar de dor de cabeça e coriza, fiz o que qualquer um faria: aconselhei-o a voltar para casa. E quando liguei no domingo para saber se estava melhor, antes de responder comentou com alguém que devia estar a seu lado:
— Cê pensa que só tenho amigo “urêa” seca, é? Fale aqui com meu chefe!
Foi como Catita, por telefone, me apresentou a seu sogro, com quem bebia uma cerveja no quintal de casa, a curtir o domingo em família.

Por falar no sogro, Catita morria de medo da esposa, por quem sempre teve o maior carinho e respeito. Mesmo assim, um dia, dando a entender que fora casado outras vezes, falou sério:
— Tô doido pra arranjar mais uma P.A.
— Que diabo é isso, Catita? — indagou uma inocente recepcionista.
— Pensão alimentícia! — disse com a cara mais cínica do mundo, a imitar Amelinha com a voz em falsete: Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor

Catita não tinha pressa. Levava mais de hora para servir uma rodada de café num salão interno com menos de 40 pessoas, parando aqui e ali para contar a última novidade, mexer com alguém mais carrancudo, comentar um lance do futebol ou arremedar alguma figura pública. 

Já perto de minha transferência para outro local de trabalho, aconteceu outro lance memorável. Eu saía para almoçar num rodízio de carnes que havia em Brasília quando nos encontramos no hall dos elevadores:
— Chefe, também tô indo almoçar no Porcão.
— Quer carona? — perguntei, sem entender como ele sabia do meu itinerário. 
— Precisa não! O Porcão é aqui perto.
— Que Porcão tem aqui perto, Catita? 
— É um branquelo, chefe, buchudo — disse sorrindo — E faz um PF, ó, de primeira. Bem aqui na Rodoviária.

Andei noutros lugares, depois me aposentei, mudei de  cidade e há mais de 15 anos não via Catita. Outro dia descobri o seu paradeiro e fiquei feliz por vê-lo em paz. Mora agora na cidade-satélite de Santa Maria (a 26 km do Plano Piloto) e trabalha como recepcionista de um centro médico na Asa Norte. 

Quis saber dele como estavam seus filhos e vi que a língua continua afiada como lâmina de barbear:
— Chefe, meu moleque tá a cara do Gabigol, mas não joga nada! Desse jeito não vai jogar nem no Vasco! — respondeu, dobrando-se de gargalhar.

Sinto, não nego, uma falta danada dessas catitices depois que me aposentei.

46 comentários:

  1. Existem pessoas que parecem nascidas para transformar o ambiente. Nem imaginam o poder que tem de elevar nosso pensamento em dias difíceis. São esses os anjos?

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  2. Hayton,

    Dizer que foi mais uma ótima crônica já está se tornando desnecessário.

    Me chamou a atenção nesta foi perceber que até às pessoas mais simples que trabalhavam na empresa - os invisíveis - você dedicava um minuto do seu tempo.
    Prova do quanto isso é significativo foi o fato de Catita ter passado a ligação telefônica contigo para o sogro. De maneira geral, estas pessoas passam uma vida sem ser notadas no ambiente de trabalho.

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  3. Sem dúvidas "catitas" são as variáveis que dão leveza ao pesado mundo corporativo infestado de "leões".

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  4. Descrever a simpatia de Catita vai ser,para ele, o maior presente que você já deu. Vai mostrar ao mundo inteiro e fazendo as graças que é seu principal apetrecho.
    Parabéns Hayton, mais uma vez generoso e em falar de um ser humano simples e leal.
    Grande abraço.

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  5. Parabéns por mais uma pérola.
    Vez por outra me pego pensando nos “Catitas” com os quais convivi no BB.

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  6. A riqueza de detalhes me fez imaginar a cena sem nem ao menos conhecé-lo, Parabéns pela sensibilidade ao retratar momentos como esse!

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  7. Belíssimo resgate Hayton. Trabalhei com ele também. Pessoa sábia. Do bem. Nunca o vi triste.

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  8. Salve aos tantos "catitas, que passam por nossa vida, a deixá-la um tanto mais amena. E que bom quando sabemos valorizá-los, como você o registra, não deixando -o na invisibilidade.

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  9. Hideraldo Dwight Leitão26 de agosto de 2020 às 07:58

    Esse caso do Catito é ótimo e representa uma galera que eu sempre amei demais na nossa lida no BB. Engraçado que não me lembro dele, mas todos tivemos um catita.

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  10. Gostei muito de ter sido conhecido catita por meio de sua crônica Hayton. Trouxe-me recordações saborosas daqueles colegas que nos alegravam com seu cafezinho, carinho e alegria durante nosso longo expediente no BB. Bela homenagem!

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  11. Uma de suas melhores crônicas, Hayton! Além da sábia combinação de leveza com profundidade, você traz à luz um dos incontáveis e brilhantes invisíveis que existem po aí. E que pouca gente consegue ver. Menos ainda respeitar! Abraço

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  12. O talento e a habilidade em atender bem às pessoas independe da posição ou cargo que ocupamos. Também tive a felicidade de trabalhar e conviver com alguns “catitas”. Ficam as lembranças e saudades. Você lembra do nosso amigo Mota, volante do Cantareira F.C.?

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  13. Muito bom ter lembrado do Catita e descrito algumas de suas espirituosas catitisses. Como foi dito, não duvido que vá plastificar esta crônica e exibí-la como uma credencial pelo mundo inteiro...hehe...

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  14. No BB é assim: convivemos com pessoas que nos inspiram e nos alegram. Hayton mais uma vez nos encanta com suas crônicas. Parabéns!!!

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  15. Excelente! Alguns de nós tivemos o prazer de conviver com Catitas que muito nos alegravam.

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  16. Eterno chefe e amigo, sou testemunho vivo de seu carisma e apreço por seus pares, superiores e subordinados, em especial aos colaboradores prestadores de serviço, como eu. Forte e fraterno abraço.

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  17. Excelente, amigo Hayton!! Que mais Catitas presentes neste Mundo!!

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  18. Muito bom. Me fizestes lembrar de outros Catitas. Temos muitos deles rodando nas empresas. Às vezes ficava me perguntando, onde conseguiam tanta leveza para levar a vida?

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  19. Ah nem... Que saudade que me deu agora!! Que época boa! Realmente Catita deixava nosso ambiente muito mais leve. Nuca vi de cara feia. Ver suas discussões Flamengo x Vasco com o Fonseca então... divertido demais! Também fiquei muito feliz ao encontrar com ele outro dia na recepção do Ed das Clínicas. Obrigada por nos trazer mais uma vez lembranças tão boas!

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  20. Mais uma deliciosa crônica. Me fez lembrar de dois "Catitas" que conheci na Instituição onde trabalhei depois que saí do BB. Ambos também copeiros. A diferença deles para o seu Catita era a paixão futebolística: um era botafoguense e o outro era fanático pelo time da Cruz de Malta (cuja nau começou a todo vapor nesse Brasileirão). Como disseram alguns de seus leitores, a vida corporativa fica mais leve com a presença desses "Catitas". Tolstoi também nos apresentou seu "Catita" - o criado Gerassim, personagem marcante, na obra A Morte de Ivan Ilitch.

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  21. Eu me lembro do Catita. Uma figura. Alegrar bem que poderia ser seu sobrenome. Porque Catita já é pleonasmo, né?

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  22. Graças a Deus existem muitos Catitas no mundo, que alegram e tornam os dias melhores a todos que o cercam.

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  23. Este comentário foi removido pelo autor.

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  24. Ah, que delícia!
    Sempre disse que são os terceirizados que salvam os serviços em muitas repartições públicas. Ganhando um salário mínimo, são, muitas vezes os que verdadeiramente assumem a nobre missão de “servir”.

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  25. Figura! Memorável! Lembrou bem, o Alemão anda longe!!!

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  26. Poxa, que beleza, Hayton!
    Certamente você ajudou, encurtando a distância (que não deveria haver!), a vida de Catita a ter ainda mais significado.

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  27. FABRICIO LUCAS DI PACE26 de agosto de 2020 às 10:45

    Confesso que já gostei do Catita sem nem ao menos conhecê-lo kkkkkk e sim, é pleonasmo mesmo kkkkkk

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  28. Outra beleza, Hayton! Muitos Catitas por esse velho BB tornavam nossos dias bem mais suaves e divertidos. Ativou nossa saudade com um belo texto, parabéns, Hayton!

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  29. Grande Hayton, acredito que todos, que convivemos e fomos beneficiários da alegria, energia do Catita, sentimos a sua falta. Sua preocupação, isto que esta registrada na atitude de sua ligação, demonstra o ser humano que é. E tenho convicção, gerou um momento ímpar na vida do Catita. PARABÉNS

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  30. Hayton, sua crônica me fez lembrar do Liga, contínuo que trabalhou conosco na Ag. Centro de Maceio e que, certamente, bateu o recorde de P.A., pelo menos naquela agência.

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  31. Parabéns Hayton! Vc descreveu o catita exatamente como ele era é e até hoje 👏👏👏👏👏👏

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  32. Muito boa, Hayton.
    Mais um ilariante “causo” da sua história contado em crônica muito bem elaborada. Muitos desses “catitas” alegraram e alegram os nossos ambientes de forma magistral. Sorte de quem consegue enxergá-los como parte do time e retribuir-lhes com a atenção e o respeito que toda pessoa merece.

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  33. O Catita é dessas figuras que se não existissem mereciam ser inventadas. Personagem tão rica que nem precisaria ser flamenguista, aí já é exagero, redundância.
    O melhor de tudo é você conseguir imortalizá-lo, como faz com seus personagens, torná-lo inesquecível até para quem não o conhece, com uma crônica impagável como esta.
    Minhas saudações rubro-negras ao Catita.
    UNKNOWN presente, aqui é Volney.

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  34. Boa crônica. Catita foi uma das figuras mais incrível que conheci. Sempre bem humorado. Mexia com todo mundo que passava pela Super DF.
    Toda vez que o encontrava, ele vinha com essa: Como vai meu Gato? Kkk

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  35. São pessoas como o Catita que deixa a vida mais leve, o ambiente mais agradável e as gargalhadas dos dias pesados garantida!

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  36. Há muito tempo não ouvia/lia "UREA SECA" - expressão típica nossa daqui do Nordeste... Esse caba véi, o Catita, com certeza tem passagem por aqui, não ? (Rsrs).

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  37. Boa prosa, bons tempos! 👏👏👏👏👏

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  38. Muito bom conviver com pessoas bem humoradas e de alma leve! Na minha casa de campo adoro conversar com meu jardineiro Paraíba que sempre está de bem com a vida. “Catitas” fazem bem a saúde física e mental. 👏🏻👏🏻

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  39. Ótima, pérola, sensível, belíssima, sábia, leve, profunda, encantadora, excelente, muito boa, deliciosa, bela e impagável foram alguns dos adjetivos registrados por seus leitores nos comentários anteriores. Vou acrescentar mais um: brilhante! O tempo está fazendo bem ao seu estilo, meu amigo. Obrigado por nos brindar com uma ode à simplicidade e ao humano de forma tão memorável.

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  40. Beleza de Crônica. Catita incorpora a alegria, criatividade e bom humor do Brasileiro, que, mesmo diante de limitações, tem sempre uma bela "Lição" a nos dar. Faz um bem danado ser amigo do Catita...

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  41. Agostinho Torres da Rocha Filho28 de agosto de 2020 às 19:26

    São pessoas como Catita que arejam qualquer ambiente de corporativo. Ressalte-se que, mesmo após duas horas de ônibus, sempre chegava ao trabalho de alto astral. Belo texto e justa homenagem a uma pessoa humilde, mas que sabe viver como poucos. Parabéns!!!

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  42. Ler tuas crônicas tem sido o ponto alto deste isolamento. Confesso que sou egoísta para com elas. Eu as guardo para um momento especial. Pois que são como um vinho bom. Então, quando estou naquele momento, acesso o blog e degusto cada letrinha dela. Guardo como quem lê um livro bom e que economiza páginas lidas-dia, para ampliar aquele prazer. Para que renda mais.

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  43. Descrever suas doces e bem humoradas crônicas Hayton, é desnecessário dizer que tem sido um bálsamo em tempos difíceis de pandemia, pode crê. Como disseram muito bem seus amigos, leio e releio às vezes suas crônicas, porque você descreve muito bem um mundo ceheio de "catitas" rodeados de leões. Ainda bem que tem pessoas como você que enxerga alguém para muitos invisíveis, mas que para você não é, continue tendo essa sensibilidade de em casa fato, você conta muito bem um causo. Meu abraço

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