quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Bola na trave

Prêmio Jabuti é considerado o mais tradicional e importante reconhecimento literário do País, sendo anualmente concedido pela Câmara Brasileira do Livro a figuras da comunidade intelectual brasileira. Foi criado em 1958, ano em que quase tudo deu certo para o Brasil, desde a primeira conquista da Copa do Mundo, passando pelo lançamento de Chega de Saudade, de João Gilberto, disco-base da Bossa Nova, até o espanto universal causado pela arquitetura de Niemeyer.

Concorria este ano, na categoria “Crônicas”, a obra O dia em que achei Drummond caído na rua (Editora Zarte), de autoria de meu amigo Marcelo Torres, o menino tabaréu do Junco (hoje Sátiro Dias, a 200 km de Salvador) que conheci na virada do século, jornalista e escritor adaptado a Brasília. 


Trata-se de um livro fabuloso onde grandes escritores como Amado, Cecília, Drummond, Graciliano, Marquez e outros tornaram-se personagens bem construídos de 26 histórias curiosas, hilárias ou mesmo trágicas – as minhas preferidas são 
O menino e os coronéis, Ô de casa! e O silêncio das igrejas –, frutos, segundo ele, de muita pesquisa sobre a obra e a vida de suas fontes de inspiração.

Marcelo me contava outro dia, antes da divulgação do resultado final, que já se sentia satisfeito por ter sua obra conquistado duas dificílimas vitórias, sendo escolhida entre as 10 melhores (no meio de 200 livros inscritos), depois entre as cinco melhores, numa concorrência em que estrelas da constelação brasileira ficaram pelo caminho. “Nunca imaginei que na primeira vez que me inscrevi no prêmio, com uma publicação muito simples, já fosse duplamente finalista”, pontuava.

 

Bateu na trave! A categoria teve como ganhadora a obra Uma furtiva lágrima (Editora Record), de Nélida Piñon. O imponderável cochilou no plantão e o prêmio, não se pode negar, acabou em boas mãos. Nélida é escritora de primeira grandeza e senta-se há bom tempo, merecidamente, à mesa dos imortais da Academia Brasileira de Letras. 

 

Quarta-feira passada, ao saber do desfecho, eu comentei o óbvio com meu amigo: o Jabuti, para autor pouco conhecido do grande público, deve ser visto como os escritores de renome mundial encaram todo ano o Prêmio Nobel de Literatura, isto é, com silenciosa e pragmática esperança. Se não der certo, nada a temer senão o correr da luta, nada a fazer senão esquecer o medo. Você já cruzou a linha, chegou onde pouquíssimos chegaram e continuará entregue a paixões que nunca terão fim.  

 

Disse-lhe ainda outra obviedade: literatura é arte de dentro para fora. Para declarar seu espanto diante dos mistérios da vida, o fotógrafo usa lentes; o pintor, tintas; o escritor, palavras. Quem escreve não deve preocupar-se em demasia com a opinião alheia, dado que nunca terá controle sobre como os leitores amortecerão no peito a bola de papel arremessada.

 

Por isso, toda leitura é feita de suspiros, risos e silêncios. Seria frustrante para o escritor descobrir o que seus filhos (textos) fazem no escuro do quarto enquanto ele não está por perto. Os leitores criam seus próprios quereres – “onde queres o prazer, sou o que dói; onde queres tortura, mansidão; onde queres um lar, revolução; e onde queres bandido, sou herói”, diria outro baiano como meu amigo.  

 

Voltamos a trocar mensagens no dia seguinte e ele fez uma analogia interessante ao trazer para o campo de jogo o seu querido Vitória. Nas duas vezes em que chegou à final de uma competição nacional, no Brasileirão de 1993 e na Copa do Brasil de 2010, foi nocauteado por dois adversários indigestos: O Palmeiras de 1993, de Edmundo, Evair, Roberto Carlos, Edilson, Mazinho etc., e o Santos de 2010 (campeão da Libertadores), de Neymar, Robinho, Ganso, Elano, Renato etc.

 

Naquela quinta-feira seria sepultado o que sobrou de Maradona, de quem muito se falou ultimamente, mas pouco se disse sobre sua maior contribuição: mexer com a autoestima de baixinhos, gordinhos e pernetas (cuja perna inútil não se presta nem para chutar a bunda de quem lhe condena pelo que faz a si próprio), provando que vale a pena, sim, cruzar a linha de chegada, mesmo não sendo o primeiro. 

 

Às vezes, bola na trave também é gol. Golaço!

27 comentários:

  1. Parabéns pela memorável conquista, Marcelão, belamente retratada pelo, quem sabe, também futuro finalista do Jabuti.

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  2. Quem é dono do texto, essa bruta flor do querer?
    Assim é com quase tudo na vida. Diria um: "Ah, ele é pinto novo. Escreve outro. Nélida é "puta velha". Pega mal não dar pra ela o jabuti. Esse a gente viu em cima da árvore da Nélida. Excelente reflexão

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  3. Marcelo Torres tem um estilo que agrada desde o "arriar" das malas", não precisamos de muito tempo para envolver o leitor com seus escritos. Parabéns.

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  4. Marcelo escreve com a leveza da sua alma e por isso mesmo seus textos agradam tanto! Acompanho seus passos desde quando chegou à Super BA e começou a escrever as publicações para AGN estadual. Depois chegou à atual Dimac onde passou a escrever as notícias internas para todos os colegas do BB. Muitas das crônicas que assinava, eram replicadas por várias AGN locais pelos núcleos de comunicação das superintendências estaduais. Mereceu muito ser um dos finalistas do Jabuti! Parabéns, Marceleza!

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  5. Atacando de Caçador de Mim a Quereres, Hayton presta bela e justa homenagem ao Marcelo Torres. Estou saboreando o livro dele como se não houvesse amanhã. Realmente, ser finalista de um Prêmio Jabuti é mais que bater na trave: é gol de final de Copa do Mundo!
    Já li o livro ganhador, da Nélida Piñon: ela pariu Uma Furtiva Lágrima quando recebeu o diagnóstico (que mais tarde se mostraria equivocado) de que teria apenas mais alguns meses de vida. Ela escreveu com volúpia, como se tivesse que colocar nessa obra todos os sentimentos que ainda não havia compartilhado com o mundo.
    Por Nélida ser a craque que é, e pelo contexto em que ela escreveu a obra ganhadora, merece ainda mais aplausos a conquista do Marcelo Torres.

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  6. Excelente reflexão sobre a escrita melodiosa daqueles que têm o dom próprio. Já o merecem prêmios aqueles que nos fazem sonhar acordados com tantas realidades. É isso que você atinge, Hayton. Corações sedentos por conteúdos que tragam enlevo e os transformem, acrescentando páginas de prazer.

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  7. Não conheço a obra de Marcelo Torres(pretendo conhecer), mas adorei as celebridades escolhidas. Mais uma vez, Hayton nós presenteando com belos textos.

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  8. Bem inspirador para estarmos sempre refletindo sobre nossas conquistas, mesmo não sendo em primeiro lugar. Parabéns!!

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  9. Uma conquista não se dá apenas pelo primeiro lugar! É tão emocionante ver a toda a escalada, desde o primeiro degrau, o primeiro passo. Por vezes, o caminho tem mais valor que o destino. Que o digam também os motociclistas! Parabéns Hayton! Bela reflexão!

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  10. Muito bom! Não me lembrava desse dom do Marcelo.

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  11. Que bela homenagem ao nosso Marcelinho Torres, que traz consigo o dom da literatura. Me lembro que levava pra ler em casa as crônicas de Marcelinho , quando trabalhamos juntos na Super BA, e meu marido, que é leitor assíduo, comentou, esse rapaz é bom, escreve bem.
    Que orgulho , dos meus dois amigos, Hayton e Marcelo Torres.👏👏👏

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  12. Perfeito! É como o gol que Pelé não fez, mais “imortalizado” do que muitos tentos de fato marcados.
    Parabéns (a ambos!)!

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  13. Parabéns aos dois: a você que nos trouxe a notícia poética dos destaques. Ao Marcelo Torres pela obra. Ganhar é muito bom, não é tudo. Mais importante do que ganhar é fazer, pois no "fazer" reside a força motivacional que origina tudo. Estar entre os melhores é o mérito e prêmio do esforço do trabalho.

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  14. Incrível a sua capacidade de nos transportar para os cenários de suas histórias e nos envolver com os personagens! Parabéns, Hayton, por esse primor de texto. Digno de um prêmio!

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  15. Marcelo, Parabéns! Para quem o conhece e suas obras, sabe, reconhecimento merecido. Ao nosso Amigo Hayton, cada dia Nos dá prazer, presente de textos melhores.

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  16. Excelente analogia/texto! 👏🏻👏🏻

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  17. Não conheço a obra do Marcelo Torres, mas depois do que o grande Hayton publicou em sua crônica vou ler esse livro, acima. Se mereceu as maravilhosas linhas escritas pelo Hayton é porque o cabra é bom.

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  18. Certamente, só estar participando do Jabuti já é uma premiação pelo reconhecimento da criação. Parabéns ao Marcelo e à bela crônica, que também é uma forma de valorizar o trabalho produzido.

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  19. Olha, o Marcelo é brilhante, mas não há como deixar de contemplar que em julgamentos assim o cara já entra perdendo de dois a zero, afinal sua competidora já é solidamente consagrada, e não há como isso deixar de influenciara os julgadores - sem querer aqui desqualificar o valor da obra da Nélida, que só faz prodígios.
    Pois é, o nosso Marcelo vai esperar mais um pouco, mas com certeza chegará lá, tem valor pra isso.
    Só que ele não pode se descuidar, conheço gente que muito breve entrará nesse campeonato já cometendo algumas vitórias por goleada. Alguém aí se arrisca a imaginar em quem eu pensei???
    Cartas à mesa...

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  20. Hayton, muito grato pelas generosas palavras, pelo apoio, pela torcida. E a todos que aqui estão (uns já são velhos amigos, outros novos, outros a conhecer) envio também meus agradecimentos. (Marcelo Torres)

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  21. Hoje só aplausos para o Marcelo, que não conheço, mas fazendo coro com os elogios aqui vistos... 👏👏👏👏👏

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  22. Às vezes não se ganha, mas o fato de ter concorrido já enche a alma... afinal, não se escreve por orgulho... fez com que muitos corações viajassem quietinhos fazendo um barulhão pela imaginação voando... Parabéns ao Marcelo.

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  23. Este comentário foi removido pelo autor.

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  24. Hayton, não entendedo muito desse esporte e entender desse assunto tão bem quanto você, não me arrisco ; pois me pegou de surpresa para discorrer sobre esse tema do seu texto. E como gosto de literatura, seu texto me sugeriu ler essas obras que você citou. Até o próximo texto, um abraço

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