quarta-feira, 28 de abril de 2021

Na forma da lei

Nos primeiros meses de mandato, o síndico foi logo alertando que uma das vagas que teria que preencher, na garagem do suntuoso prédio da Corte Suprema, está reservada a alguém “terrivelmente evangélico” (seja lá o que isso queira dizer!). E arrematou, para deleite de uma claque de bajuladores: “A caneta Bic é minha, mando porque posso e vai obedecer quem tiver juízo”. 

 

Um dos candidatos à vaga é tido como alguém de notável saber jurídico, apolítico, incorruptível, inflexível, além de assustadoramente cristão. Tem, por isso mesmo, expectativas em relação ao topo da hierarquia do Poder Judiciário.

 

"Duvido que não tenha ponto fraco. Todo homem tem seu preço! Ninguém é santo..." – comentaria Armando Rollo com um amigo, por coincidência assessor daquele candidato, tal era o conceito que tinha dos seres humanos em geral e das autoridades, em particular.

 

"Sei não... Se tem, só Deus sabe! O homem não bebe nem guaraná, não fuma, não fala palavrão, não cobiça a mulher do próximo e todo domingo vai à igreja" – ponderou o amigo, tentando demovê-lo de alguma iniciativa pouco republicana. 

 

Para Rollo, lobista com pós-doutorado em falcatruas em todas as esferas da República, não havia nenhum tipo de safadeza que não fosse de seu domínio nos tortuosos labirintos que levam à criação de leis e normas, à sonegação fiscal, à fraude em processos licitatórios e até à majoração descabida de preços na execução de serviços públicos contratados. 

 

Até que um dia a polícia esmiuçou uma denúncia extraída da delação premiada de um famoso doleiro. Foi só puxar o fio de um pequeno folículo que deixara a cabecinha de fora e pulou uma esvoaçante peruca de vigarices, capaz de provocar cólicas e calafrios em meio mundo de parlamentares, além de abalar os alicerces enferrujados da elite empresarial. 

 

Como era de se esperar, o lobista acabou envolvido da cabeça aos pés pelo manto de um inquérito que oferecia aos açoites da lei o couro de suas costas, com perspectivas de uma quarentena interminável na Papuda, caso fosse condenado pelas estripulias que praticara até então.

 

E o processo caiu justamente nas mãos daquele ministro de reputação inatacável. Rollo, então, decidiu procurar o amigo (o tal assessor do ministro), com quem puxou conversa entre um chope e outro num fim de tarde no Pontão do Lago Sul:

– E aí, como vai o novo chefe?

– Muito bem! Gente boa, humilde que só ele. Tá sabendo? O cara coleciona canetas esferográficas dessas bem simples... 

– Sério?

– Pois é. Desde os tempos de menor aprendiz de bancário. 


Rollo duvidou. Se fossem canetas Bentley, Montblanc, Visconti, faria sentido. Mas com seus olhos de carcará, enxergou longe quando ouviu que o ministro, entre um processo e outro, espairecia com suas esferográficas, alinhando-as milimetricamente sobre a mesa, como Jack Nicholson fazia com os frascos de seu banheiro no filme As Good as It Gets (no Brasil, intitulado Melhor É Impossível). 


O lobista então recorreu à internet para levantar tudo o que fosse possível acerca de canetas esferográficas simples – da fabricação, passando pelos diversos tipos existentes, até a origem de marcas nacionais e estrangeiras. Descobriu que havia no país vários colecionadores. Um deles, por sinal, ex-executivo de um banco público, orgulhava-se de sua coleção, objeto até de reportagem do Correio Braziliense.  

 

Ao identificar no Facebook e no Mercado Livre alguns especialistas no assunto, sinalizou que compraria peças de qualquer marca, qualidade ou procedência, e que pagaria bem. Em duas semanas, já dispunha de uma razoável coleção de esferográficas, de fazer inveja aos maiores simpatizantes da causa.

 

Preparado para o ataque, Rollo põe sua coleção numa pasta e parte para uma audiência  que solicitara através de uma onça felpuda do Congresso Nacional que lhe devia favores  junto ao quase inacessível ministro:

– Bom dia! Vossa Excelência... Eu queria falar sobre um processo envolvendo meu nome... Fazer algumas ponderações... 

 

O ministro, mal se dignando a ouvi-lo e muito menos a encará-lo, não pestaneja, sendo curto, duro e seco:

– O senhor deve recorrer aos autos na forma da lei.

– É que tem no processo alguns aspectos intangíveis que eu gostaria...

– Só decido sobre as peças e provas nos autos. 

– Sim, sim, mas gostaria que Vossa Excelência, se possível, considerasse a possibilidade de arquivamento...

 

Enquanto isso, os dedos mexem na tranca da pasta executiva sobre os joelhos. Em disfarçado movimento, faz dezenas de esferográficas rolarem pelo chão.

– O que é isso!? – levanta-se o ministro.

– Me desculpe! É uma coleção de canetas que herdei de uma tia querida que me criou lá em Taguatinga. Tô até pensando em doar para uma escola pública ou um orfanato. Só servem mesmo para crianças pobres...

– Crianças pobres!? – A esta altura, o ministro já está de quatro, com os últimos fios de cabelo assanhados e catando canetas até debaixo da mesa, a conferir uma a uma. E anima-se:

– São esferográficas lindas e raras! Veja estas três, dos anos 70, com os símbolos de Harvard, Oxford e Cambridge

 

Também de quatro, Rollo não tem pressa:

– Se Vossa Excelência gosta, pode ficar com elas. 

E acrescenta, como quem não quer nada, oferecendo a pasta com as canetas já recolhidas:

– Quer dizer que Vossa Excelência entende que o processo pode ser arquivado?

– Sem dúvida... Mas tudo na forma da lei. 

 


De tardezinha, o ministro determina o arquivamento do caso, com uma Bic escrita fina. Na forma da lei, claro!  

25 comentários:

  1. “Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei.
    Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica”

    Fernando Sabino

    ResponderExcluir
  2. ANTONIO CARLOS CAMPOS28 de abril de 2021 às 06:56

    Se a carne é fraca até para os seres supremos, imagine pra nós simples mortais.

    ResponderExcluir
  3. Nossa, chegou a me dar agonia de ler esta crônica e pensar no tanto que estas coisas são mundo real ...

    ResponderExcluir
  4. Ótima crônica, real e sempre atual. Eu mesmo não acredito mas na idoneidade de político algum, de juízes nenhum e, principalmente, de nenhum dos onze ministros do STF. Na minha opinião são todos (99,9%) venais.

    ResponderExcluir
  5. Amigo Hayton,

    Cada crônica tua a gente recebe uma verdadeira aula e informações sobre os mais variados temas.
    Esta de hoje pode ser o melhor exemplo de estratégia, de ardil que alguém pode usar. E imaginar que uma questão judicial pode ser resolvida assim na mais alta esfera do Judiciário.

    Às vezes chego a pensar que há mais informações no texto que minha mente não conseguiu alcançar. É muita engenhosidade na construção.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Valeu, Silas. É claro, trata-se de um texto ficcional. Tentei explorar o último degrau da imbecilidade humana.

      Excluir
  6. Como diria o comediante Paulinho Gogó, fato “venéreo”.

    ResponderExcluir
  7. Tudo dentro da lei. E assim caminhamos rumo ao passado, não ao futuro. Excelente crônica. Anchieta e Fátima.

    ResponderExcluir
  8. Isso me faz lembrar um trecho de uma música composta e cantada pelo saudoso Miele: "É, sim, de morrer de rir, quando a gente leva a sério o que se passa por aqui" "...E o povo, esperançoso, vai vivendo de teimoso, continua analfabeto". Excelente crônica. Pena que é verdade.

    ResponderExcluir
  9. Por aí! Pode parecer exagero, mas a realidade às vezes é ainda mais “exagerada”.
    E tias são sempre úteis (de Taguatinga ou Uberlândia, não importa)! Kkkkk
    Retrato bem delineado de nosso pequeno mundo, conquanto em cores fortes (Romero Britto não faria melhor rsrsrs).
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  10. De canetas Bic a esferográficas com “carimbo” de Oxford, Harvard e Cambridge, passando pela justiça de quatro e “tudo na forma da lei”. Se fosse um quadro, essa bela crônica poderia ser Guernica.

    ResponderExcluir
  11. Bela crônica! É “terrível” quando se faz analogia de nossa realidade.

    ResponderExcluir
  12. Tristes verdades!! A gente vai lendo e tendo dor no estômago - e não é de rir desta vez.

    ResponderExcluir
  13. A caneta Bic de um certo mandatário também foi herdada de uma tia querida de Taguatinga?
    Abbehusen

    ResponderExcluir
  14. Gostei! Pelejei para adivinhar quem era a excelência. Acho que cheguei perto por causa da dica do menor aprendiz. Seria quem estou pensando? E o Rollo, como diria o macaco Simão, tem nome de piada pronta!

    ResponderExcluir
  15. Seus ficcionais são incríveis, não resistem a fazer algum paralelo com situações de fato que acontecem em Pindorama.
    Agora, singularíssima a imagem da "cabecinha de fora". Eu achava que nem em folículo isso seria possível, mas você conseguiu...

    ResponderExcluir
  16. Às vezes o preço é pequeno demais, quase insignificante, mas dentro da lei, muito grande...

    ResponderExcluir
  17. Agostinho Torres da Rocha Filho30 de abril de 2021 às 16:57

    Maldade!!! Os membros da mais alta corte da justiça brasileira são escolhidos entre cidadãos de notável saber jurídico e reputação ilibada, nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal. Difícil mesmo é identificar quem mais assusta nossa população, no cenário atual: o Coronavírus, o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. Que Deus tenha piedade de todos nós! Mais uma instigante crônica. Parabéns!!!

    ResponderExcluir
  18. RAchando de rir, e não sei se é de nervoso, ou de pura peraltice mesmo. Que texto fantástico!!! cacacaccacacacaca. E num é que é mesmo. Troque a Caneta por o Estado de Origem, o Time de Futebol, Algo que Cuida, a Agremiação Social, tipo: Lyons, Maçonaria, Rotary, as Religiões...
    E, muitas pessoas esquecem quem são e pelo que lutam, para simplesmente aderir ao que idolatra, e fechar com o idolatrador. E, vão se formando as panelinhas que se autoprotegem, em detrimento de todos que não estão nela. Isto é uma forma de poder, e das piores, o poder que alicia pelos interesses comuns. Que cria uma pseudo similaridade, entre coisas que não deveriam ser postas em similar. E, protege, blinda e alavanca quem é da turma. Seja da Caneta Bic, seja da criação de Abelhas... Nada contra elas, entendam a metáfora! Parabéns amigo, cirúrgica e provocativa reflexão tu nos brindou.

    ResponderExcluir
  19. Essa crônica se escrita fosse em uma partitura iniciada com claves de sol, fá ou dó e compasso binário, ternário ou quaternário, teria tudo para ser uma divertida paródia que estaria nas paradas de sucesso por ser atualíssima. A humilhante posição de quatro do ministro catando canetas bics para fazer crescer o seu imenso acervo foi hilariante. Agora o que me preocupa mesmo é o hobby dos 10 outros ministros dessa hipotética corte.

    ResponderExcluir
  20. Bom dia a todos. Impressionante Hayton, como você faz um link perfeito com a realidade do nosso país, num texto tão rico em detalhes. Parabéns mais uma vez pela crônica real. Um abraço

    ResponderExcluir