quarta-feira, 16 de junho de 2021

A saga da praga

Era natural que ela estivesse inconformada, depois de três carnavais em Pernambuco, a sentir o asfalto chacoalhar quando o bloco Parceria atravessava a orla de Boa Viagem ou quando despertava ao primeiro canto do Galo da Madrugada, sacudindo pontes e ruas estreitas do Recife Antigo.


Dois carnavais depois na Bahia, a escutar a batida do Olodum e aspirando a poeira que subia quando Chiclete, Brown ou Ivete atiçavam a multidão, era normal que ela sofresse tendo que passar o Carnaval de 2001 em Brasília. Aliás, tanto faria se fosse lá, em Cubatão, Chernobyl ou Calcutá.

 

Compreendi perfeitamente. Na antevéspera do feriadão, ela pedia a todos os santos de prontidão que ele conseguisse passagens aéreas para qualquer capital nordestina, nem que fossem de Vasp ou Varig. Àquela altura, era difícil. 

 

Assim como eu, ele também não era chegado a chuva, suor, cerveja e Engov, ao longo de quatro intermináveis dias de folia e agonia. Ela teria que se conformar. Quem sabe, no sábado estaríamos juntos desossando um pernil de cordeiro na brasa, no quintal de uma casinha em Pirenópolis, no interior de Goiás.

 

Deu tudo errado. Ele conseguiu um par de bilhetes para a capital pernambucana, para imensurável felicidade dela, que lamentava apenas não poder levar-me junto. Eu ficaria bem, me disse, hospedado numa confortável residência de amigos, à beira do Lago Paranoá. 

 

Logo cedo, na sexta-feira, os dois nem se deram conta da tristeza que havia em minha cara quando me deixaram naquele local estranho, entre desconhecidos, antes de sumirem. 


Com o coração partido, injustamente tratado feito cachorro, só me restava, no silêncio de minha revolta, torcer para que a viagem deles fosse “inesquecível”.

 


Soube depois que o comandante da aeronave, após 40 minutos de decolagem, pediu aos passageiros que mantivessem a calma e comunicou que tinha problemas. Iria reduzir altitude e velocidade ao mínimo para poder retornar ao aeroporto de origem.

 

Soube ainda do tititi que se instalou entre os viajantes. Ela, no desespero, chegou a questionar os céus: 

– É isso mesmo? Tanta coisa por dizer, pedir, fazer... Reza, véio, me ajuda! – suplicava, agarrando-se à mão dele. 

– O que cê acha que tô fazendo?

 

A aterrissagem limpa e suave, 55 minutos mais tarde, levou o eufórico comandante à estupidez de afirmar que, felizmente, ninguém teria o nome citado no Jornal Nacional, o que lhe rendeu estrepitosa vaia. 

 

A aeronave passaria por ampla revisão e, caso não fosse possível o reparo, seria substituída. Enquanto isso, os passageiros deveriam aguardar, no restaurante do aeroporto, os procedimentos para reembarque.

 

Ela foi a primeira a se insurgir contra a possibilidade de novo embarque no mesmo avião. E angariou adesões entre as sócias de infortúnio, contando com a persuasão delas sobre seus respectivos parceiros. 


Então decidiu-se entre os viajantes: ou a companhia trocava o equipamento ou teria que devolver os valores recebidos. Na dúvida, dizem, o consumidor sempre tem razão.  

 

Ao meio-dia, um representante da empresa comunicou que a aeronave estava em perfeitas condições e que daria início ao reembarque. O bafafá foi enorme, mas não adiantou. 


Como não deve ter adiantado para ele explicar a ela,  indômita líder da rebelião, que a tripulação não seria louca a ponto de arriscar o próprio pescoço se não estivesse tudo em ordem.

 

Metade dos passageiros desistiu, pediu a devolução das bagagens despachadas e protocolou pedido de reembolso. A outra metade, porém, embarcou. 


Ofereço aqui dois confeitos de hortelã a quem acertar: qual a primeira criatura a chegar ao pé da escada, com medo de ter que apontar para cima os dedinhos fura-bolos, na Esplanada dos Ministérios, atrás do bloco Pacotão

 

Ela me contou depois que, logo após a nova decolagem, pegou no sono. Quando acordou, a aeronave já taxiava na pista do aeroporto de destino, sob os acordes de “voltei, Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço!”

 

De tardezinha, sol a magoar a ferida de minha saudade, uivando as dores de inesperado desprezo, não me envergonho de confessar: eu pulei a cerca! Cometi a maior loucura de minha vida ao decidir atravessar o Lago Paranoá, com destino à Asa Sul, onde morávamos. 

 

Contaram-me mais tarde que os responsáveis por minha hospedagem entraram em pânico, moveram fundos e raimundos antes de noticiarem o meu sumiço. Ela e ele, provavelmente arrependidos do que fizeram, voltaram à Brasília na manhã seguinte, em pleno domingo de Carnaval

 

Assim que pousaram, eles correram e vasculharam cada  quadra do Lago Norte à minha procura. E distribuíram cartazes e faixas pela cidade, chegando a oferecer boa grana a quem desse pistas sobre o meu paradeiro, como se remorso fosse indenizável. 


Só na boca da noite da terça-feira, três dias depois do desaparecimento, souberam que eu fora encontrado, ainda no sábado. Um cidadão, que curtia o anoitecer com seu jet ski no Lago Paranoá, me resgatara semimorto e decidiu aguardar um pouco. 


Nó na madeira, lenha na fogueira que não queria apagar, escapei. Só São Francisco de Assis sabe como.

 

De volta para casa – afinal, errare humanum est, perdoar é canino , fui submetido a terapia intensiva à base de afagos, água fresca e peito de frango com arroz puxado na casca do alho, até me recuperar das lesões resultantes da prova de Triathlon.

 

Guiness Book não homologou o possível recorde – é bem verdade, faltou a etapa do ciclismo –, mas a notícia correu solta na quinta-feira pelos canteiros da Asa Sul, onde voltei a fazer minha caminhada matinal, demarcando meu território a cada poste que encontrava pelo caminho.

 

Aproveitei, é claro, para me gabar junto a algumas amiguinhas peludas, lépidas e perfumadas, confidenciando-lhes detalhes da saga da praga que roguei naquele Carnaval de 2001. Sozinho, nunca mais!

33 comentários:

  1. Só fui adivinhar a vítima no final kkkkk Texto primoroso, hein Hayton...

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  2. Eita! " As peripécias do Lobão! " Nunca soube que ele tinha conseguido tirar a mamis do carnaval do Recife!! PODEROOOSO!!!

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  3. Maravilha de texto. Quanta inspiração!

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  4. Kkkk, muito engraçado essa canina narrativa.

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  5. ANTONIO CARLOS CAMPOS16 de junho de 2021 às 07:10

    Naquele carnaval Lobão ousou ser gente; foi irresponsável.

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  6. Belo texto Hayton, parabéns! Os pets, cada vez mais, fazendo parte das nossas vidas. Em caminhadas ao redor da rua que moro observo algumas pessoas levando-os para o passeio matinal, o alívio e com eles trocando confidências. Pena que o mau hábito de alguns, não dos pets, claro, mas dos donos, não os façam carregar sacolinha para dar destino devido à "obra". Os desatentos que se virem.

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  7. Se praga de mãe pega? Ah, a de cachorro pega mais. Eita Carnaval que vai deixar uma saudade do cão, kkkkkkkkk

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  8. Esse remorso de deixar esse companheiro de quatro patas ausente de nossa companhia, enquanto viajávamos, torturou-nos várias vezes e em uma delas também nos fez retornar. Bela narrativa!!!

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  9. Agora sim Lobão foi homenageado. Ficou bem real a narrativa. Só faltou os assobios quadra a quadra a sua procura e a preocupação de alguém nos EUA, não saber dessa fuga .

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    1. E veja, Aguilar, que nada falei da intensa vida sexual de Lobao, responsável pela paternidade de várias ninhadas em Alagoas, onde nasceu, em Pernambuco, na Bahia e no Distrito Federal, onde viveu o resto da vida.

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  10. Kkkkkkk estimável narrativa. No início, cheguei a pensar de ser um cãozinho e no final constatei.

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  11. Que linda narrativa, só quem teve ou tem um cachorrinho amado, pra entender e com São Francisco a proteger.
    👏👏👏

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  12. Eles são parte da nossa Família!
    Temos uma que é uma alegria constante em casa!
    Jackson

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  13. Estava em Ipitanga passando o carnaval quando recebi a notícia do sumiço do Lobão, o que traria de volta a Brasília a foliã mais animada que conheço, para depois comemorar o final feliz.

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  14. Uma grande sacada essa história contada a partir das memórias de um CãoPetente doguinho cuja pulada de cerca foi capaz de produzir uma reviravolta na programação carnavalesca da família.

    Parabéns!

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  15. Narrar em primeira pessoa é sempre um desafio!! Mas é sempre inspirador pensar nessa Minha Vida de Cachorro!
    Crônica inenarrável! Kkkkk
    Parabéns!

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  16. Quase uma cachorrada... a melhor expressão de saudade é fidelidade que faz cometer loucuras.

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  17. Deu pra tirar umas boas risadas desse causo. Imagino até o personagem principal refletindo a cada momento, com uma bolha sobre a sua cabeça, para constar a íntegra dos seus pensamentos traduzidos para o português. Essa relação homem/cão é mesmo particular. Consegue se aproximar em tudo daquela que só o homem tem. Aliás, da parte do cão até parece tem um sentimento mais aprofundado que o nosso. É muito bom ter um pet por perto. Eles são puro amor.
    Roberto Rodrigues

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  18. Hehehe! Sorri o tempo todo da leitura. Muito bom !

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  19. Que homenagem linda ao Lobão. Imagino a agonia de todos! A fidelidade deve ser recíproca e isso eu sei que é algo que vocês prezam. Temos muitas lembranças do nosso convívio com a Pipoca que está com 9 anos. Nada com tantos riscos e aventuras.

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  20. Kkkkkkk
    Lembro-me bem do episódio (de saber dele, claro!).
    Que sufoco!
    Esse Lobão leva jeito!

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  21. Também fui envolvido nessa saga que foi a busca pelo fugitivo e agora saudoso Lobão. Ajudei a confeccionar os cartazes (A4) onde era oferecida recompensa pela localização do mesmo, descoberto depois exímio nadador. No final deu tudo certo. Lobão deixou suas histórias gravadas.

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  22. Sendo no carnaval 'o maior amigo' pode aprontar. Vale tudo nesse período. Lobão livre...

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  23. 👏👏👏👏 Bela e envolvente crônica

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  24. A essa altura o Lobão deve está mais que orgulhoso, certamente numa concorrida reunião, em mesa farta e à luz da lua, parabenizado, exaltado e rodeado de João Ubaldo, Vinícius, Stanislaw, Jobim, Drumond, Nélson Rodrigues, Armando Nogueira e outros que não cansam de lhe homenagear ao descobrir seu pendor e brilhantismo literário. Realmente, o Lobão brinca com as palavras, merece até ressuscitar...

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    1. Sempre quis escrever um texto dando voz ao mais sentimental dos animais. No caso, escolhi dar voz ao Lobão num final de semana de seu relacionamento por 18 anos e 3 meses comigo e Magdala..

      Vi seu comentário e me fica a sensação de que você gostou muito, até porque possui idêntica afeição por estes pequenos seres que só não falam porque nós, humanos, seríamos capazes de lhes pedir sandálias, jornal e água gelada

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    2. Bela homenagem! Recordo-me deste episódio que ficou marcado nas nossas lembranças por está presente com vocês naquele carnaval em nossa casa de Aldeia. Merece um filme com final feliz.

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  25. Beleza de crônica! Envolvente … 👏👏👏
    Abs

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  26. Hayton, você me fez recordar uma situação muito parecida, que aconteceu comigo. Mas, no caso, eu estava hospedando o fugitivo, que era praticamente o filho de uma amiga. O fujão sumiu, no Lago Norte, numa noite de Natal. Pois bem, passamos, Paulo e eu, a noite de Natal rodando no Lago Norte, desespero total. Felizmente, o Tob, nunca esquecerei o nome do fujão, foi encontrado quatro dias depois!

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  27. Parabéns, cronista, você consegue nos prender a atenção no texto, e finalmente descobri quem era o personagem tão interessante. Um abraço

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  28. Que pintura, além de otimo texto, nos prende a atenção em busca do personagem.

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