quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pincéis e tintas

Tá puxado, mas não vou esmorecer. Ando tão descrente de tudo isso que tá aí que me deu vontade de reler um texto publicado aqui neste espaço há mais de dois anos, quando praticamente ninguém antevia o que iria acontecer a partir de um surto viral.

 

Transcrito adiante, o texto nasceu a partir de uma mensagem recebida de um amigo (Artur Roman) e de uma imagem captada por outro amigo, que fez brotar margaridas no asfalto duro e seco de Brasília:

 

Imagem: Dedé Dwight

Afinal, por que ainda sorrimos?

 

Anteontem, um velho amigo me escreveu lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.

Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe se preocupou: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não.  Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.

A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade –amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.

Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito. 

Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.

Evidente que se houvesse oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para  Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.  

Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua – pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?

Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.

Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.



Pois bem. Onde andarão aquelas brasileirinhas? Será que sobreviveram à tragédia político-sanitária que nos embrutece como nação ou ao alargamento do fosso de desigualdades de uma pátria-mãe nada gentil?

 

Será que aquela mãe pegou o vírus implacável que já matou mais de meio milhão de brasileiros? Se pegou, será que produziu anticorpos suficientes para derrotá-lo ou foi convencida a engolir logo o kit Covid (hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina etc.)? 

 

Se escapou, será que não comprometeu a saúde de sua criança ao cultivar bactérias super-resistentes, segura de que derrotou o vírus com antibiótico (que só deve ser prescrito para infecção bacteriana), em meio à fumaça do obscurantismo tosco que encobre o céu de anil da pátria amada?

 

Talvez nada disso tenha acontecido. Talvez a imagem que ilustra o texto não passe de uma visão contemporânea de uma santa com uma criança nos braços, encarnadas naquelas figuras frágeis que vagam pelas ruas a pedirem um futuro que nunca chega. 

 

Daquelas que de tanto ver nosso olhar banaliza, vê sem ver, como diria Otto Lara Resende. E deixamos que uma certa indiferença tome assento em nossa sala como se não dependesse de nós pegar pincéis e tintas e dar novas cores à paisagem triste e sem graça que tá aí.

35 comentários:

  1. Uma narrativa que nos faz refletir muito: dar ou não a gorjeta a mãe com uma criança? Quem está na sinaleira também tem dignidade e paga pela sua foto; e o momento realmente pede que textos de resistência sejam escritos, textos como esse retratando a realidade , parabéns amigo , mais uma vez , belo texto!👏👏👏

    ResponderExcluir
  2. ANTONIO CARLOS CAMPOS30 de junho de 2021 às 06:52

    Não saberia responder nenhum dos questionamentos. Mas concordo que a proliferação das imagens em substituição aos textos é uma tendência. Aliás, a vida nada mais é que um filme se legendas. E sem roteiro escrito também. Assim como um filme, onde tem começo, meio e fim, a nossa vida não se diferencia muito. Por isso a importância de seguir em frente. Mesmo que seja pela simples curiosidade de saber o que nos reserva os próximos capítulos.

    ResponderExcluir
  3. Atualmente, o mundo está falando mais por imagens do wue palavras, mas, o fato narrado nos leva à reflexão da crueldade com que nossos representantes, eleitos democraticamente, não se dignam a buscar minimizar essas situações afora pelo Brasil. Estào focados em manter-se no poder e sem pensar no bem estar social.

    ResponderExcluir
  4. Alem da imagem e texto, o mundo hoje é dos poadcast e das imagens com voz(youbute). O nosso autor poderia nos presentear com esses textos em voz tambem

    ResponderExcluir
  5. Talvez em função da quarentena prorrogada tenhamos refletido muito sobre diversas temas. A pergunta seria: O que, de fato, fizemos para sanar ou abrandar algumas das situações vivenciadas e sobre elas mergulhamos em reflexões. O texto nos sugere escolher as duas hipóteses.

    ResponderExcluir

  6. Lembro-me bem de quando li o texto original. Emoção repetida agora.
    Sensibilidade nas letras e na imagem.
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  7. Eu comprei uma cesta básica e voltei ao ponto onde ela trabalhava. Depois de muito procurar, descobri que ela tinha voltado com o filho para o interior da Bahia procurar chances melhores. Fiquei feliz pelo que fiz na hora. Seja lá o que tenha se passado depois, ela carrega em
    Mãos uma fotografia de um momento em que foi feliz e orgulhosa de seu filho. E eu a eterna gratidão de poder ter feito algo por alguém, além do orgulho pela linda foto que abrilhanta meu portfólio. Dedé Dwight

    ResponderExcluir
  8. A ESPERANÇA é a única que NÃO morre!!! Simples assim...

    ResponderExcluir
  9. Apesar de ser adepto de uma mudança político-social para contemplar todos, esses pequenos momentos da realidade social me comovem!

    ResponderExcluir
  10. Bela crônica, Hayton! Um retrato da triste cotidiano de nossas ruas, que provavelmente se agravará com fim da esmola-pandemia! Show de texto!
    tiberio

    ResponderExcluir
  11. Bela e comovente reflexão. Daquelas que deveríamos nos fazer sempre. Exatamente com o objetivo de não acostumarmo-nos com as durezas e agruras da vida. Com pincéis e tintas foram pintadas as cores nuas e cruas da realidade que nos cerca. Com certeza temos potencial para , ao menos, abrandar a rudeza que se impõe à vida de tantos. Pena que esse destino nunca chega. Sofremos todos.
    Roberto Rodrigues

    ResponderExcluir
  12. Comovente texto meu querido irmão, essa sua narrativa me faz acreditar que temos um santuário cheio de santas com crianças no colo e logo ali bem próximo, na esplanada o inferno, cheio de macabros demonios.

    ResponderExcluir
  13. Os governos costumam nos brindar com desculpas pra não fazermos a nossa parte. Sejam de que matiz ideológico forem, quem quiser relativizar a humanidade de seu modo de ser, tera insumos pra tal. A pandemia só veio a agravar esse quadro. De maneira hábil e talentosa, Hayton nos põe mais uma vez no canto da salinha do jardim da infância pra pensar!

    ResponderExcluir
  14. Muito bom Hayton! Até concordo, em certas situações, com a expressão popular do filósofo Confúcio de que uma "imagem vale mais que mil palavras", mas ler e refletir sobre as tintas, em formas de letras e palavras, colocadas em textos primorosos como "Pincéis e Tintas", enche a moldura dos olhos. Parabéns!

    ResponderExcluir
  15. FABRICIO LUCAS DI PACE30 de junho de 2021 às 09:50

    Que delícia de crônica que fala de assuntos tão importantes e delicados de uma maneira simples e reflexiva. Parabéns mais uma vez

    ResponderExcluir
  16. Uma triste realidade descrita com boa dose de esperança.
    Apesar do obscurantismo tosco do atual governo e de seus fanáticos seguidores, não vamos esmorecer, como você escreveu.
    Enquanto esse governo incompetente não faz o que deveria, vamos continuar semeando pequenos, mas importantes gestos de delicadeza, respeito e solidariedade, como fez nosso amigo Dedé.

    ResponderExcluir
  17. Nada dói mais na alma do que ver uma jovem mãe, maltrapilha, com uma criança no braço a pedir esmola pelas esquinas da vida. A foto capta um momento de felicidade de quem, certamente, vive na miséria extrema e ela, a foto, por si só, vale mais do que mil palavras, por mais sábias que sejam.

    ResponderExcluir
  18. Bela reflexão! Triste país que não cuida de suas pessoas -- que nem por isso perdem a fé num futuro melhor que nunca vem...

    ResponderExcluir
  19. Aí eu pergunto ao leitor, sem, de forma alguma, esquecer que a parte maior não é feita pela Pátria amada, Brasil: O que você faz, além de ler um texto como esse, é claro ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Essa é uma boa questão para ser refletida por todos nós. Diante do descaso dos nossos representantes devemos fazer a nossa parte.

      Excluir
  20. É o retrato do que acontece, principalmente nas grandes cidades, em determinadas datas; a exploração das crianças para mendicância. Já ouvi comentario de que algumas dessas crianças nem são filhos dos pedintes.

    ResponderExcluir
  21. Bela reflexão de uma triste realidade. E que bom ver com o olhar do Dedé nas palavras do Hayton!

    ResponderExcluir
  22. Prezado Hayton, fico feliz ao ver que vc segue na resistência, fazendo das Letras uma profissão de fé!
    Você atualizou a bela crônica de dois anos atrás, com pinceladas precisas de quem tem sensibilidade social, mostrando que é possível ter um olhar crítico diante da realidade sem abrir mão da qualidade literária que vc vem aprimorando a cada texto.

    Forte abraço e obrigado pela referência!

    ResponderExcluir
  23. Bela foto, a felicidade das duas é indescritível!!
    E acompanhado de belo texto!
    Parabéns!

    ResponderExcluir
  24. Excelente texto, acompanhado de uma imagem cheia de luz!

    ResponderExcluir
  25. A imagem e as palavras são mais um prova dos encantos da arte que, quando cultivado no coração das pessoas certas tem um poder transformador. Parabéns Hayton! Parabéns Dedé.

    ResponderExcluir
  26. Excelente texto e linda imagem. Visitei Brasília no mês que passou e me causou espanto a presença de mendigos em áreas nobres. Alguns até acampados nos canteiros. Efeito Bolsonaro, foi uma explicação que ouvi.

    ResponderExcluir
  27. “Afinal, por que ainda sorrimos?”
    Não podemos abdicar do sorriso, da alegria, do bom humor e da esperança de dias melhores, seja através de textos, fotografias, vacinas ou seja lá o que for.

    ResponderExcluir
  28. Belíssima Narrativa!
    Pincéis e Tintas é para ler, pensar e refletir muito... Esse texto retratando a dura realidade vivida nas grandes cidades...
    Parabéns Hayton!
    Mais uma vez vc superou!
    Abraços,
    Maria de Jesus Almeida Rocha.

    ResponderExcluir
  29. É quase surreal!!!!!
    Você reedita uma crônica singularmente tocante sobre a miséria explícita constante de nosso quotidiano e, não satisfeito, produz outra com poderio ainda maior de nos levar a uma chocante reflexão.
    É certo que o tema proporciona possibilidade de infinitos escritos, mas nenhum, com certeza, poderia superar esses dois aí, só mesmo você é capaz de se superar.
    De resto, como sói acontecer, você cria uma expressão digna de ser inscrita em qualquer antologia que se pretenda fazer - "TRAGÉDIA POLÍTICO-SANITÁRIA".
    Grande e emocionado abraço...

    ResponderExcluir
  30. Lindo texto, Hayton, emocionante! Mas dá uma tristeza sem fim, pensar em tantos brasileiros e tantas pessoas mundo afora nessa situação. Se pararmos para pensar, é incompreensível, inadmissível. E bate um peso na consciência, do quanto somos (sou) indiferente!

    ResponderExcluir
  31. Excelente texto. Aí ficam duas questões: as imagens proliferam em substituição à escrita que já se torna difícil a muitos? Fazer doação nos sinais é ajudar? Talvez seja, mas é solução do problema?

    ResponderExcluir
  32. Neste belo texto, encontramos a dura realidade de nossa Sociedade. E a certeza que a educação é o melhor programa de geração de renda, vida digna.

    ResponderExcluir
  33. Hayton,a beleza do seu texto faz um paradoxo com a realidade das modelos diria assim da sua narrativa. Leva-nos a repensar nessa realidade crua do nosso tão combalido páis pela ciminosa corrupção, infelizmente faz crescer cada vez mais o número de pessoas nessa condição de subvida, agravada ainda mais nessa pandemia. E como disseste: cadê essa mãe com essa filha, será que subsistiram aos intempéries da vida?

    Parabéns pelo presente de toda quartaa feira.

    ResponderExcluir