quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Minha mãe deve gostar

Dia desses ela me ligou com a voz de quem estava prestes a chorar:

– Meu filho, você viu?

– O quê, mãe?

– Ele morreu... E agora, o que vai ser de Glória?

 

Lamentava a morte do ator Tarcísio Meira, aos 85 anos, vítima da Covid-19. Sua mulher, a atriz Glória Menezes, também fora internada com a doença, mas teve sintomas leves. O casal já havia sido vacinado, porém a situação do marido agravou-se porque, além de cardiopata, sofria de enfisema e insuficiência renal.

 

Minha mãe é daquelas que não conseguem separar a realidade da ficção quando se trata de telenovelas. Se fosse possível, de máscara e devidamente lambuzada de álcool em gel, levaria pessoalmente seu abraço à família enlutada. 

 

Lembrei-me dela no bairro da Gruta, em Maceió, há 45 anos, assistindo ao último capítulo da novela Pecado Capital, da TV Globo. O taxista Carlão (Francisco Cuoco) tentava livrar-se de uma mala de dinheiro – deixada em seu carro, havia meses, por assaltantes em fuga – nas obras do metrô para, em seguida, fazer uma denúncia anônima à polícia. Não deu tempo: foi morto a tiros por um sujeito chamado Tonho Alicate, que rapidamente fugiu do local. Minha mãe não se conteve:

– Pega esse cachorro miserável! 

 

Já vinha indignada porque a suburbana Lucinha (Beth Faria), o grande amor da vida de Carlão, o trocara pelo milionário Salviano (Lima Duarte). O taxista “herdara” por acaso o butim largado em seu carro e resolveu investir numa frota o que antes cogitou devolver à polícia. Pretendia enriquecer e reconquistar a sua amada. E minha mãe virou profetisa:

– Carlão vai acabar se lascando. Essa moça é interesseira, oportunista... Quer é o dinheiro desse velho feio! – referindo-se a Salviano. 

 

Em Pernambuco, 20 anos depois, quando visitava a Usina Pumaty, conheci um de seus principais acionistas, que agia bem parecido com minha mãe. Olhava com insistência para o relógio, enquanto explicava o processo de destilação de álcool, até revelar que tinha pressa. Todo dia, pontualmente às cinco da tarde, voltava para a casa para tomar banho, jantar e ver novelas.

 

Ele havia assistido Ídolos de Pano (1975), exibida pela TV Tupi, onde o vilão Jean (Dennis Carvalho) queria afastar o mocinho, seu próprio irmão Luciano (Tony Ramos), da linha sucessória familiar. Os dois eram os únicos herdeiros de uma rica empresária muito doente. 

 

Dois anos depois a TV Globo exibiria Locomotivas, onde Netinho (o mesmo Dennis Carvalho), sufocado por Margarida (Mirian Pires), sua devotada e humilde mãe, tratava-a muito mal. O usineiro não aguenta e desabafa:

– Esse rapaz nunca me enganou. Não vale nada! 

– Isso é novela! – diz alguém.

– Sei não... Ninguém faz um papel desses com a própria mãe se não for um cabra safado!

 

O poeta Carlos Drummond de Andrade, bem no começo dos anos 70, também revelava grande interesse nos folhetins eletrônicos, mas por outro motivo. Era a época da famosa "gripe" de O Pasquim, ironia com que se justificava a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, quando alguns intelectuais (Antonio Callado, Chico Buarque, Drummond, Glauber Rocha e outros) mantiveram "vivo" o jornal com seus textos.

 

Diferente da chamada elite intelectual – que via as telenovelas com reservas –, o poeta percebeu a influência que poderia ter na educação política da sociedade. Só aqui a ficção era consumida diariamente no horário nobre e com tanto espaço. No resto do mundo, foram os livros que saciaram a fome por ficção. 

 

A TV aqui chegou antes de o povo se alfabetizar. Sempre prevaleceu uma tradição mais oral que escrita. Prefere-se ouvir o padre ou o pastor falar a interpretar a Bíblia. Opta-se por contar um caso ao pé-de-ouvido a escrever. Em vez de ler, assiste-se às novelas, o que leva o brasileiro a se identificar bastante com alguns personagens.

 

Quem não recorda o prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) e o pistoleiro Zeca Diabo (Lima Duarte), personagens de O Bem-Amado, novela de Dias Gomes exibida pela TV Globo em 1973? O autor, aliás, teve que mexer no roteiro por ingerência de Brasília. Proibiu-se que a palavra “coronel” fosse pronunciada. “Coronel” era a forma como o prefeito era tratado, principalmente por Zeca Diabo. 

 

Vedou-se também o termo "capitão" (como Odorico tratava Zeca Diabo). Alguém achou que "capitão" e "coronel" se referiam a patentes militares, quando, no caso, aludiam a políticos ou grandes fazendeiros e alguns capatazes detentores de poder junto aos currais eleitorais dos tempos do voto de cabresto.


Com seus protagonistas (do bem ou do mal), vejo que as telenovelas ainda tocam o coração de pessoas simples como minha mãe. 


Torço para que algum autor se inspire na biografia do irreverente jornalista Apparício Torelly (1895 – 1971), o Barão de Itararé, cujas tiradas ainda desnudam muita gente: 
“Todo homem que se vende recebe muito mais do que vale”. 
“Tambor faz muito barulho mas é vazio por dentro”.
“Se há um idiota no poder é porque os que o elegeram estão bem representados”. 


Como viu muita coisa nas últimas seis ou sete décadas, minha mãe deve gostar.

 

43 comentários:

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    1. Ô, seu Anônimo, quem nunca prestou atenção numa novelinha que atire a primeira pedra, não é mesmo?

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  2. Nossas Mães, também meu Pai, que numa roda de conversa com a Família, foi o assunto. E os Netos relembrando, a risadas, Dedé era noveleiro.
    Crônicas de uma qualidade ímpar, que Nos traz a história.

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  3. Nos tempos gloriosos da CREAI, época de Custeio Agrícola eu topava trabalhar todo dia até 22:00, desde que fosse liberado das 18:00 às 19:00 para assistir "Cabocla. "Pantanal, na Manchete eu assistia e gravava para rever os capítulos no final de semana.

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  4. Teu texto nos remete a um passado não tão distante, Hayton, onde despontavam grandes artistas da televisão. As atuações de Lima Duarte, Tony Ramos, Tarcizio Meira, Glória Menezes, Francisco Cuoco, Paulo Gracindo, Eva Vilma, Antônio Fagundes e muitos outros, nos prendiam por meses ao “pé da tv” nos horários das novelas.

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  5. Muito boa, parabéns! Meu pai e minha mãe não perdiam uma. Assistiam em TVs separadas, para conciliar preferências. Ele era dos que se transportavam para os cenários e tomavam partido pelos personagens. Uma novelinha tem seu lugar!

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  6. ANTONIO CARLOS CAMPOS25 de agosto de 2021 às 07:39

    Já gostei de novelas e até já assisti algumas (Irmãos Coragem, O Bem Amado e Roque Santeiro), mas foram ficando muito ruins que acabei desistindo. Mas admiro quem consegue se intrometer emocionalmente na trama. Minha avó conseguia. Ao assistir "Sangue do meu Sangue", com Francisco Cuoco, ela as vezes soltava longos suspiros. Mas novela é um gênero que caiu no gosto do Brasileiro.

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    1. “Há situações em que o máximo que se pode fazer é rezar. E esperar, claro, entre suspiros” (Caio Fernando Abreu).

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  7. As novelas foram realmente a narrativa dominante, até porque eram o programa selecionado pelos pais em cada casa onde só havia um Aparelho. Minha mãe também nunca separou personagens de atores, a ponto de não comprar sua revista preferida por ter a Odete Reutman na capa. Nossa geração toda se formou numa mesma bolha e estamos tendo que criar uma próxima geração multiestimulada por streamings, games e conteúdos os mais diversos nas mais diversas bolhas. Será bonito ver o que virá. Delicia de leitura, amigo. Dedé Dwight

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  8. Gostei das tiradas do Barão de Itararé. Muito atual. E quanto as novelas, continuo assistindo. Kkk

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  9. Querido Hayton, seu texto, além de divertido, bem humorado, traz essa figura crédula, com esse traço de inocência que deixa uma sensação morna no peito.A senhora sua mãe consegue nos fazer sonhar, nesses tempos de trevas!

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  10. Prefiro filmes. O sofrimento dura menos mas lembramos mais. Kkk. Séries, novelas, seriados, é uma agonia. De qualquer modo, quase toda forma de arte tem seu lugar, seu público e sua época de destaque.

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  11. O Bem Amado foi a novela que mais gostei na vida! Tentei rever alguns capítulos recentemente, mas por óbvio não teve o mesmo sabor. Só a trilha sonora ainda me encanta!
    As tuas “mal-traçadas” estão ótimas, como sempre, Hayton. Mas as tiradas do Barão de Itararé que você resgatou estão impagáveis e atualíssimas, especialmente uma delas.

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  12. Já fui muito noveleiro. Comecei com Irmãos Coragem e fui até Império, quando passou nos idos tempos pré-pandêmicos de 2014 e 2015.

    Larguei o vício das novelas e me viciei em Séries...

    Adorei a escolha que você fez das tiradas do Barão de Itararé.

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  13. As frases do Barão de Itararé ficaram bem emolduradas pelo texto! Abração Hayton.

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  14. Já gostei muito de ver novelas. Hoje as séries é que estão no meu cotidiano. Sempre admirei o trabalho hercúleo dos criadores das novelas, pela tarefa extremamente desgastante, para criar algo que vai prender milhões de pessoas por meses. Minhas reverências especiais à Janete Clair, Ivani Ribeiro, Cassiano Gabus Mendes, Benedito Ruy Barbosa e, meu predileto, Dias Gomes. Belo texto para fazer-me relembrar desses grandes autores.

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  15. Muito bom texto! Viajei no tempo pois também era noveleira, única diversão na minha adolescência. Eu e meus 9 irmãos,ficávamos em frente a TV, onde cada um palpitava qual seria o final. Tempos saudosos. Hj eles estão conectados, sem tempo pra boas conversas. Amei os textos finais. Atualizadissimos por sinal.

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  16. Que bela narrativa! Você é demais! Como lembra de tantos detalhes?

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  17. Realmente muito detalhista nosso amigo! Outra excelente crônica. Parabéns!

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  18. E quem não, assiduamente, "frequentou" o cabaré Flor de Lyz da belíssima Ana Preta, em Pai Herói? Aquilo sim, era um cabarezinho sadio. Se a Glória Menezes era quem o administrava, só podia ser um ambiente familiar.

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    1. Ouvi dizer que serviam até uma sopinha de legumes com pão crioulo na boca da noite. Não tinha vírus que aguentasse um santo remédio dessa qualidade!

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  19. Muito boa!
    Estou numa fase da vida em que invejo abertamente (para mim mesmo!) o talento de alguns amigos.
    Esse seu profundo conhecimento de novelas muito me incomoda… kkkkk

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    1. De fato, já fui bom nisso, Zé. Hoje, prefiro filmes e seriados. Chega uma hora em que as coisas esfriam feito queda de pressão. As únicas que continuam subindo são as gengivas.

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  20. Acho que a Globo está perdendo um grande talento... só faltou saramandaia... muito boa crônica.

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  21. Novelas já influenciaram muito o povo brasileiro. Li que a novela "O Direito de Nascer" (extinta TV Tupi) fez tanto sucesso que o último capítulo exibido há 56 anos no Ibirapuera, em SP, e Maracananzinho, no RJ, com os estádios lotados. Novelas da Globo como Roque Santeiro, O Bem Amado e Gabriela, entre outras, figuram entre as de maior sucesso da TV. Novelas também são vistas como o "ópio do povo". A força da TV foi muito bem demonstrada no filme "Bye Bye Brasil".

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    1. *... que o último capítulo foi exibido há 56 anos no Ibirapuera (...)

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    2. De Jessier Quirino, depois de ler o texto:

      “Lembro que minha sogra, D. Celinha, também emburaca na história. Quando vê o foguetório no Maracanã, diz de boca toda:
      “Uma girândola dessa ninguém solta aqui em Itabaiana pra NS. da Conceição!?”

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  22. As mães e meus tempos de adolescencia , vivíamos as novelas ..., e o final com as tiradas do Barão de Itararé , excelente!

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  23. Crônica deliciosa, como sempre, redação de escol, memória prodigiosa, mas uma falha imperdoável. Não se pode fazer referência ao inesquecível, imortal, apaixonante canalha Odorico Paraguassu sem elencar todos os seus predicados. É preciso destacar, ODORICO PARAGUASSU, filho de Eleutério e neto de Firmino Paraguassu...

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  24. Beto Barretto27 de agosto de 2021 19:19
    Parabéns Hayton! Reviveu grandes momentos novelísticos de várias gerações. Hoje são as séries que dominam as mentes. Mas, hoje, a novela das Seis “Nos tempos do Imperador” tem matado a saudade daqueles bons tempos.
    Dinheiro na mão é vendaval, é vendaval ....

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  25. Olá, Hayton!
    Não sou um fã de novelas, pela percepção de que os autores "esticam" as tramas quando suas criações caiam no gosto dos telespectadores tornando-as monótonas e repetitivas. Bem que tentei! A exceção vai para "O casarão".
    A crônica, por inteiro, é muito agradável. Destaco o seu final, com as tiradas do Barão de Itararé, e faço plágio do comentário de Rede: "... impagáveis e atualíssimas, especialmente uma delas".
    Abração,
    Abbehusen

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  26. Mais uma vez, caro amigo Hayton, você nos fez cúmplices, nesta crônica, de acontecimentos que "envolveram" muitos de nós.
    Mas, essa preferência pelas novelas também ajudou a "demolir" os poucos cinemas que ainda sobreviviam...
    No entanto, a "evolução" cultural da população brasileira vem empurrando as novelas ao abismo da indiferença...
    Ainda há muito para ser revisitado e isso, talvez, motive o desejo pela releitura de muitas "histórias" bem escritas que poderão "salvar" nossas memórias e encorajar-nos a outras aventuras...
    Obrigado por nos encantar mais uma vez.

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  27. .... e além dessas, a inesquecível Irmãos Coragem....

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  28. Quem nunca teve um parente, um aderente ou mesmo a gente não ter em algum momento se envolvido com a tão envolvente ficção. Quando o Tarcísio Meira veio a falecer vítima deste vírus infame, devo-Lhe confessar que me emocionei. Parecia até que um ente querido da minha família havia morrido. Parabéns pelo texto!

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  29. Bom dia!
    Voltei no tempo com esse texto.Leve,descontraido e alegre. Nos faz refletir o passado comparando com dias de hoje. Já estou imaginando como será o futuro da nossa juventude daqui a 50 anos. O que vão pensar quando lerem esses textos com narrativas da metade do final do século passado, os de hoje e os da época deles. Iriamos rir ou chorar... queria estar aqui pra saber....

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  30. Crônica excelente! Uma verdadeira viagem ao passado das telenovelas!

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  31. Seu texto nos levou ao túnel do tempo. Quem na época dessas novelas não se identificou com os personagens quase reais? Muito bem retratadas na sua crônica; porém, a TV Globo não é mais a mesma, hoje só tem produzido porcaria, na minha opinião. Um abraço

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