quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O profeta

Antigamente, éramos um país subdesenvolvido e atrasado. Fomos promovidos a emergente – embora volta e meia me venha a impressão de que se trata de um eufemismo modernoso para designar a mesma coisa – e continuamos atrasados. 

Nosso atraso é muito mais que econômico ou social, antes é um estado de alma, uma segunda natureza, uma maneira de ver o mundo, um jeito de ser, uma cultura. 

Temos pouco ou nenhum espírito cívico, somos individualistas, emporcalhamos as cidades, votamos levianamente, urinamos nas ruas e defecamos nas praias, fazemos a barulheira que nos convém a qualquer hora do dia ou da noite, matamos e morremos no trânsito, queixamo-nos da falta de educação alheia e não notamos a nossa, soltamos assassinos a torto e a direito, falsificamos carteiras, atestados e diplomas, furamos filas e, quase todo dia, para realçar esse panorama, assistimos a mais um espetáculo ignóbil, arquitetado e protagonizado por governantes.

Que coisa mais desgraciosa e primitiva, esse festival de fanfarronadas e bravatas, essa demonstração de ignorância mesclada com inconsequência, essa insolência despudorada, autoritária, prepotente e pretensiosa. Então a ideia era submeter decisões do Supremo Tribunal Federal à aprovação do Congresso, ou seja, na situação atual, à aprovação do Executivo. 

E gente que é a favor disso ainda tem o desplante de lançar contra os adversários acusações de golpismo. Golpismo é isso, é atacar o equilíbrio dos poderes da República, para entregar à camarilha governista o controle exclusivo sobre o destino do País. 

Até quem só sabe sobre Montesquieu o que leu numa orelha de livro lembra que o raciocínio por trás da independência dos poderes é prevenir o despotismo. Se eu faço a lei, eu mesmo a executo e ainda julgo os conflitos, claro que o caminho para a tirania está aberto, porque posso fazer qualquer coisa, inclusive substituir por outra a lei que num dado momento me incomode.

Hoje, muito tempo depois de Montesquieu, sistemas como o vigente nos Estados Unidos, cujas instituições políticas plagiamos na estruturação da nossa república, dependem de um equilíbrio delicado e sutil, o qual pressupõe uma formação cívica e cultural que nosso atraso nos impede de plagiar também. Uma barbaridade desse porte é praticamente impossível acontecer por lá. E isso se evidencia até no comportamento e nas atitudes de todos. 

Nenhum deputado americano iria blaterar contra a Suprema Corte e investir contra a integridade do Estado dessa forma. E nenhum dos magistrados sai, como aqui, dando entrevistas em toda parte e tornando-se figurinhas fáceis, cuja proximidade induz uma familiaridade incompatível com a natureza e a magnitude dos cargos que ocupam, intérpretes supremos da Constituição, última instância do Estado, capaz de selar em definitivo o destino de um cidadão ou até da sociedade. 

Quem já presenciou a abertura de uma sessão da Suprema Corte, em Washington, há de ter-se impressionado com a solenidade majestosa do ato e com a aura quase sacerdotal dos juízes. Aqui, do jeito que as coisas vão, chega a parecer possível que, um dia destes, a equipe de um show de televisão interrompa uma sessão do Supremo para entrevistar os ministros, com uma comediante fazendo perguntas como "que é que você usa por baixo da toga?" e Sua Excelência, olhando para o decote dela e depois piscando para a câmera, dê uma gargalhadinha e responda "passa lá em casa, que eu te mostro".

Soberana, entre as nossas manifestações de atraso, é a importância que damos à televisão. Não conheço outro país onde visitas apareçam exclusivamente para ver televisão na companhia dos visitados, ou onde se liga a televisão na sala e ninguém mais conversa. Hoje está melhor, mas, antigamente, o sujeito era convidado para dar uma entrevista e todos os funcionários da estação ou da produção o tratavam como se ele estivesse recebendo uma dádiva celestial. Do faxineiro à recepcionista, todos eram importantíssimos e eu mesmo já me estranhei com alguns, um par de vezes. 

A televisão é tudo a que se pode ambicionar, todas as moças querem ser atrizes de novelas, a fama é aparecer na televisão, quem aparece na televisão está feito na vida. Briga-se por tempo na televisão, ameaça-se o regime por causa de tempo na televisão e avacalha-se a imagem das instituições através dos que parecem sempre ansiosos por aparecer na televisão. 

Em relação aos ministros do Supremo, creio que todos os dias pelo menos uns dois deles se exibem em entrevistas. Houve a questão do mensalão, mas a moda e o costume já pegaram e qualquer processo no Supremo que venha a ter grande repercussão vai gerar novas entrevistas, pois ministro também é filho de Deus e, se não houvesse seguido a carreira jurídica, teria sido personalidade da televisão.

Quanto aos governados, as chances de aparecer na televisão são escassas e talvez o mais recomendável seja não as ambicionar, porque isso pode significar que teremos sido assaltados ou atropelados, ou vovó esticou as canelas depois de quatro dias numa maca na recepção de um hospital vinculado ao SUS, ou já viramos presunto. Temos os nossos representantes, que podem representar-nos também aparecendo na televisão, são o nosso retrato. 

Continuam a caber-nos as duas certezas que Benjamin Franklin via na vida: death and taxes, morte e impostos. Nossas oportunidades de morte são amplas e diversificadas, de bala perdida a dengue. Em relação aos impostos, estamos a caminho do campeonato mundial. E, finalmente, contamos com o consolo de saber que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Ou seja, pensando bem, não temos de quem nos queixar.


De propósito, meus queridos leitores e leitoras, evitei colocar aspas neste texto para que vocês não ficassem curiosos sobre sua autoria. Mas chegou a hora de dizer que é da lavra do inesquecível João Ubaldo Ribeiro – autor, dentre outras, da obra-prima 
Viva o Povo Brasileiro –, que o publicou no jornal O Globo, em 5/5/2013, sob o título “Governantes e governados”, um ano antes de sua morte. 

Como foi escrito há oito anos, portanto, não se sabe o que diria hoje o ilustre profeta itaparicano ao povo brasileiro, caso ressuscitasse neste 7 de setembro. Talvez, vendo a mesmice aqui incrustada, chegasse com aquela cara de sono e aquele cheiro da maré da Baía de Todos os Santos, assobiando “eu vejo o futuro repetir o passado...”



40 comentários:

  1. Isto é Brasil, somos exatamente essa fotografia.

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  2. Exatamente assim.
    Cruel realidade.
    Abração
    Zezito

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  3. Eu completaria o final do texto transcrito com a frase: e não temos a quem nos queixar. Senti um grande vazio ontem. Acho que o Brasil vem regredindo a passos largos. 😢🇧🇷

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    1. Note, Marina, que João Ubaldo escreveu o artigo nos estertores do governo da outra corrente política dominante e parecia antever o que temos hoje pro almoço. E não se enxerga no horizonte ninguém defendendo uma revolução na educação, sem a qual nossos bisnetos continuarão apenas sonhando em viver num país desenvolvido.

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  4. Uma indignação inspiradora esse texto. As manifestações de ontem não tinha jovens. Um incendiário manipulando velhinhos expulsos de seus bingos e palavras cruzadas e levados a pensar que estão numa cruzada para salvar o país e resgatar suas memórias de ordem e progresso tão difusas quanto sua esperança. É um passado ilusório tentando moldar um futuro onde não há lugar para eles. Não passarão e João Ubaldo era sergipano. Dedé

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    1. Epa, meu caro Dedé! João Ubaldo (Osório Pimentel) Ribeiro nasceu em Itaparica (BA), em 23 de janeiro de 1941. Dos primeiros meses de idade até cerca de onze anos, viveu com sua família em Sergipe, onde o pai era professor e político. O resto você sabe…Rsrsrs

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  5. É o interminável FBAPA, do “profeta” Stanislaw Ponte Preta vigente como nunca …. Lastimável

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  6. Agostinho Torres da Rocha Filho8 de setembro de 2021 às 08:33

    A crônica poderia ter sido escrita hoje, pois retrata exatamente os dias atuais. Parabés ao autor e ao blogueiro pela oportuna decisão de publicá-lo.

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  7. Perfeito. Irretocável. Impecável texto.
    Há oito anos não compreendíamos porque Papai do céu levou tão precocemente João Ubaldo. Hoje entendemos.
    Poupou João Ubaldo de testemunhar o espetáculo patético de 7 de setembro de 2021.

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  8. Muito barulho por nada e palhaçada de pessoas mal secedidas, que não sabem e não querem respeitar a DEMOCRACIA. Seguindo um militar medíocre e deputado incompetente.

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  9. FABRICIO LUCAS DI PACE8 de setembro de 2021 às 09:31

    Que texto maravilhoso, retratou com maestria tudo que estamos presenciando. Parabéns mais uma vez

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  10. Aquele país de gente boa e cordata que tínhamos a impressão (ou a vontade) ser está, cada vez mais, mostrando sua face. Que não é boa. O Brasil saiu do armário!

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  11. Caro amigo Hayton, Bom Dia.
    O retrato, de 05/05/2013, que João Ubaldo nos revelou, de fato, mostra-nos que pouca coisa mudou em nosso País. Talvez a TV tenha perdido espaço para as ditas redes sociais, mas o comportamento do brasileiro continua muito próximo do que se via há 8 anos.
    Talvez tenhamos que nos aprofundar em estudos sociológicos que possam indicar a causa...
    João Ubaldo "fotografava" muito bem a realidade. Se pudéssemos ter uma série de crônicas dele, enfocando os mesmos pontos, é possível que chegássemos a perceber a "evolução" da "alma" do brasileiro.
    Enquanto continuarmos elegendo governantes e representantes que se distanciam do discurso que nos apresentaram, penso que pouco poderemos esperar.
    Forte abraço.

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  12. ANTONIO CARLOS CAMPOS8 de setembro de 2021 às 10:19

    Nosso Sistema Político não funciona porque a bandidagem descobriu que o melhor lugar para se estar é no Executivo, no Legislativo ou no Judiciário. Deixam os assassinatos, o tráfico de drogas e os assaltos a mão armadas para os irmãos analfabetos.

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  13. Bastante próxima a situação descrita por Ubaldo aos dias de hoje. Continua muito difícil o Brasil se renovar. É preciso desta ar que o sistema dominante é duro e coeso em suas pretensões. Os chamados Poderes, notadamente Legislativo e Judiciário, fazem parte do establisment posto e acionan sempre suas engrenagens para a manutenção do atual status quo. Sempre as cortinas são fechadas e nós na plateia ficamos a esperar o próximo Ato. Pena ...

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  14. Emergentes é um eufemismo para "erguendo a cabeça pra fora da merda ". Já sobre o estado, estamos no de coma. Quando eu ministrava aulas sobre gestão gestão pública, minha fala era de que os países mais ao norte da linha do Equador também haviam passado por coisas terríveis - por isso até são mais sisudos que os brasileiros - até saírem do estado da barbárie para o de civilidade. Nós também chegaremos lá, dizia eu aos meus alunos, é questão de 200, 300 anos. O Brasil ainda é novo, a gente chega lá, apesar do ranger de dentes e do choro compulsivo das desgraças que nos assolam.

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  15. Hayton, se tivesse parado de ler sua crônica antes dos dois últimos parágrafos, jamais saberia que o texto não é seu; tal a maneira como você se expressa em semelhante situação.

    A propósito, o protagonismo da maioria dos ministros do Supremo é chocante; pelo menos para mim que fui criado num tempo em que as prisões de jornalistas, políticos e figurões eram determinadas pelo Ministério (Ministro) da Justiça e Segurança Pública; hoje isso é feito pelos ministros do STF; aliás, eles fazem tudo; menos interpretar a Constituição.

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  16. Pobre, atrasado e em constante crise de identidade. Chegamos bem próximo da turma que compõe o tal do G-7. O bloco dos ricos. Éramos os intrusos no banquete. Éramos convidados, mas não sabíamos bem como se comportar à mesa. Na turma do G-20, éramos apenas mais um. Agora, além de pobres e atrasados, revelamos nossa face mais sombria. Flertamos com o autoritarismo, a violência gratuita, o negacionismo e tudo o mais que se possa caracterizar como retrocesso. Somos hoje o oposto do que definiu Sérgio Buarque. O “homem cordial” que habitava em nós parece estar desaparecendo. Manter o ânimo é preciso.

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  17. "Eu vejo um museu de grandes novidades...", continua a letra de Cazuza, tão contemporânea quanto o a crônica de João Ubaldo.

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  18. Grande João Ubaldo, ele jamais imaginou que tudo o que escreveu lá atrás estaria se repetindo.

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  19. É impressionante a situação em que nos encontramos atualmente. Ricardo Rangel, colunista da Veja, publicou em 2 de junho desse ano um texto com o título "Como assim?", que se misturássemos à crônica de João Ubaldo deixaría-nos ainda mais incrédulos pela permanência desse comando hoje existente.

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  20. "Tudo como dantes", no país chamado Brasil! E, como dizia aquele outro cantor..."nada mudou, uô, uô, uô...

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  21. Muito oportuno o resgate do texto de João Ubaldo.

    É um retrato que não envelhece.

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  22. O "profeta" de Ubaldo nunca vai envelhecer, pois o Brasil é um Continente de mais de 200 milhões de pessoas. Nosso aculturamento está sedimentado nas raizes da miscigenação do Descobrimento do Brasil. Os novos tempos servirão para a mudança de habitos e costumes e, talvez, de gestos e compromissos politicos nos proximos 100 anos.

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  23. O unknown de hoje é de Mário Nogueira.

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  24. Antigamente se dizia que falta de berço fazia muita coisa... se político gera político...

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  25. Triste realidade, caro Hayton. Está tudo dito. Confesso uma ponta de angústia ao confirmar cada linha da sua escrita. O "país do futuro", aquele que nunca vinga, nunca está plenamente maduro, nunca dá o bom exemplo, é dura a realidade. E esse desvario que você lucidamente narrou só faz com que a nossa nação dê voltas em torno de si e nunca engrene uma marcha vigorosa adiante. Basta andar na rua para cruzar com uma miríade de brasileiros e brasileiras sem história, sem nada que lhes convide a um futuro tido como promissor. A pobreza grassa por toda parte. Não só aquela de recursos materiais, mas, infeliz e lascada mente, a pior de todas as espécies: a de espírito. Resolvê-la parece ser tarefa hercúlea, que nem de longe se avista.
    Roberto Rodrigues

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  26. "E assim caminha a humanidade". "Nada há de novo debaixo do Sol - tudo é vaidade e aflição". "A História se repete". E, no final, "Cromos devora seus filhos". "Decifra-me ou te devoro", expressava a Esfinge de Tebas. ("Vaidades de vaidades, somente vaidades", ou "Elogio à loucura"?). Dissera Keynes: "No longo prazo todos nós estaremos mortos". Mas não esqueçamos de reconhecer que o baiano João Ubaldo Ribeiro foi genial.

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  27. Corrigindo: "Cronos devora seus filhos" - tudo se move para um Fim.

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  28. Realidade cruel! Onde chegaremos? Passado, presente e o futuro……

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  29. Grande Hayton, vc como sempre surpreendendo. Até porque, seus textos são excelentes! Forte abraço.

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  30. À medida em que ia me aprofundando na leitura fui sentindo "comichões", ficava aquela sensação de que já tinha lido algo parecido.
    Leitor fiel de João Ubaldo - VIVA O POVO BRASILEIRO é realmente marcante e singular -, não me dava conta, confesso, de que era de sua autoria o artigo - sim, é um artigo e não crônica. A memória de um "seminovo" como eu, conquanto revisado e vacinado, além de conservado em BARRIS DE CARVALHO não permite mais identificar a autoria de textos lidos há anos. Depois, você produziria sem esforço texto de igual brilhantismo caso se dispusesse a fazê-lo.
    Chamou minha atenção também sua afirmação em resposta ao comentário da leitora Marina, você foi preciso, incontestável, cirúrgico ao afirmar a certeza de que nossas agruras continuarão até nossos bisnetos já que nenhuma intervenção se faz na única área capaz de mudar nosso infeliz quadro - a educação.
    Comento sempre com amigos minha desolação com o futuro do país de meus descendentes pois sabe-se que investimento em educação para transformação de costumes, exercício pleno da cidadania, apresenta resultado na próxima geração, então se não se começa o processo hoje, nenhuma evolução se pode esperar no futuro.
    Enfim, como não acredito em milagres, estou sempre desiludido com o futuro de Pindorama.
    Perdoe a prolixidade, ela se mostrou inevitável pra conseguir registrar minha indignação.

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    1. É, meu amigo Volney, alguém disse um dia que “a arte da previsão consiste em antecipar o que acontecerá e depois explicar o porque não aconteceu”.
      Tem sido assim desde que se proclamou a República, convictos de que mudariam o Brasil para melhor.
      Não se muda uma nação sem se investir na educação do povo dez vezes mais do que se gasta com armas, discursos vazios e munição.

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  31. Talentosa e eficaz essa parceria entre João Ubaldo e Hayton Rocha para demonstrar o quanto permanecemos no estado de subdesenvolvimento (ou emergentes, o que dá na mesma) desde memoráveis tempos. Somos, ainda hoje, o mesmo povo que se fez representar na Suécia por brasileiros que lá estiveram para torcer pelo Brasil na copa do mundo de 1958. Contava-se que lá os brasileiros eram identificados por cuspirem no chão e tentarem acertar os trilhos dos bondes com as bitucas de cigarro. Nada mudou!
    Abração
    Abbehusen

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  32. "Em relação aos ministros do Supremo, creio que todos os dias pelo menos uns dois deles se exibem em entrevistas." O STF não passa de um grande partido político, assim como a OAB e a CNBB. Todos eminentemente políticos. Excelente texto!

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  33. Com certeza retrata nossos fias de hoje! Bela crônica Hayton!

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