quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Oi, Garnisé, tudo bem?

Depois de várias semanas na roça sem rede wi-fi, Serjão voltava à capital, onde responderia a algumas mensagens recebidas. Minutos depois, um velho amigo retorna: “... Que maravilha receber sinais de vida seus! Espero continuar merecendo um quarto do carinho que lhe dedico”.


Serjão retoma a conversa dizendo que, dentre as qualidades do amigo, admirava a concisão, a ironia e a rapidez de suas respostas. Que persegue isso, mas nem sempre alcança. E que aquela curta e singela mensagem deixa-o apreensivo.

 

Resolve interpretá-la melhor tal como se examinam as cores na Carta de Munsell, ferramenta utilizada na agronomia para identificar tons de solo comparando amostras. Queria posicionar-se pelo menos uma oitava acima na escala de avaliação do amigo. 

 

Adquire então um invento de um baiano tido como revolucionário, com o formato de um acarajé, utilizado para decodificar textos das mais inusitadas origens. Dizem que a Pedra de Roseta, descoberta por Champollion, é fichinha perto dele! 

 

O troço possui um corte longitudinal parecido com o das maquinetas de cartões, mas com leitor de código de barras, onde é inserida a mensagem. Piscam algumas luzinhas e escutam-se sons do meteorismo intestinal enquanto a leitura é processada. O resultado sai impresso num guardanapo, em esmerada caligrafia de contador das antigas, bico-de-pena à base de dendê. 

 

A mensagem do amigo foi assim decodificada: “Ô, seu fresco, cadê você, que nunca mais deu notícias?” Passado o susto, repete o processo e recebe outro tiro: “Você tá vivo, seu esculhambado?” Pensou: vai que é defeito de fabricação. E tenta mais uma vez, o que só ratifica a sentença: “Ô corno, fi-de-rapariga, onde tu andas?" 

 

Com o cabeção latejando de tanta cerveja na noite anterior, Serjão mastiga e engole o invento como se fosse o último tira-gosto do boteco, antes que o dendê reutilizado engordurasse a imagem nada boa que tinha de si mesmo.

 

Típico caso de autoestima no solado dos sapatos, diriam os especialistas em caraminholas, ele dá razão ao amigo conciso, mordaz e veloz nas respostas. É desleixado mesmo! Acha até que merece ser adjetivado de forma mais cruel, impiedosa.

 

Certo é que, vez por outra, Serjão é tomado por períodos estranhos, como se fosse pareado via bluetooth à tábua de marés da praia das Dunas, em Massarandupió, única oficialmente reservada à prática de naturismo na Bahia, seja lá o que isso signifique.


Tem semanas que jura que o universo está contra ele e submerge. Noutras, põe-se contra o mundo inteiro com a coragem e a esperança daquele rebelde chinês que encarou tanques de guerra nos protestos na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. 

 

Tal como as correntes marítimas, Serjão oscila quando é lua cheia ou nova. Ultimamente, porém, anda seguro de que o seu destino é viver na roça, onde os bichos e as plantas lhe parecem mais íntegros e racionais do que as pessoas que vê por aí. O que mais quer agora é convencer sua musa inspiradora a se aposentar e juntarem os travesseiros no meio do mato. 


Ele já havia me contado que, desde moleque, ostenta o título de pioneiro do bullying. A primeira criatura a zoar com suas sardas foi a professora do primeiro ano: “Nossa, como você é bonitinho... Parece um ovinho de tico-tico...” 


Pronto! Ficou tácito que todos poderiam bulir com seus predicados estéticos, inclusive um par de orelhas que se tivesse brotado nas costas faria dele um anjo. 


Ilustração: álbum de família.

Garnisé”,  “Cagada de mosca”, “Banana madura” e “Enferrujado”, foram alguns dos apelidos que teve que aturar até o fim do primeiro grau. Aliás, a professora do último ano ainda tentou aliviar chamando-o de "Enferrujadinho". Dona de divinas tetas, ele até se animou achando que ela queria conferir a pinta do ovinho de tico-tico. Não deu.

Contou também que aquilo que aconteceu na escola nem foi o pior. Em São Paulo, no bairro operário onde morava, as tecelagens cediam casas para trabalhadores como seu pai, a maioria imigrantes espanhóis, portugueses e italianos. Acabavam todos se encontrando na mercearia, na farmácia, na igreja, no mercado ou na festa de rua.

 

Quando dava de cara com outro moleque, conseguia inibir a provocação franzindo a testa, as sobrancelhas e cerrando os punhos. Terríveis eram os encontros fortuitos, em locais públicos, como aconteceu certa vez numa sorveteria, quando ouviu de um amiguinho: “Oi, Garnisé, tudo bem?”

 

Quis quebrar a cabeça dele com o boleador de sorvetes ou a pedra que segurava a porta, tanto mais depois que sua mãe, diante de todo mundo, achou de indagar: “Nossa, filho, esse é seu apelido?” 

Quase aos prantos, tenta responder de forma objetiva e contundente, mas o que sai só macula a sua fama de menino sabido, bom de briga: “E o apelido dele, sabe qual é? Cocô...” 

 


Aos 66 anos, entre livros, bichos e plantas, Serjão não precisa mais ser conciso, rápido e mordaz em suas respostas. Vive
um dia por dia como escolheu viver, nada mais. Feito um garnisé no tempo dos quintais.

26 comentários:

  1. Caro amigo esta tem muita pimenta junta, essa das asas nas costas tempera até caldo de bila (bola de gude). Valeu.

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  2. Só sabe como dói esses " apelidos" quem já foi vítima de algum...Bonitinho hoje em dia, se denominar " bullying " e um monte de gente caindo em cima dos culpados...Quanta gente tem a auto-estima nos pés por conta dessas " piadinhas " de antigamente!! Ácido puro!!!!Todo humano tem dentro si,lá num cantinho esse demoniozinho que sente prazer em humilhar o outro, como se isso melhorasse a sua condição. Mais infeliz é o " mestre" em " zoar" os outros!!!

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    1. Você está certa. Eu mesmo nunca gostei de colocar um apelido em alguém. No mínimo, dois…

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  3. Quem já passou por essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos que Eu.........E a vida continua para Serjão e o Autor.

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  4. Saudades dos tempos em que um apelido soava como uma forma carinhosa ou uma zoação, sem maldades, de tratarmos nossos amigos!

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  5. Parodiando a Palavra, quem ama não cobra amor de ninguém! Esse "amigo" até pode gostar dele e sentir falta de notícias mas o fez de forma muito pouco amigável.
    Mas, ainda sobre esse sentimento maravilhoso do amor, se quem ama perdoa, o Serjão deve ter perdoado esse e outros filhos de.....

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  6. Eu vou rir até morrer com o “cagada de mosca” 😂. Égua! O povo era ruim demais.

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  7. Kkkkkkkkkkk
    Identifiquei-me com o Garnisé.
    Tem a minha total solidariedade!
    Esse seu baú não tem fundo, hein, Hayton?!
    Excelente!

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  8. Me levou aos bons e velhos tempos do grupo escolar, época do “cabeção”, “pé de pato”, “boca de véia” e outros … 😂👏👏👏
    Abs

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    1. Esse negócio de “cabeção”, Manoel, tenho certeza de que tudo não passava de coisa de sua cabeça. Apelido é como dente: só dói quando nasce!

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  9. Muita gente relativiza os estragos que alguns apelidos provocam nas pessoas desde a infância. Certamente não são os que tiveram a autoestima abalada pela crueldade nem sempre intencional de seus colegas.

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  10. Caro amigo Hayton, Bom Dia. Acho que desta vez você abriu várias "portinholas de boa lembrança". Navegou liso no vocabulário, fazendo seus leitores se deliciarem nesse balaio de aventuras do Serjão...
    Tudo de bom. Forte abraço.

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  11. Acho que os moleques antigamente tanto apelidavam como eram alvos de algum tipo de alcunha, principalmente no ambiente escolar. Se chiasse muito aí o negócio ficava ruim pois a tendência era que o apelido pegasse e, quase sempre, esse segundo nome continha aspectos ou situações jocosas. Nunca presenciei encrencas que levassem a extremos. Hoje ainda temos em menor escala essas mesmas gozacoes só que a chatice do politicamente correto vem impondo certas restrições a toda essa zorra. Boas lembranças.

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  12. Bons tempos aqueles. Apelidos, apenas. Não se pensava em outra coisa e nem em ofender. Mera britadeira. E quem já não os teve? O pior é que batiam com as características do indigitado...rs. valeu.

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    1. Note que as três consoantes que você confundiu (tnc) serviam à resposta abreviada para quase todo apelido: TNC!*#%

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  14. Quando vi a foto identifiquei. Uma figura! Está levando a vida que pediu a Deus.

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  15. O apelido é tão importante que, muitas vezes, é incorporado ao nome, e sem ele não identificamos a pessoa; eis alguns de meu conhecimento:
    Sebastião "Puara", Agnaldo "Liga", Marcos "Pinduca", Zé "Cabeção", Zé "Miquila", Zé "Beiçola", Paulo Fernando " Goiabinha", Zezinho "Nefatite", João "Sapo", Fernando "Ganso" etc.
    Alguns desses, nem precisam do nome próprio.

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  16. Tempos do grupo escolar ...era bom demais!!!
    Quase todo mundo tinha apelido e gostava de apelidar também, só brincadeira.
    Tudo normal. Atualmente ficou bem mais sério, virou " bullying".
    Forte abraço.
    Maria de Jesus A.Rocha.

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  17. Após a leitura da crônica percebe-se como algumas coisas se tornaram chatas, hoje em dia.
    Com essa mania do "politicamente correto", em que ficamos receosos de chamar alguém pelo calemburgo, tratar um fresco de viado, um "padilha" qualquer de corno chifrudo, enfim, praticar um "bullyinzinho" sem medo de um - "aguarde o processo".
    Em nosso tempo de criança e adolescência, continuando pela vida escolar e laboral tudo isso se fazia e nem por isso se ficava traumatizado.
    Garanto que o nominado Serjão, garnisé, guiné, galinha pintadinha, da índia, orelha de abano, de elefante e por aí vai, se sentiu lisonjeado pelas lembranças e deve ter dado boas risadas com o relato.
    Lembro que quando cheguei para trabalhar na agência Centro Maceió ouvia muitos colegas se tratando por "chifrudo pra lá, chifrudo pra cá". Não via o chamado chifrudo se ofender. Certo feita um recém chegado, como eu, perguntou a um chifrudo:
    - Por que vocês tratam uns aos outros por chifrudo? Ele não se ofende?
    - Se ofende não, por que a gente só trata assim quem não é! Já lhe chamaram assim alguma vez?
    Tempos que não eram tão chatos.

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    1. Pois um colega de trabalho quis partir pras vias de fato apenas por eu ter lhe perguntado, depois das festas juninas, se "TOMOU LICOR NO SÃO JOÃO?" Cada um com seus problemas, seus traumas!

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  18. Apelido!
    Quem nunca teve um?
    No enredo, o que mais me chamou atenção (além dos apelidos), foi o invento do baiano, com o formato de acarajé, utilizado para decodificar textos. Pesquisei no mercado livre e não encontrei. Diante das inúmeras mensagens que recebo, cada uma endereçada aos meus diversos apelidos, gostaria de decodificá-las e interpretar o que realmente cada um estava pensando.

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  19. Eita, Hayton, confesso que o meu apelido era ate razoável; "a freira", boazinha, comportada, não colava e não conversava em aula (apenas por timidez). E pensar que hoje em dia apelido dá até cadeia,isso quando a criatura não se deixa ser engolido pela mídia e se mata em razão do dragão "bulling".

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  20. Amo tudo que Hayton escreve. Aprendo muito. Parabéns prezado escritor

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  21. Aqui em casa éramos 7 irmãos e cada um tinha o seu apelido> Se algum quisesse irritar o outro era só apelidar. Há uma diferença entre um apelido carinhoso e o apelido-bullying, o que deixa a moral mais por baixo do que barriga de cobra.

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