quarta-feira, 6 de abril de 2022

A evolução dos parvos

Para mim, o grande acontecimento no primeiro quarto deste século 21 tem sido a evolução espantosa e fatal dos parvos. Nelson Rodrigues bem que avisou que “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, mas a tecnologia tem ajudado a acelerar o processo.

 

Você, leitora amiga, sabia que é possível postar nas redes sociais um vídeo cantando com a mesma categoria de Elis Regina ou Marisa Monte? Você, meu caro leitor, sabia que pode ser visto dançando como John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, apesar da pança e das dores nas articulações?

 

É simples. O truque que permite simular algo assim pode parecer complicado, mas não é. Basta, por exemplo, extrair de plataformas como o Youtube gravação de voz e filmagem de movimentos naturais, inclusive trejeitos, para se criar uma realidade alternativa capaz de deixar qualquer um de queixo caído.

 

Esse tipo de manipulação, com a ajuda tecnológica da chamada Inteligência Artificial (quando computadores são programados para imitar o comportamento humano), é conhecido por deepfake, termo que descreve arquivos de áudio e vídeo criados num “aprendizado de máquinas”. 

 

O potencial de maldades e trapaças é incrível. Qualquer deepfake que se possa imaginar é possível ser feito, com troca ou retoques faciais, clonagem de voz (“copiada” para dizer outras coisas), sincronização labial (quando a boca de alguém falando pode ser ajustada a uma faixa de áudio diferente) e outras artimanhas que até um semianalfabeto digital aprende com facilidade.   

 


Corpos também podem ser criados como avatares. Com essa tecnologia, mesmo algumas figuras históricas que já se foram para outro plano podem ser trazidas de volta para aprontar mais algumas antes de arderem de vez nos quintos dos infernos. 

 

Funciona assim: um computador consulta outro se o clone que ele acaba de “criar”, a partir de você, é bom o suficiente, comparando-o com o “material” original. Sacoleja os braços e move as pernas do mesmo jeito? A voz é igual, inclusive os vícios de linguagem? A expressão facial é parecida? Os tiques nervosos? E a coisa vai se aprimorando a cada nova versão até o “criador” ficar satisfeito com a “criatura”.

 

O impacto disso pode ser devastador, sobretudo no campo político (ou pornográfico, sem querer ser redundante), onde vira e mexe imagens falsas são veiculadas nas redes sociais e causam danos terríveis às vítimas, desde raposas felpudas até os mais vulneráveis, como crianças e idosos.

 

Descobrir traços imperfeitos nesse tipo de mídia manipulada constitui um desafio, mas podem ser identificados procurando-se “saltos” bruscos no vídeo, mudança na entonação da voz, baixa qualidade do áudio, membros com formas desproporcionais, essas coisas.

 

E não precisa ser expert no tema para distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Quando um vídeo lhe parecer suspeito, experimente diminuir a velocidade, reveja uma ou duas vezes e se pergunte: isso pode ser real? É natural que aconteça? 

 

Em seguida, veja se encontra o enredo do “filme” em fontes alternativas confiáveis. Uma breve pesquisa lhe dirá se você está diante de algo verdadeiro ou falso. Se houver outra versão, compare. Enfim, se desconfiar de um vídeo (ou de uma imagem), lembre-se de que o velho e sábio Google ajuda muito.

 

O importante é você saber que a maior ameaça dos deepfakes está na forma de lidar com ele. Conectada 24 horas por dia, a sociedade vem se empanturrando desses monstrengos virtuais e quase sempre aquilo que passa adiante (por inocência ou má-fé; mas sempre ávida por isso!) é narrativa mentirosa. 

 

A desinformação, aliás, objetiva justamente espalhar dúvidas, reforçar crendices ou se opor de forma antidemocrática a outras ideias. E numa nação onde a maior parte das pessoas (inclusive pertencentes às castas dominantes) não lembra nem do título do último livro que leu, pouca gente se dá ao trabalho de verificar se imagens e sons foram retirados de contexto, editados ou encenados. Especialmente se o que viu reforça seus credos. 


Pior que tudo: algumas figuras desonestas tiram proveito desse ambiente saturado de ignorância e obscurantismo. A mera existência dessa tecnologia lhes faz jurar de pés juntos que tudo o que disseram é falsificação. "O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém" (Shakespeare).

 

Você deve lembrar de um ex-presidente norte-americano que alegou ser “uma farsa” – ainda que, anos antes, tenha se desculpado pelo vacilo – a gravação na qual, referindo-se às mulheres, diz: “...eu sou atraído pela beleza... Simplesmente começo a beijá-las. É como um imã. Simplesmente beijo… E quando você é famoso, elas deixam você fazer isso. Você pode fazer qualquer coisa”.

 

Ufa! Ainda bem que não temos por aqui esse tipo de gente, capaz de tudo. Poderia querer se aproveitar da evolução espantosa e fatal dos parvos para atingir objetivos nada republicanos. 

15 comentários:

  1. Essa prática pode buscar inspiração no "...o sertão vai virar e o mar vai virar virar sertão" para dizer: "...o real vai virar ficção".

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  2. Amigo, tenho visto isto inclusive em sala de aula. As pessoas criam seus mundos, habitam neles e acreditam. Criam histórias, que no inconsciente delas, gostariam que fossem verdadeiras. E, mesmo depois, confrontados com a verdade, ainda assim preferem manter suas versões ridículas e nada científicas. Eu ando muito preocupado com o futuro do Brasil. Tem uma comunidade no Face chamada Edita Aqui. E tenho visto um monte de gente postando fotos para que sejam editadas. Mas, totalmente fora do contexto. O trabalho daqueles editores é magistral. Eles conseguem colocar uma pessoa num grupo, sem ela nunca ter estado lá. Fazem sorrir, quem tava chorando. Abrem olhos de pessoas que saíram de olhos fechados. Criam cenários, colocam roupas, adereços... tudo imperceptível aos olhos mais leigos. Mas, o que me chama atenção é a pessoa acreditar no resultado final e agora o ter como fidedigno. Um senhor pediu pra numa foto de família a sua esposa estivesse sorrindo. Os editores colocaram um sorriso nela. E, ele agora, pode criar sua fake-versão do dia, sem acolher que naquele momento ela não tinha razoes para sorrir. Muito bem colocado teu alerta, e vai piorar!

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  3. Pois é, meu amigo, muda apenas a ferramenta a serviço dessa prática ancestral.

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  4. É...já vi de tudo neste mundo. Meu medo agora é parar de ver e acabar enxergando o que não existe. Eles conseguiram trazer a mula-sem-cabeças de volta, o saci-pererê, o curupira e outros que tais. Só que, com um detalhe monstruoso: agora essas figuras lendárias são reais, tem pelos, unhas e dentes, prontos pra engolir os incautos e cegos desse novo mundo matrix.

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  5. Que medo me deu agora!!! Será o final dos tempos? Ou um tempo novo no qual não sabemos a que realidade pertencemos? Não sei se é possível, mas chego a pensar que até Deus se espanta com a sua criatura!

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  6. Será a era da pós-verdade. Algo é ou não verdade a depender de quem me contou. Ao longo do tempo as pessoas serão marcadas pela IA, assim como Gado, de seu comportamento fake ou não.

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  7. Bom Dia, caro amigo Hayton.
    De fato, muita coisa está mudando... Lembro-me de um evento de que participei há mais de duas décadas, quando um palestrante afirmou que estamos na "era da areia", referindo-se à matéria prima do silício. Portanto, desse ambiente "arenoso", muita "tempestade" pode surgir...
    Forte abraço a todos.

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  8. Por aí!
    Profético e sempre atual, o grande Nelson Rodrigues.

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  9. Afastei-me de pessoas com as quais nutri amizade precisamente porque optaram por espalhar todo tipo de conteúdo, principalmente os mais perniciosos, visando, não apenas "reforçar suas crenças", mas as impor sobre todos, algo que, para mim, é a total destruição. Cada dia mais sinto o aproximar das distopias hollywoodianas.

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  10. Tenho bloqueado em minhas redes sociais mais de uma dezena de "amigos" que optaram por espalhar esse tipo de coisa. Fui vítima de uma brincadeira que, felizmente, morreu no nascedouro. Mandaram-me dizendo: olha o que eu tenho de você. Reenviei à polícia técnica e respondi: olha o que eu tenho pra você. Nunca mais recebi uma mensagem dessa pessoa. A tecnologia aparelha os bons e os maus, infelizmente.

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  11. Eu não tenho nada inteligente a dizer. E tudo que eu disser poderá ser usado contra mim. Inclusive isso! Rsrs

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  12. Este comentário foi removido pelo autor.

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  13. Assunto mais inquietante não há nestes tempos atuais, Hayton! As relações sociais, a publicidade, o processo eleitoral, as guerras - nada será mais como antes. A genial série Black Mirror expõe de forma irretocável esse nova realidade. Que não nos “fossilizemos”, como dizia meu colega Lenilson Campos, para podermos sobreviver nesse novo mundo.

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  14. Eu mesmo, a cada dia, reduzo minha navegação pelas redes sociais e até pelos canais da chamada imprensa tradicional. É muita porcaria que por aí está sendo postada. Estou preferindo ler nos velhos e bons livros de papel pois ali antecipadamente seleciono o que ler. Essas " pós verdades" e meta "não sei o que" o que fazem é poluir a comunicação com besterois infinitos.

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  15. Falar sobre o brilhantismo de seus textos é jogar água em locais inundados.
    O singular aí é o tema que você explora, e o faz com tanta profundidade que até assusta.
    Analógico assumido, reconheço, aplaudo e me beneficio dos recursos da era digital, mas não tenho dúvida sobre os perigos que também eles podem proporcionar.
    Às vezes sinto-me confortado por saber que, vivendo já o ocaso da vida, estarei livre de alcançar possíveis pragas danosas e cruéis, como seria a possibilidade de recriação, no futuro, de algumas das figuras ditas humanas que conhecemos hoje.

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