quarta-feira, 15 de junho de 2022

Quem souber, me conte, por favor!

Faço parte de alguns grupos de WhatsApp de ex-colegas de trabalho. Vira e mexe, dou de cara com um post anunciando o silêncio definitivo de um deles, seguido daquela fila de condolências, votos de pêsames, de uma boa passagem, de um bom lugar na eternidade. 

 

Ninguém diz, mas certamente sempre tem alguém ruminando: “Logo fulano! Por que não beltrano?”. Se algum beltrano me lê agora, peço não levar isso muito a sério. Faz parte da natureza humana.

 

E tem aquele curioso querendo saber a causa do passamento, como se isso fosse relevante àquela altura, ao que alguns se apressam em responder convictos: “infarto fulminante”, “parada cardiorrespiratória", por aí.

 

A pergunta carrega em si um pensamento um tanto egoísta e sutil: quer o inquiridor apenas  "confirmar" se estaria fora de risco. E cresce a fila de posts:

– Como foi possível? Infartou com todos os exames em dia? – indaga um.

– Parecia tão disposto… – comenta outro.

– A morte só quer um pretexto... Vai ver foi a vacina! – especula o terceiro. 

 


Desconheço o sessentão como eu que não faça uso de pelo menos uma bengala química para se manter de pé, ativo e saltitante. Exceto os mentirosos, claro, os quais nunca chegam nem aos 50.

 

Muitos subestimam os efeitos colaterais dos remédios sob o argumento de que as bulas representam apenas precaução da indústria farmacêutica, temendo processos judiciais.

 

Outros não admitem que a causa mortis pode ter sido o desencanto com a espécie humana, sobretudo com figuras próximas. Ou com as dores que toda manhã alertam para o correr dos anos. Ou ainda com a incoerência de uns que discursa sobre a ineficácia de vacinas mas que, de boné, máscara e óculos escuros, toma até as doses de reforço.

 

Não me lembro de ninguém que encerrou sua jornada neste plano que não tenha puxado uma última lufada de oxigênio, seguida de um derradeiro batimento cardíaco. Nem de quem tenha sofrido um colapso sob aviso prévio de 30 dias, datado e rubricado. Soa discutível, portanto, falar de parada cardiorrespiratória ou infarto fulminante como causa mortis depois de certa idade da vítima.

 

Parece coisa daquele velho médico, já com a bateria em petição de miséria de tanto surfar no vai-e-vem das ondas científicas, que fecha um diagnóstico (quadro febril, com enxaqueca e mal-estar) olhando para o paciente como quem acaba de descobrir o segredo da vida eterna e decreta na maior caradura: “é virose!” 

 

Bem, se virose ainda é o nome que se dá para qualquer doença ou infecção causada por vírus, sou capaz de vestir uma camisa vermelha e preta e desfilar por aí se o ilustre doutor já não soubesse disso mesmo sem se dar ao trabalho de passar anos entre graduação universitária e residência médica. Melhor servir água gelada e cafezinho e predizer: “vai passar”. De uma forma ou de outra, tudo passa.

 

Sei que pareço outro velhote desses com o combustível na reserva, aqui no balanço de uma rede na varanda, conjecturando sobre a morte e suas causas. Tudo bem, confesso, às vezes essa imagem acaba sendo bem fiel. 

 

Há algum tempo estou convencido de que toda pessoa morre duas vezes, com certo espaço entre as duas. A primeira quando ganha sepultura e epitáfio para chamar de seus e a segunda quando seu nome é citado entre os vivos pela última vez. Raras permanecem na memória por séculos, como Jesus Cristo, Maomé, Beethoven e Da Vinci. A maioria não sobrevive nem mesmo na lembrança de seus descendentes, amigos do peito ou credores.

 

Mas no balanço geral, contudo, existem circunstâncias que podem melhorar o resultado da última linha. O olhar amoroso e protetor de pais e avós e a contrapartida de afeto e reconhecimento de filhos e netos, por exemplo, têm o condão de alongar a memória e retardar o esquecimento.

 

O bom da velhice? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor. Sei é que tenho um monte de casos para contar. Posso passar o resto da vida lembrando (e recriando, do meu jeito) o tanto que experimentei, mas viver só de lembranças é coisa de velho e ficar velho é uma merda! É tolerável apenas quando penso na única alternativa que existe e opto por ficar por aqui, divertindo-me e mexendo com quem presta atenção no que escrevo.   

 

Enquanto somos lembrados, a memória respira, lateja. No jogo da vida, não existe morte súbita nem na prorrogação. Ou será que toda morte é súbita? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor! 


Como na canção "Epitáfio", dos Titãs (ouça), contamos todos que o acaso nos proteja enquanto seguimos distraídos por aí. 

36 comentários:

  1. Ademar Rafael Ferreira15 de junho de 2022 às 05:44

    Por não saber as respostas, reservo-me ao direito de citar duas características de um bom texto: Destacar as rosas sem ignorar os espinhos e mostrar a leveza de um navio cargueiro. Parabéns.

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    1. Ou a sutileza de um rinoceronte numa loja de louças. Faz parte…

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    2. Muito bom Hayton. Veja-se o que disse Rui Barbosa em relação ao mistério que nos cerca: a vida: “Mas na grande viagem. Na viagem de transito deste a outro mundo, não existe possa, ou não possa; não existe quero ou não quero. A vida não tem mais que duas portas: uma de entrar pelo nascimento; outra de sair pela morte. Ninguém cabendo-lhe-lhe a vez, se poderá furtar a sua entrada. Ninguém, desde que entrou, em lhe chegando o turno, se conseguirá evadir a saída. Entre um e outro extremo, vai o caminho, longo ou breve, ninguém o sabe, entre cujos termos fatais se debate o homem, pesaroso de que entrasse, receoso da hora em que saia, cativo de um e outro mistério, que lhe confinam a passagem terrestre”. Em Oração aos Moços.

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    3. Pela “caligrafia”, só pode ser meu amigo Marcelo Acioli. É por aí, meu caro!

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  2. A morte continua sendo um
    Mistério, a causa mortis também, não sabemos o que pode vir nos próximos segundos, minutos e vamos segurando nas bengalas químicas e prolongando nossa estadia por aqui.

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  3. Pois é. Estamos todos na fila, rezando pra ela andar devagar porque já tivemos muita pressa. Vamos devagar e sempre, curtindo um dia de cada vez aproveitando as " sobremesas da vida". Afinal ninguém sabe quando a cortina vai fechar...

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  4. Ainda bem que estamos ficando velho,pq é melhor do que morrer novo.

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  5. Acho que a gente começa a morrer quando se pega pensando excessivamente na morte. É ela batendo na porte e avisando que um dia vai entrar.

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    1. … Ou quando começa a tecer comentários sobre o que lê de forma anônima, achando que assim não será descoberto pela indesejável de todos 🤣

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  6. A estranha saga de uma raça que tem (teve) tudo pra dar certo.

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  7. Boa Hayton. Acho mesmo que a maioria das mortes é anunciada, como os casamentos que se acabam, sempre um fim anunciado.

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  8. Excelente reflexão! Talvez o bom da velhice seja a coleção de "causos" para contar toda quarta-feira e encantar os amigos.

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  9. O dia-a-dia, com a avalanche de situações que a nós se apresenta, evita-nos de pensarmos constantemente na única realidade de que não se pode fugir, a da nossa finitude. E agarramo-nos em fugas mil, na esperança permanente de que ainda está longe o desfecho. E assim continuamos vivendo a ilusão.

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  10. Como diriam muitos, ficar velho é uma merda, mas a rainha do rock acrescentou à frase: "e é maravilhoso ". Concordo com Rita Lee porque apesar dos percalços da idade, é como ficar no camarote a observar as tolices da vida e a futilidade das coisas na condição de um quase semideus. Ficar velho é ruim? Sim, mas também só fica velho quem não morre cedo. E tenho dito.

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  11. Mais um presente para a nossa reflexão, a morte, entendo, vem sendo construída no dia a dia da Vida. Uma trajetória com maior velocidade, outras nem tanto. Cabe a cada de Nós construir, rezar para conseguir livra dos infortúnios, e viver, sem vergonha de ser Feliz. Vamos que Vamos!

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  12. Com leveza, você escreveu de forma realista sobre a morte! Gostei! O fato é que nós humanos, desde que tomamos consciência da morte, passamos o resto da vida brigando com ela…rsrsrs. Já que a alternativa nunca deve estar em cogitação, melhor é não pensar muito nela.

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  13. Quando junta a idade avançada com a notícia de uma doença grave é que a porca torce o rabo. A noção de finitude bate com tudo e só resta decidir de que maneira você quer aproveitar os “acréscimos” dados pelo juiz da sua partida de futebol na terra. Sempre há o que priorizar e o que descartar definitivamente.

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  14. "...bengala química para se manter de pé, ativo e saltitante."
    Para falar de tema tão doloroso, que é a morte, você usa, com propriedade, figuras de linguagem com pitadas de humor. Parabéns!

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  15. Simplesmente muito verdadeiro, arretado!!

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  16. Toda vez que volta pra casa depois de passar algumas horas em um velório, minha sogra costuma fazer o seguinte comentário:

    "Tinha muita gente lá que pegou a senha de "ida" antes de mim. Ainda bem" diz ela, suspirando com certo alívio.

    Mas ela sabe que todos nós temos uma senha, mesmo não sabendo a ordem geral dos chamados.

    Luiz Andreola

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  17. "...bengala química para se manter de pé, ativo e saltitante."
    Para tratar de tema tão doloroso, que é a morte, você utiliza, com propriedade, figuras de linguagem e pitadas de humor. Parabéns!

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  18. Bom Dia, caro amigo Hayton...
    Esse tal de "derradeiro batimento cardíaco" preocupa, sim, para quem pensa que ainda vai realizar sonhos inacabados ou empreender com a força da juventude.
    A preocupação, como nosso nome será lembrado, é irrelevante... Alguns terão bons motivos, outros, nem tanto...
    Vivamos, pois...

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  19. Simplesmente impagável! É necessário talento para falar com leveza de algo “sério”! Para isso serve a crônica!
    Olhando em perspectiva, algumas coisas até me preocupam, mas vou esperar os sessenta para pensar nisso.

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  20. "...Me poupa do vexame de morrer tão moço, muita coisa ainda quero olhar."
    .
    Tem razão o pavão misterioso. Morrer cedo não deve ter a menor graça. Aliás, morrer não deve ter graça nenhuma.
    .
    Mas, se não tem jeito, que a agenda divina para esse nosso evento esteja marcada com a expressão "sine die".
    .
    Uns cinquenta anos mais, pelo menos, já seria um bônus e tanto.
    .
    Saúde, vida longa e paz!.

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  21. Caro Amigo, essa história de morrer é complicado... Melhor cancelar essa data fatal e continuar vivendo (rsrsrs). Já dizia Millôr: não tenho medo de morrer. eu não quero é morrer. De certa forma, morremos todos os dias. quer seja pela contagem da passagem do tempo, quer seja pelas nossas próprias escolhas. Li certa vez: O bom mesmo é morrer jovem o mais tarde possível. A Vida é bela, apaixonante. A questão é que, na maioria das vezes, descobrimos isso meio tarde...

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  22. Ahh... Adorei a crônica. leva a reflexões...

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  23. O mundo atual cospe em minha fronte, diariamente, motivos infinitos para abreviar o encontro com a dona da foice. Ainda que constantemente alquebrado, teimo em resistir, esperando encontrar, quiçá, o terceiro dos três elementos de "O conto dos três irmãos", narrado em "Os contos de Beedle, o Bardo" e, assim, passar, no melhor estilo "Marina", o restante de tempo a mim confiado.

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  24. Pois é meu amigo... o jeito é a gente se cuidar pra morrer com saúde, aí ninguém pergunta...rs

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  25. Muito difícil pensar na finitude de nossas vidas! Como sempre nosso amigo/irmão estava inspirado.

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  26. Não há tema sobre o qual seu brilhantismo ao dissertá-lo não extrapole nossas melhores expectativas sobre o resultado da obra.
    Em paz com a vida e a expectativa de seu final, cada vez mais próximo em meu caso, espero tranquilo pelo desfecho, até porque não saberei dele, afinal só sabemos que dormimos ao despertamos.
    Mas tenho a esperança de que, antes de partir haja um doutor pra lhe desmentir e lhe fazer desfilar vestido de VERMELHO E PRETO.
    Ah, como eu partiria feliz!!!!
    Até prepararia uma grande festa pra lhe receber lá como um flamenguista histórico...

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    1. Meu generoso amigo Volney, saiba você que o único momento em que para mim faz algum sentido a mistura de vermelho e preto é quando me vejo diante da cruz de malta sobre uma faixa diagonal num manto puro, alvo e sagrado, simbolizando as grandes travessias oceânicas de um destacado navegador e explorador português na Era dos Descobrimentos.
      Por que? Porque me remete a Pessoa, o mais vascaíno dos poetas, que traduziu todo o sentimento de uma nação assim: “Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!

      Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

      Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena”.

      Você concorda comigo? Se sim, tim-tim!

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  27. O MOÇO

    Não me perguntem quantos anos tenho, e, sim,
    quantas cartas mandei e recebi.
    Se mais jovem, se mais velho...o que importa,
    se ainda sou um fervilhar de sonhos,
    se não carrego o fardo da esperança morta...

    Não me perguntem quantos anos tenho, e sim,
    quantos beijos troquei - beijos de amor!
    Se a juventude em mim ainda é festa,
    se aproveito de tudo a cada instante,
    e se bebo da taça gota a gota...
    Ora! Então pouco se me dá quanta gota resta!

    Não me perguntem quantos anos tenho, mas...
    queiram saber de mim se criei filhos,
    queiram saber de mim que obras fiz,
    queiram saber de mim que amigos tenho,
    e se alguém pude eu tornar feliz.

    Não me perguntem quantos anos tenho, mas...
    queiram saber de mim que livros li,
    queiram saber de mim por onde andei,
    queiram saber de mim quantas histórias,
    quantos versos ouvi, quantos cantei.

    E assim, somente assim, todos vocês,
    por mais brancos que estejam meus cabelos,
    por mais rugas que vejam em meu rosto,
    terão vontade de chamar "O Moço!"

    E, ao me verem passar aqui...alí...
    não saberão ao certo a minha idade,
    mas saberão, por certo, que eu vivi!

    Moacyr José Sacramento
    Poeta brasileiro

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  28. Meu caro Hayton,
    Parabéns pela ótima crônica que serve para nos levar à reflexão.

    Mas falando sobre a morte e qual seria o seu epitáfio, Miele disse que já tinha escolhido este: "Aqui jaz Miele absolutamente contra a vontade"

    E o nosso grande poeta Manuel Bandeira prefere não deixar rastro.

    "Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
    A lembrança de uma sombra
    Em nenhum coração, em nenhum pensamento.
    Em nenhuma epiderme.

    Morrer tão completamente
    Que um dia ao lerem o teu nome num papel
    perguntem: “Quem foi?…”

    Morrer mais completamente ainda,
    – sem deixar sequer esse nome."

    E, o nosso amigo e ex- bancário, poeta Sidney Wanderley fala da "Indesejada das gentes" de forma bela e suave.


    O RIO INTERIOR

    Também em mim corre um rio.
    De rubras, espessas águas
    por frágeis dutos.

    Se essas águas desistirem da viagem,
    uma grande sombra descerá sobre meus olhos:
    não mais manhãs,
    não mais amigos,
    não mais poemas.

    E eu, que tanto amei a solidão e o silêncio,
    terei de provar que fiz por merecê-los
    -quando o rubro rio estancar sua corrente
    e este corpo for só notícia do ausente.

    Sidney Wanderley

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  29. A idade avançada tem duas vantagens:1ª se houver outra vida, provavelmente vamos ao céu!
    2ª se não houver, nos livraremos dessa dúvida atróz!

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