quarta-feira, 6 de julho de 2022

Língua solta

As saias de vinco batiam no meio das canelas das meninas e já foram de várias cores: azul, bege, marrom, vinho. Os internatos femininos dos idos de 1940 a 1970 custavam os olhos da cara. Em troca, ofereciam formação e conduta. As meninas até podiam sair da clausura, mas sob a tutela de religiosas que cuidavam desde a forma de se pentear até os centímetros da roupa.


Era comum uma moça trocar de internato se outro na região oferecesse um horário mais flexível, permitisse uma inocente troca de olhares no café ou chá de casca de laranja com um rapazote, na sala de estar. Apesar dos rigores, divertiam-se. Longe de casa, dividiam quarto com amigas de outras cidades, com quem compartilhavam cochichos de dormitório sobre namorados, virgindade e casamento. 


Soube por intermédio de meu amigo Chiquinho Neto que, certa feita, madre Perpétua do Socorro, uma paulista de Barretos (capital do rodeio), radicada no Alto Sertão cearense, diretora do internato da cidade onde ele nasceu, decidiu levar suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Para ela, o circo era um lugar mágico, que remetia a vivências e sensações incríveis, fazendo crianças, jovens e até os mais velhos viajarem na beleza das cores, na alegria dos palhaços e nas acrobacias e aventuras dos trapezistas. 

 

A história circense no Brasil se inicia no século 19, período em que muitas famílias europeias chegavam e se reuniam em guetos onde, além de compartilharem vida coletiva, demonstravam suas habilidades circenses. Também com ciganos que, nômades, se apresentavam ao público de diversos lugares mostrando algumas de suas habilidades, como o ilusionismo e a doma de animais bravos.

 

Os espetáculos eram adaptados de acordo com o gosto do público. Se alguma atração não agradava aos espectadores de certa região, deixava de fazer parte da programação para aquele local. O palhaço europeu, por exemplo, na versão original era menos falante e fazia uso da mímica como base para suas apresentações. 

 

Esse modelo não funcionou bem por aqui e precisou ser adaptado para o tipo de palhaço que todos nós estamos acostumados, principalmente aqueles que atuam em circos mambembes, sem a atração de animais: fala alto, volta e meia utiliza instrumentos musicais sem muita habilidade e tenta ser engraçado de forma chula.

 

Mas voltemos àquela tarde em que madre Perpétua em carne, véu e osso, resolve levar as suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Todas acomodadas, algodão doce e pipocas fraternalmente distribuídas, eis que o espetáculo começa com o palhaço a toda corda. À medida que o público aplaude, sobe o tom das tiradas picantes, até descambar ladeira abaixo:

– E o palhaço, o que é? 

– É ladrão de mulher!

– E a mulher, o que tem?

– Carrapato no sedém...

 

Nos rodeios, “sedém” é uma espécie de cinta, confeccionada em lã, crina de cavalo ou espuma revestida de tecido macio, que corre entre o traseiro e a virilha do touro para estimulá-lo a escoicear cada vez mais, a desafiar o equilíbrio do peão. 

 

Talvez lembrando de sua infância em Barretos, no interior paulista, madre Perpétua trata de recolher suas pombinhas inocentes e, em comitiva, busca ajuda junto à principal autoridade da cidade, depois do prefeito, do juiz e do padre: o delegado Tonho Lapada, militar reconhecido como reserva moral nas redondezas, apesar da injustiça de seus tabefes reservados apenas aos ladrões de galinha.

 

Ao chegar à delegacia, a madre superiora foi ao ponto:

– Delegado, o palhaço tá com imoralidades lá no circo. Tive que sair de lá correndo com as moças por causa dos palavrões. Onde já se viu uma coisa dessas? 

 


Ilustração: Umor








Tonho Lapada levanta-se num pulo só, beija as mãos da freira e exprime sua mais profunda revolta com o ocorrido:

– O quê?! Aquele “filadaputa” tá faltando com o respeito ao povo daqui? Vou lá agorinha fechar aquela empanada de merda! E se ele insistir, meto o pau no rabo dele na frente de todo mundo! Será que ele tá pensando que essas divisas aqui – bate os dedos indicador e médio da mão direita sobre o braço esquerdo – foram pregadas com sebo?!


E veio uma onda de suspiros e desmaios, fingidos ou não. 

 

A língua é viva. A maneira de falar se renova mais rápido do que o modo como se escreve, porque a oralidade precede à escrita e é bem mais utilizada. Render-se às mudanças na fala e na escrita é sentir de perto o idioma em movimento. 

 

Chiquinho Neto me conta também que, pouco depois que o circo e o delegado partiram da cidade, madre Perpétua foi vista conversando com uma mocinha que chegava pela primeira vez ao internato, cheirosa e bem penteada, com a saia de vinco batendo no meio das canelas:

– Minha filha, tomara que você traga de berço um linguajar castiço, polido, porque isso aqui tá de lascar! Parece um circo!

23 comentários:

  1. A crônica era mais engraçada no original, quando o delegado dizia para a freira que aquelas divisas no braço não eram coladas com sebo de "pizza" 🍕

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    1. caro Silas, posso estar muito enganado, Mas na original que lembro, o sebo não era exatamente de Pizza! Kkkkkkkkk
      Se minha memória não está falhando, creio que você cedeu à autocensura. Kkkkkkkk

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  2. Ademar Rafael Ferreira6 de julho de 2022 às 06:02

    Se esta freira soubesse que as letras de algumas músicas e as redes sociais colocariam o "palavreado" das suas internas e dos palhaços no final da fila teria sofrido menos. Retratos de cada momento.

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  3. Adorei o texto. A linguagem é mesmo viva e dinâmica. Gosto da linguagem clara e espontânea que expressa que vai além da mensagem e mostra quem somos, nossos sentimentos, costumes, emoções. Os linguistas aboliram o erro que os gramáticos insistem em procurar. A língua acorrentada por regras não flui. O português brasileiro é tão rico em expressões culturais que não se encaixam gramaticalmente. Deborath

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  4. As famosas "madre superioras", tão conhecidas da juventude de tantos de nós (quem nunca ouviu falar dos comportamentos de alguma delas que vista o primeiro hábito), se revestiam da autoridade da época para exercerem seu papel, que deveria ser exemplar e pudico e com isso criavam um estado de permanente polarização (para usar um termo atual), sendo amadas pelos pais que confiavam suas filhas a seu acompanhamento e odiadas por estas. A crônica nos tira com leveza e graça um pouco daquele universo.

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  5. Hahahhahaha
    A língua é viva, mas não precisava brotar tanto!

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  6. Pense num cabra delicado!

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  7. Que habilidade e sensibilidade pra descrever os históricos internatos de moças polidas (ou em polimento), conectando com o surgimento do circo no Brasil, sem deixar de nos ensinar a diferença entre os palhaços europeus e tupiniquins! Uma delícia de crônica!

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  8. Essa nossa maravilhosa língua brasileiresca que nada deve à última flor do Lácio. Como bem disse Oswald de Andrade:
    "Dê-me um cigarro
    Diz a gramática
    Do professor e do aluno
    E do mulato sabido
    Mas o bom negro e o bom branco
    Da Nação Brasileira
    Dizem todos os dias
    Deixa disso camarada
    Me dá um cigarro". Adorei a crônica, bem escrita, bem falada. Bem que a freirinha gostou, hein...?

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  9. Pois é... Em internatos ou em outras escolas da época, o rigor sempre foi a palavra-chave... Talvez, por conta desse "enquadramento", os hoje avós que padeceram sob as ordens severas de muitos educadores e diretores, entenderam que essa forma de educar não era a melhor e, assim, "soltaram as rédeas" e deixaram que as mídias se encarregassem de construir o perfil comportamental de muitos jovens de hoje...
    O bom é que você, caro amigo Hayton, descreveu muito bem os fragmentos culturais da época.

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  10. Parece que nem no mundo corporativo de hoje a madre superiora poderia levar as suas jovens donzelas. O puteiro, ao que parece, indica ter um ambiente mais saudável. Que o diga um certo banco oficial e seu cacique assediador. Os palhaços corariam de vergonha diante dele.

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  11. A grande diferença é que, à época, as meninas iam para os internatos e voltaram pra casa, até casar. Hoje elas ficam e ficam e vão quando podem - ou querem, casando ou não.

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  12. Excelente crônica, que bem retrata a distante sociedade daquela época.
    Abraço

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  13. Hayton, você está em outro patamar. Está brincando com os textos. Não dá para comentar sem ser repetitivo, amigão! Saia um pouco da crônica e vá para os contos.

    Parabéns!

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  14. Este comentário foi removido pelo autor.

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  15. Adorei esse trecho "pudico" do delegado: "– O quê?! Aquele “filadaputa” tá faltando com o respeito ao povo daqui? Vou lá agorinha fechar aquela empanada de merda! E se ele insistir, meto o pau no rabo dele na frente de todo mundo!"
    Ou seja, o delegaddo podia falar na frente de todas as moçoilas, mas o palhaço não kkkkkk

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  16. Muito bom, Hayton! Delícia de história bem escrita! Difícil saber até o que você de fato viveu ou escutou e o que inventa.

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  17. Ótima crônica, bem assim,naquela época.

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  18. Com a simplicidade do delegado, não sei se a madre não se arrependeu de buscar moralidade e justiça...rs. mas os ambientes distoantes, internato e vida real, faziam inocência ir pro beleléu muito fácil... excelente crônica.

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  19. Maravilha!!! Principalmente pra quem conheceu os internatos e os circos da época.

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  20. Excelente texto Hayton, como sempre. Sua crônica me remeteu à minha infância no interior onde o circo era a maior diversão. E aquele delegado falou do que sua vontade de desabafar estava cheia. Era assim mesmo o linguajar daquela época.

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  21. Ah, os circos, a pureza das noviças, o linguajar do delegado. Tudo lembra minha infância, era isso mesmo Hayton. Isso mesmo. Parabéns pela crônica legal de sempre. Um abraço.

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